Cidades Mortas (3ª edição)/O plagio
O plagio
— Você sae, Nenesto, com um tempo destes?
— Não ha outro.
— Dia de S. Bartholomeu, inda mais?...
— Importa-me la o santo.
— Está bem. Depois não se arrependa...
Isto dizia d. Eucharis ao «queixo duro» do seu marido, Ernesto d'Olivaes, ao vel-o tomar o chapeu do cabide e sair.
Fóra, remoinhava o vento, annunciando tempestade imminente.
Por castigo, nem bem caminhára o teimoso duzentos passos, desaba aguaceiro. Tão repentino que mal teve tempo de barafustar por um «sebo» a dentro no instante preciso em que o belchior cerrava a ultima folha de porta. Mesmo assim resfriou-se e foi com tres espirros que retribuiu á saudação do homem.
— Atchim!...
— Viva!
— Atchim!...
— Viva!
— Atchim... Brrr ! P'ra burro ! Espirro p'ra burro ! C'est le diable.
(Seculo trinta! Se por acaso um exemplar desta novella chegar ao conhecimento dos teus fariscadores de antigualhas, não se assombre elle com a expressão curralina do meu Ernesto. Nem quebre a cabeça a interpretal-a com ajuda da philologia comparada, da veterinaria e mais sciencias connexas.
Cá fica a chave do enigma: semelhante expressão viveu correntia, pelas immediações da Grande Guerra, com significado de abundante, excessivo ou estupendo. Nascida nalguma cocheira, alargou-se ás ruas, e passou desta aos salões. Penetrou até na rhetorica amorosa. Romeus houve que, pintando a formosura das respectivas Julietas, substituiam o archaico — lindo como os amores — por este soberbo jacto de impressionismo cavallar: E' linda p'ra burro!
Não obstante, as Julietas casavam com elles, e eram felizes. Lá se entendiam....)
O belchior era francez, e Ernesto taramelava na lingua adoptiva do sr. d'Avray o necessario para embrulhar lingua com um belchior francez. Sabia differençar femme sage de sage femme, distinguia chair de viande e alambicava a primor os u u gaulezes. Além disso tinha sciencia de varios idiotismos, usando amiude o qu'est-ce que c'est que çá; sabia de cór a historia do Didon dit-on, além d'uma duzia de prosopopéas d'alto calibre, forrageadas nos «Miseraveis» — o que já é bagagem glossica de peso para um carrapato orçamentivoro com seis annos de sucção.
Taes conhecimentos, mensalmente postos em jogo, bastavam para espezinhar 'a paciencia do livreiro a quem Ernesto, em todo dois de cada mez, alugava um bacamarte de Escrich, matador das horas vazias da repartição.
Naquella tarde, porém, Ernesto não queria livros e sim um tecto, razão pela qual falhou o sempiterno encentamento de séca. (Esse ritual começava assim: Qu'est-ce que vous avez de nouveau, monsieur?).
Fóra, em regougos sibilantes o vento pulverizava a chuva.
Tinha de esperar.
Esperou. Esperou, remexendo estantes, folheando revistas, lendo a meia voz os titulos dourados. De longe em longe tomava um volume e perguntava ao francez acurvado na escripturação de um livro de capa preta:
— Combien, monsieur?
E á resposta do homem repicava invariavelmente:
— C'est trés salé, c'est très salé, c'est trés salé — estribilho trauteado em surdina até que novo livro lhe empolgasse a attenção.
Empolgou-lh'a logo depois uma brochura esborcinada: A Maravilha, de Ernesto Souza.
— Olé! Um xará! Combien, monsieur?
O livreiro, sem maior attenção, rosnou qualquer cousa emquanto Ernesto, absorto no manuseio do livro, ia murmurando machinalmente o trés salé.
Leu-lhe o periodo inicial e o final, vezo antigo adquirido no collegio, onde colleccionava num caderno a primeira e a ultima phrase de quanto livro lhe transitava pela carteira.
A Maravilha era um desses romances esquecidos que trazem nome do autor á frente d'uma comitiva de identificações á laia de passaportes á posteridade, muito em moda no tempo do onça:
Pedagogium, ex-deputado provincial, ex-caval-
leiro da Cruz Preta, etc., etc., etc.
Romances descabellados onde ha lagrimas como punhos, e punhaes vingativos, e virtudes premiadissimas de par com vicios archi-castigados pela intervenção final e apotheotica do Dedo de Deus — livros que a traça leu e rendilhou nos poucos exemplares escapos á funcção sobre todas bemdita de capear bombas de foguetes.
O periodo final rezava assim: «E um rubro fio de sangue correu do niveo seio da donzella apunhalada, como uma vibora de coral num marmore pagão.»
Ernesto, né de Oliveira mas d'Olivaes por contingencias estheticas, enrubesceu de apollineo prazer. E assoou-se, modo muito seu de enthusiasmo chegado a ponto de arrepio.
— Sim, senhor! Estava alli uma phrase soberbal «Como vibora de coral...» Magnifico! E aquelle «marmore pagão?»
Foi ter com o Monsieur e leu-lh'a «com alma»; mas o typo, absorvido numa addição, miou o oui, oui, sem erguer siquer a cabeça.
Ernesto não comprou o livro (não era dois do mez) mas escondeu-o num desvão para que ninguem lhe puzesse a vista em cima até ao dia acquisitivo.
Emquanto isso a chuva amainára.
Ernesto entreabriu a porta, espiou a rua murmurejante nas sargetas e resolveu abalar.
— Monsieur, au revoir!
— Oui, oui, miou pela ultima vez o bruto.
Na rua endireitou para casa, ruminando — que sim senhor, era ter fogo sagrado! Uma phrase daquellas fazia um nome; o xará tinha talento, e bem dizia Victor Hugo nos «Miseraveis» que o genio... é o genio!
E foi pelo caminho redizendo-a em mente, com cariciosa uncção, remirando-a por todos os lados, sob todas as luzes. Degustou-a como um sybarita: pelo som, repetindo-a em surdina innumeras vezes; pela fórma, revendo o geito com que a fixaram no papel as caracteres typographicos; pelas correlações associadas, evocando vagos hellenismos classicos que o padre mestre Jordão lhe embutira no cerebro a palmatoadas — Phrynéa, o cão de Alcebiades, as Thermopylas, o ancorote de Diogenes.
Por fim, á noite, já a celebre phrase se lhe encrustara nos miolos no logar onde costumam encruar as idéas fixas.
Chegou a repetil-a a d. Eucharis. Mas d. Eucharis, uma criatura sovada, toda virtudes conjugaes e preoccupações caseiras, interrompeu-o prosaicamente:
— E você trouxe, Nenesto, o pavio de lampião que te encommendei?
Ernesto d'Olivaes arrepanhou a cara num assomo de dó ante a chinfrinice mental da companheira. Dó, despeito e meia colera, cousa rara em sua alma de amanuense, gommosa e mansa.
— Que pavio? Que me importa o pavio? Quem fala aqui de pavio? Ora não me aborreça com historias de pavio!
E voltando-se para o canto (que a scena se passava na cama) enbezerrou.
O somno dessa noite não foi bom conselheiro, e Ernesto, no dia seguinte, andou pela repartição mais meditativo que de costume, com olhos parados — olhos de cabra morta que olham sem ver.
E' que uma idéa...
Não era bem uma idéa, mas cellulas vagas, destroços vogantes de idéas mortas, lampejos de idéas futuras, coisas tão affins que ao cabo de tres dias se fundiam numa idéa-mãe de imperiosa vitalidade.
— Escrever um conto, uma simples «variedade», em linguagem bem caprichada, com floreados bem bonitos, arabescos de estylo...
Duas ou tres personagens — não gostava de muita gente. Um conde, uma condessa pallida, a cidade de Tres Estrellinhas, o anno de 18... Como enredo, uma paixão violenta da condessa X. pelo pintor Gontran. Gostava muito deste nome. A scena, já se sabe, passava-se em França, que nunca achára geito em personagens nacionaes, vivendo em nosso meio, ao nosso lado. Perdiam o encanto. A narrativa vinha num crescendo até engastar-se naquelle final... Oh! sim!... naquelle final. porque, em summa, o conto viveria para justificar a exhibição daquella joia de «cellineo lavor». E logo abaixo o seu nome por extenso: Ernesto da Cunha Olivaes.
Esse remate furtado ao xará d´A Maravilha insinuou-se aos poucos na consciencia de Ernesto como coisa muito sua, propriedade artistica indiscutivel.
A Maravilha, ora! Um miseravel caco de livro cuja existencia ninguem conhecia...
Plagio? Como plagio? Porque plagio?! E' tão commum duas criaturas terem a mesma idéa... Coincidencia, simplesmente. E além disso, quem daria pela coisa?
Ernesto era literato.
«Fazer literatura» é a fórma natural da calaçaria indigena. Em outros paizes o desoccupado ou pesca, où caça, ou joga o murro. Aqui belletrea. Rima sonetos, escorcha contos ou tece desses artiguetes inda não classificados nos manuaes da literatura onde se adjectiva soramente uma idéazita de meia tigela, sempre feminina, sem pé e raramente com cabeça, que gosa a propriedade, aliás preciosa, de deixar o leitor na mesma. A grammatica soffre umas poucas marradas, os typographos lá ganham sua vida, as beldades se saboream na adjectivança mellosa e o sujeito autor lucra duas coisas: mata o tempo, que entre nós em vez de dinheiro é uma simples maçada, e faz jús a qualquer academia de letras, existente ou por existir, de Sapopemba a Icó.
Ernesto não fugira á regra. Em moço, emquanto vivia ás sopas do pae, á espera de que lhe cahisse do céo um amanuensado, fundára a «Violeta», orgam literario e recreativo, com charadas, sonetos, variedades e mais mimos de Apollo e Minerva. Redigiu depois uma folha «critica, scientifica e litteraria» com dois tt, «O Combate», que morreu aos 7 mezes combatendo a syntaxe até ao derradeiro transe. Compoz nesse intervallo, e publicou, um livro de sonetos cuja impressão deu com o pae na miseria.
Incomprehendido pelo publico, que não percebia o advento de um novo genio, Ernesto amargou como peroba miuda, deixou crescer grenha e barba, esgroviou-se e disse cobras cascaveis do paiz, do publico, da critica, do José Verissimo e da cambada da Academia de Letras. Citava amiude Schopenhauer e Hartmann, mostrando tendencias para saltar dum pessimismo inoffensivo ao perigoso nihilismo russo. Foi quando o pae, farto das attitudes theatraes do filho, o metteu numa roda de guatambú pondo-o. fóra de casa com valente ponta-pé: — «Vá ganhar a vida, seu anarchista de borra!»
Ernesto, jurúrú, achegou-se a um tio, influente na politica, e cavou afinal o empreguinho.
No empreguinho amou, casou e tomou a seu cargo a secção «Conselhos Uteis» do «Batalhador». Estava nisso quando ventou, choveu, entrou no sebo, pilhou A Maravilha e patinhou como Hamleto num pégo de indecisões, até que....
Ernesto, em tiras de papel do governo, lançou em bello cursivo um começo bem arredondado:
«Era por uma dessas noites de abril, em que o céo recamado de estrellas lembra um manto negro com mil buraquinhos...»
Na rodinha de orçamentivoros que domingueiramente beberricavam o chá com torradas de d. Eucharis, todos afinados pela cravelha de Ernesto — victimas imbelles da incomprehensão — o conto estampado no «Lyrio» causou agradavel surpreza. O João Damasceno foi o primeiro a dar-lhe um abraço num vae-e-vem de café.
— Olha, li o teu «Never more», no «Lyrio». Esplendido! O final, então, divino! Tens miolo, meu caro! Pagas o chope?
Nesse dia Ernesto contou á esposa toda a vida do João, terminando scismatico: E' um caracter, Eucháris, um nobilissimo caracter..
O capitão Prelidiano, chefe da sua secção, foi commedido e pausado como o convinha á eminencia do seu tamanco: Li o seu trabalho, senhor Ernesto e gostei; termina com brilhantismo; continúe, continúe...
E o Claro Vieira? Fôra brutal, esse.
— Que optimo fecho arranjaste para o teu conto! O resto está pulha, mas o final é um morceau de roi!
O que nessa noite d. Eucharis ouviu relativo ao caracter baixo, infame e vil do Claro...
Ernesto entrou-se de receios. Pareceu-lhe que o Claro estava no segredo do «encontro de idéas». Como medida de precaução deu busca ao sebos em cata de quanto exemplar d´A Maravilha empoava por lá. Encontrou meia duzia, adquiriu-os e queimou-os com grande assombro de d. Eucharis que duvidou da integridade dos miolos maritaes ao vel-o transfeito em Torquemada de innocentes brochuras carunchosas.
Mas nem assim socegou.
— Quem me assegura não existirem outras, espalhadas ahi pelas bibliothecas publicas? Si ao menos houvesse variado a forma, conservando embora a idéa... Fôra audacioso, não havia duvida. Fôra tolo, pois não.
— Sou uma besta, bem m'o dizia o pae...
Ernesto arrependeu-se do plagiato — sim, porque afinal de contas, vamos e venhamos, era um plagio aquillo!
A consciencia proclamava-o de cabeça erguida, reagindo contra as chicanas peitadas em provar o contrario.
E Ernesto arrependia-se sobretudo por causa do «Dizem...» do «Chromo». Constava ser o Claro o enredeiro daquellas maldades e o Claro na mofina era quatro páos. Sabia revestir as palavras de um jossá urente de ortiga.
Fizera mal, porque afinal de contas um plagio.... é sempre um plagio.
Quando no domingo seguinte recebeu o «Chromo» tremeu ao correr os olhos pelo «Dizem...» Mas não vinha nada e respirou.
No «Recebemos e agradecemos» havia uma referencia ao conto, muito elogiosa para o remate.
Tambem a «Dahlia» desse dia trouxe algo: «O conto do sr. F. é um desses etc. etc. O final é uma dessas phrases que chispam belleza hellenica etc.»
— O final, sempre o final! Estão todos apostados em me fazer perder a paciencia. Ora pistolas!
Deblaterou contra os jornalistas. contra os amigos, contra os dez exemplares do «Lyrio» em seu poder — dez arautos do seu crime. E queimou-os.
Na repartição, a um novo elogio do Damasceno, Ernesto rompeu, desabridamente:
— Ora, não me seja besta !
Damasceno abriu a bocca.
Nas palavras mais innocentes o pobre autor via allusões ironicas, directas, claras, brutaes. Nem simples «bom dia» enxergava rizinhos de mófa. O proprio capitão Prelidiano, cavalgadura honestissima, incapaz d'uma ironia, afigurava-se o chefe da malta.
Conspiravam contra elle, não havia duvida.
Pôz-se em guarda. Fugiu aos amigos. Deu cabo do matte domingueiro. Não podia siquer ouvir falar em literatura, o assumpto dilecto de tantos annos. Emmagreceu.
D. Eucharis, pensabunda, matutava:
— Serão lombrigas?
E deu-lhe chenopodio, ás occultas.
— Afinal...
— Afinal?. E' o diabo ser a vida tão pouco romantica como é! Os casos mais interessantes descambam a meio para o mais reles prosaismo. Este do Ernesto d'Olivaes, por exemplo. Merecia um fim tragico, duello ou quebramento de cara. Quando nada, uma remoçãozinha a pedido.
Mas seria inentir. Nem toda a gente encontra como elle um remate de estrondo á mão.
E' o caso deste caso.
Ernesto adoeceu, mas sarou. O chenopodio revelou-se um porrete para o seu mal. Depois, com o de correr do tempo, esqueceu o plagio. Os amigos esqueceram o «Never more». O «Lyrio» morreu como morrem «Lyrios», «Dahlias» e «Chromos»: calote na typographia. Ernesto engordou. Já é major. Tem seis filhos.
Continua a «fazer literatura» -- clandestinamente embora. E se encontrar a talho um novo final de estrondo, plagiará de novo.
Moralidade ha nas fabulaş. Na vida, muito pouca, ou nenhuma...
Esta obra entrou em domínio público pela lei 9610 de 1998, Título III, Art. 41.
Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1929 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.