Cidades Mortas (3ª edição)/Cidades mortas
A quem em nossa terra percorrer taes e taes zonas, vivas outr'ora, hoje mortas, ou em via disso, tolhidas de insanavel cachexia, uma verdade que é um desconsolo resurte do montão de ruínas: o progresso no Brasil é nomade, e sujeito a paralysias subitas. Radica-se mal. Conjugado a um grupo de factores, sempre os mesmos, reflue com elles de uma região para outra. Não emitte peão. É um progresso de cigano — vive acampado. Emigra, deixando atrás de si um rastilho de taperas.
Um dos factores que o arrastam comsigo é a uberdade nativa do solo. Mal esta se esvae, pela reiterada sucção de uma seiva não recomposta, como no velho mundo, pelo adubo, o desenvolvimento da zona esmorece, foge della o capital e com elle os homens fortes, aptos para o trabalho. E lentamente cae a tapera nas almas e nas coisas.
Nosso povo não vinga prosperar sinão onde uma vitalidade prodigiosa poreja da terra virgem como o bafo quente da rez carneada de fresco.
Em sendo mister luctar contra a avareza crescente do solo, refazer-lhe a feracidade anemiada, o homem fraqueja, coça a cabeça e, ou emigra, ou tomba em modorra, para logo atolar na miseria.
Em nosso Estado exemplo perfeito ha disso na depressão profunda que entorpece o chamado Norte.
Alli tudo foi, nada é. Não se conjugam verbos no presente. Tudo é preterito.
Um grupo de cidades moribundas arrastam um viver decrepito, gasto em chorar na mesquinhez de hoje as saudosas grandezas de outróra.
Pelas ruas ermas, onde o transeunte é raro, não matracoleja siquer uma carroça; de ha muito, em materia de rodas, se voltou ao rodisio massiço desse rechinante symbolo do ronceirismo colonial que é o carro de boi. Erguem-se nellas soberbos casarões apalaçados, de um e dois andares, solidos, como mosteiros, tudo pedra; cal e cabiúna; casarões que lembram ossaturas de megaterios d'onde as carnes, o sangue, a vida para sempre desertaram.
Vivem dentro, mesquinhamente, vergonteas mortiças de familias fidalgas, de bôa prosapia entroncada na nobiliarchia lusitana. Pelos salões vazios, cujos frisos dourados se recobrem de patina, e cujo estuque, lagarteado de fendas, esborôa á força de goteiras, paira o bafio da morte. Ha nas paredes quadros antigos — «crayons» — figurando effigies de capitães-móres com barba de collar; ha candelabros de dezoito velas, esverdecidos de azinavre. Mas nem se accendem as velas, nem se guardam os nomes dos enquadrados. E em redor delles se agruma o bolor rancido da velhice.
São os palacios mortos da cidade morta.
Avultam em numero, nessas cidades, casas sem janellas, só portas, tres e quatro: antigos armazens de commercio, fechados, que o commercio desertou tambem.
Numa praça vazia, vestígios vagos de um edificio de vulto. Que é? O antigo theatro..... um theatro onde já resoou a voz de Rosina Stolze, da Candiani...
Não ha na cidade exangue nem pedreiros, nem carapinas; fizeram-se, estes, remendões, aquelles, meros demolidores, tanto vae da ultima construcção. A tarefa se lhes resume em especar muros que deitam ventres, escorar paredes rachadas e remendal-as mal e mal. Um dia mettem abaixo as telhas: sempre vale trinta mil réis o milheiro — e fica á inclemencia do tempo o encargo de aluir o resto.
Os ricos são dous ou tres Eusebios Macarios aposentados, com cem apolices a render no Rio; e os sinecuristas acarrapatados ao orçamento: juiz, collector, delegado.
O resto é a «mob»; velhos mestiços de miseravel descendencia, roida de opilação e alcool; familias decahidas, a viver mysteriosamente umas, outras á custa do parco auxilio enviado de fóra por um filho mais audacioso que emigrou. «Bôa gente» que vive de aparas.
Da geração nova os rapazes emigram cedo, meninos ainda; só fica a próle feminina — sempre fincada de cotovelos á janella, negaceando um marido, que é um mytho em terra assim, donde os casadouros fogem.
Pescam, ás vezes, as mais geitosas, seu promotor, seu delegadozinho de carreira — e o caso torna-se um acontecimento historico criador de lendas.
Toda a ligação com o mundo se resume no cordão umbilical do correio — magro estafeta bifurcado em ponteagudas eguas pisadas, em eterno ir e vir com duas malas postaes á garupa, murchas como figos seccos.
Até o ar é proprio; não vibram nelle sereias de auto, nem cornetas de bicycletas, nem campainhas de carroça, nem pregões de italianos, nem ten-tens de sorveteiros, nem plá-plás de mascateiros turcos. Só o estremecem os velhos sons coloniaes — o sino, o chilreio das andorinhas que moram na egreja, o rechino dos carros de boi, o cincerro de tropas raras, o taralhar das baitacas que, em bando rumoroso, cruzam a cidade, bem alto.
Isso nas cidades. Nos campos não é menor a desolação. Legoas a fio se succedem de morraria aspera, onde reinam, soberanos, a saúva e seus alliados o sapé e a samambaia. Por ella passou o café, como um Attila. Toda a seiva foi sugada e, sob forma de grão, ensaccada e expedida para fóra; mas do ouro recebido em troca nem uma oitava permaneceu alli, empregada em restaurar o torrão. Transfiltrou-se para o Oeste, na avidez de novos assaltos á virgindade da terra nova; ou se transfez nos palecetes em ruína; ou reentrou na Circulação européa por mãos de filhos-familias dissipadores.
A' mãe fecunda que o produziu nada coube; por isso, resentida, vinga-se agora, enclausurando-se numa esterilidade feroz. E o deserto lentamente reganha as posições perdidas...
Raro é o casebre de palha que fumega, e entremostra em redor o quartelzinho de canna, a rocinha e mandioca. Na mór parte os raros existentes, descolmados pelas ventanias, esburaquentos, afestoam-se do melão de S. Caetano - a hera rustica das nossas ruínas.
As fazendas são conventos, de soberbo aspecto vistas de longe, entristecedoras quando se lhes chega ao pé. Rodeiam a morada senhorial extensas senzalas vazias, terreiros de pedra com viçosas guanxumas nos intersticios. O dono está ausente. Móra no Rio, em S. Paulo, na Europa: Os cafesaes, extinctos. Os aggregados, dispersos. Subsistem apenas, como lagartixas na pedra, um pugilo de caboclos amarellos, opilados, de esclerotica biliosa, inermes, incapazes de fecundar a terra, incapazes de abandonar a uerencía, verdadeiros vegetaes de carne que não florescem, nem frutífícam — fauna cadaverica de ultima phase, a roer os derradeiros capões de café escondidos nos grotões.
— A'quí foi o Breves. Colhia oitenta mil arrobas!...
A gente olha assombrada na direcção que o dedo cicerone aponta. Nada mais!... A mesma morraria núa, a mesma saúva, o mesmo sapé de sempre... De banda a banda o deserto — o tremendo deserto que Attila-Café criou...
Outras vezes o viajante lobriga ao longe, rente do caminho, uma ave branca pousada no topo dum espeque.
Approxima-se, de vagar, ao chouto rythmico do cavallo: a ave exquesíta não dá signaes de vida: permanece immovel.
Chega~se inda mais, franze a testa, apura a vista: não é ave, é um ojecto de louça... O progresso cigano, quando um dia levantou acampamento dalli, rumo Oeste, esqueceu de levar comsigo aquelle isolador de fios telephonicos...
E elle, immovel, lá ficará, attestando mudamente uma grandeza morta até que decorram os muitos decenníos necessarios para que o relento consuma o rijo poste de «candeia» ao qual o amarraram um dia, no tempo felíz em que Ribeirão Preto era por lá...

Esta obra entrou em domínio público pela lei 9610 de 1998, Título III, Art. 41.

