Cidades Mortas (3ª edição)/Noite de S. João
Noite de S. João
— A' fogueira!
Confluem todos para ella. A palhaça de milho sotoposta á lenha miuda que lhe servia de intestinos vê-se ateada em fogo pelos quatro lados. O fogo pega e é a principio uma crepitação indecisa, acompanhada d'um fumegar discreto. Depois, estrepitante, estala, e róla bojos de fumo espesso de dentro da prisão de tóros que quatro espeques de jissára mantem em fórma, escorados nos encruzes.
Pannos de labareda esgarçam-se, tentando seguir a fumaça faúlhenta em seu vertiginoso arranco para o alto. Um clarão vermelho illumina o terreiro e chapeia os vultos d'um debrum de cobre polido.
Barulham gritos, palmear de crianças, apupos e vivas aos quaes casam os bambús do recheio seus estouros de bombas. A faiscalha ascendente galga o céo recamado de estrellas como um chuveiro invertido.
O frio fino da noite attrahira os fandangueiros em torno á fogueira, de mãos espalhadas para o seu calor irradiante. Mãos e pés. Um diluvio de pés entanguidos, pés de marmanjões, pés calçados e «pés no chão», pézinhos de crianças, pés brancos, pés pretos e pés mulatos — das criadinhas e molecotes, crias da casa, em alegre confraternisar apinham-se junto della nas mil attitudes do «aquentar fogo».
Furta-lhe a criançada os tições a geito e, guiada pelos mais peraltas, scinde-se em grupos para queimar traques da China ou bichas de rebear. O ar estrelleja ao estalo daquellas emquanto estas zigzangueam pelo chão chiando faiscas, como buscapézinhos de Liliput.
A' porta da casa escorva-se o primeiro pistolão de côr.
— Caminho, gente! «Evae» fogo!
Abre-se uma ala por onde, d'um repuxo de faiscas, jorra a primeira bomba d'um verde de doêr nos olhos.
O esverdeamento da scena attrae todos os olhares, seguidos d'um expontaneo e sincero «bonito!» Vem outra mais forte, vermelha, e outra azul, e outra branca... A cada plàft ha um voltar geral de caras e, ao ultimo, um: — «Que pena! Outro! Outro!» E os pistolões se succedem, com reboliços na molecada ao fim de cada um para a disputa do canudo.
Aqui o quadro perde a unidade. De cada lado scenazinhas pittorescas dividem a attenção.
—Ma-mãe, Zéquinha quei-quei-mou eu!
Um menino apparece berrando, a sacudir um dedo preto do chamusco d'uma bicha que o irmão «de proposito» lhe atacara em cima. Acodem mulheres, que rodeiam a criança com exclamações de piedade. Uma velhota lembra o kerozene como um porrete para queimaduras. Surge logo uma lamparina de petroleo ás mãos duma creadinha e concerta-se o dedo ao Jojóca, que, mal sarado, fungando e soluçando ainda, lá se volta ás bichas, seguido de longe pelos olhares resabiados do Zéquinha, ao qual a mãe, estalando os dedos, ameaçou com um «amanhã você me paga!» — sem consequencias, sabe-o elle. Não o apadrinhasse S. João...
Num grupo de taludotes conspira-se visivelmente. Tudo alli são meias-palavras e cochichos: busca-pés... no meio do povo... vae ser uma pandega!...
Noutro, de fedelhinhos, o Zéquinha se fazia centro de minuciosa attenção e sob o silencio só quebrado por um ou outro soluço do Jojóca, desmancha um pistolão á cata das bombas, distribuindo polvora aos amigos.
Nisto rebentam palmas no grupo dos moços.
— Bravos! Viva a sanfona!
Era o Quim da venda que chegava, espremendo um dobrado na sanfona fanhosa.
Rodeiam-no; «inspiram-no» com uma vez de canninha; e cada qual vae pedindo a valsa da sua predilecção. Quim sorri, ancho, perguntando: Mas afinal que é que meceis querem?
Teve maioria uma Não te esqueças de mim — «muito dançante», na opinião de Sinhazinha Lopes — a cujos primeiros compassos os pares se uniram de peito, circulando em torno da fogueira a sussurrarem ao ouvido as eternas amabilidades do galanteio.
Um magote ao lado commentava:
— Parzinho geitoso, a Miloca e o Lulú, não?
— E gostam-se desde meninos; ouvi dizer que elle já a pediu.
— Historias. Quem foi pedida, um dia destes, foi a Nenê. Mas parece que o sujeitinho levou táboa.
— Bem feito! Tenho birra áquelle coizinha: pensa que é gente... Não viu o que andou dizendo de mim? Como coisa que eu era capaz de dar confiança a um moleque da marca delle...
A sanfona gemia cadenciada, com o Quim deitado sobre ella, alheio ao mundo. Tocava bem, o ladrão, sobretudo quando lhe graduavam com sciencia as doses de pinga.
E aquelles sons rythmavam os movimentos dos pares em gyro valsado, enlanguecidos d'um mixto de amor e bem estar physico. Perto delles espocavam as bichas, chiavam fogos inutilmente; nem siquer lhes attrahia os olhares o puff balofo dos derradeiros pistolões.
Subito, chiou ao longe um busca-pé de limalha que, como um raio epileptico, enveredou pelo meio do povo, aos corcovos, criando o panico e a debandada.
Os dançarinos fugiram, espavoridos, com as damas penduradas ao peito, e a meninada prorompeu numa grita atroadora — meio medo, meio contentamento. Os velhos protestaram indignados, que era uma patifaria, que isto não se faz.
No meio da desorganização geral só não largou o posto o Quim, sempre deitado na sanfona, alheio ao mundo, absorto nas sonoridades fanhosas que su'alma de artista tosco ia arrancando ao instrumento querido.
Cessado o panico com o estouro final do busca-pé, surgiu o tio Pedro de porretinho em punho para « ensinar» o malvado. Quem foi? Quem não foi? Não fora ninguem, ninguem vira. Fervia ainda o commentario e a indignação quando entram para o terreiro duas criadas carregando bandejas com chicaras e bules.
— A gengibrada! «Evem» a gengibrada!
Foi agua na fervura. Todos se lembraram da garganta e esqueceram o busca-pé.
Era a vez de concertar os gorgomillos e matar no ovo a possivel constipação. Por minutos um soprar de chicaras e um chuchurrear estalado de lingua dominaram todos os barulhos.
— Está supimpa!
— Isto regenera o fígado.
— Corrobora, pois não.
— Mais uma chicara, D. Lulú?
— Está ardidinha, está, mas boa que dóe!
— Para mim nada como uma gengibrada com garapa! Me péllo!
— Está d'appetite, como diz o Eça.
Este commentario saiu do literatelho da roda, Julio da Silva de nome, e Julius d'Alcatrava no pseudonymo com que desovava sonetos semanaes nas folhas da terra. A Candoquinha, de ha muito pelo beiço, achou-lhe uma graça immensa.
— E' da pelle, este seu Julio!
Bem gengibrados, dispersaram-se de novo.
O Quim annunciou quadrilha. Organizaram-na, num ápice.
Quem marcava era o Julio. Ahl O Julio tinha graça para marcar... Era da pelle!
— «En avant tour»!
— «Grande chaine»! — «Tour, à pas de «porca»!
Gargalhadas, quiá, quiá, quiá; a Candoca fundia-se de gosto.
— Este seu Julio tem cada uma!...
Uma ex-musa do poeta não se conteve:
– Crédo, Candoca! você está escandalosa.
— Deixe. Isto é para quem pode..
— «Joujou d'enfant»! — «Grande confusion! Tour»!
— Seu Julio, outra vez «joujou d'enfant»!
— Arre, Candoca!
Para lá da fogueira enchia-se um grande balão. A criançada rodeava-o, acotovelando-se, na ancia de ver melhor. O Zéquinha era quem accendia a mécha e distribuia tabefes aos atrapalhadores. Um fumo sujo enchia o bojo multicor.
— Está prompto, pode largar!
— Ainda não, bobo! Falta gaz...
— Agora!
O «segurador», sentindo-o com força, largou-o e o balão, vacillante, subiu a prumo.
Foi um berreiro.
— Viva o balão! Viva o Santos Dumont!
O Julio, que nesse momento estylizava um «tour» com a sua «vis-a-vis», a Candoca, aproveitou a ensancha para um dito.
— O amor, D. Candoca, é como o balão: quanto mais rapido sobe, mais rapido deşapparece.
— Bom pensamento para um cartão postal! suspirou ingenuamente a menina, envolvendo o seu poeta num olhar de mel.
Nisto a fogueira desmoronou, golphando um bulcão de faúlhas para o céu escuro.
— Bonito! Parece o Vesuvio!
O Julio incontinente «cascou»:
— Sabe, D. Candoca, como Deus fez as estrellas? Mandou que os anjos cortassem uma floresta e armassem uma grande fogueira da altura do Hymalaia. Accendeu-a e, quando tudo estava em braza, despegou um pedaço de céo, e arremessou-o sobre ella. Ergueu-se então um repuxo immenso de faiscas que foram subindo, foram subindo até que se grudaram na abobada negra do firmamento...
— Lindo! Ha de escrever isso no meu album, esse lindissimo pensamento, sim? O que é ter alma de poeta...
E lambusou-o de um novo olhar de mel onde não se sabia o que mais babava, si o amor, si a admiração pelo estheta...
Esta obra entrou em domínio público pela lei 9610 de 1998, Título III, Art. 41.
Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1929 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.