Cinco Minutos/VI
VI
Eis o que ella me dizia:
«Devo-te uma explicação, meu amigo.
Esta explicação é a historia de minha vida, breve historia, da qual escreveste a mais bella pagina.
Cinco mezes antes do nosso primeiro encontro, completava eu os meus dezeseis annos, a vida começava á sorrir-me.
A educação rigorosa que me dera minha mãi me conservára menina até aquella idade, e foi só quando ella julgou conveniente correr o véo que occultava o mundo aos meus olhos que eu perdi as minhas idéas de infancia e as minhas innocentes illusões.
A primeira vez que fui á um baile fiquei deslumbrada no meio d’aquelle turbilhão de cavalheiros e damas, que girava em torno de mim sob uma atmosphera de luz, de musica, de perfumes.
Tudo me causava admiração; o abandono com que as mulheres se entregavam a seu par de valsa, o sorriso constante e sem expressão que uma moça parece tomar na porta da entrada para só deixal-o á sahida, esses galanteios sempre os mesmos e sempre sobre um thema banal, ao passo que me excitavam a curiosidade, faziam desvanecer o enthusiasmo com que tinha acolhido a noticia que minha mãi me dera de minha entrada nos salões.
Estavas n’esse baile; foi a primeira vez que te vi.
Reparei que n’essa multidão alegre e ruidosa tu só não dansavas nem galanteavas, passando pelo salão como um espectador mudo e indifferente, ou talvez como um homem que procurava uma mulher e só via toilettes.
Comprehendi-te, e durante muito tempo segui-te com os olhos: ainda hoje me lembro de teus menores gestos, da expressão de teu rosto e do sorriso de fina ironia que ás vezes fugia-te pelos labios.
Foi a unica recordação que trouxe d’essa noite, e quando adormeci, os meus doces sonhos de infancia, que, apezar do baile, vieram de novo pousar nas alvas cortinas de meu leito, apenas foram interrompidos um instante por tua imagem, que me sorria.
No dia seguinte reatei o fio de minha existencia, feliz, tranquilla e descuidosa, como costuma ser a existencia de uma moça aos dezeseis annos.
Algum tempo depois fui á outros bailes e ao theatro, porque minha mãi, que guardára a minha infancia como um avaro esconde seu thesouro, queria fazer brilhar a minha mocidade.
Quando cedia a seu pedido e me ia a apromptar, emquanto preparava o meu simples trajo, murmurava:
— Talvez elle esteja.
E esta lembrança, não só me tornava alegre, mas fazia com que procurasse parecer bella, para te merecer um primeiro olhar.
Ultimamente era eu quem, cedendo á um sentimento que não sabia explicar, pedia á minha mãi para irmos á um divertimento, só na esperança de encontrar-te.
Nem suspeitavas então que entre todos aquelles vultos indifferentes havia um olhar que te seguia sempre e um coração que adivinhava teus pensamentos, que expandia-se quando te via sorrir e contrahia-se quando uma sombra de melancolia anuviava teu semblante.
Si pronunciavam o teu nome diante de mim corava, e na minha perturbação julgava que tinham lido esse nome nos meus olhos ou dentro de minh’alma, onde eu bem sabia que elle estava escripto.
E entretanto nem siquer ainda me tinhas visto; si teus olhos haviam passado alguma vez por mim, tinha sido em um d’esses momentos em que a luz se volta para o intimo, e se olha mas não se vê.
Consolava-me, porém, que algum dia o acaso nos reuniria, e então não sei o que me dizia que era impossivel não me amares.
O acaso deu-se, mas quando a minha existencia já se tinha completamente transformado.
Ao sahir de um d’esses bailes apanhei uma pequena constipação, de que não fiz caso. Minha mãi teimava que eu estava doente, e eu achava-me um pouco pallida e sentia ás vezes um ligeiro calafrio, que eu curava sentando-me ao piano e tocando alguma musica de bravura.
Um dia, porém, achei-me mais abatida; tinha as mãos e os labios ardentes, a respiração era difficil, e ao menor esforço humedecia-se-me a pelle com uma transpiração que me parecia gelada.
Atirei-me sobre um sofá, e com a cabeça recostada ao collo de minha mãi cahi em um lethargo que não sei quanto tempo durou. Lembro-me sómente que, no momento mesmo em que ia despertando d’essa somnolencia que se apoderára de mim, vi minha mãi sentada á cabeceira de meu leito chorando, e um homem dizia-lhe algumas palavras de consolo, que eu ouvi como em sonho.
— Não desespere, minha senhora; a sciencia não é infallivel, nem os meus diagnosticos são sentenças irrevogaveis. Póde ser que a natureza e as viagens a salvem. Mas é preciso não perder tempo.
O homem partio.
Não tinha comprehendido suas palavras, ás quaes não ligava o menor sentido.
Passado um instante, ergui tranquillamente os olhos para minha mãi, que escondeu o lenço e tragou em silencio o pranto e os soluços.
— Chora, mamãi?
— Não, minha filha... não... não é nada.
— Mas está com os olhos cheios de lagrimas!... disse eu assustada.
— Ah! sim!... uma noticia triste que me contáram ha pouco... sobre uma pessoa... que tu não conheces.
— Quem é este senhor que estava aqui?
— É o Dr. Valladão, que te veio visitar.
— Então eu estou muito doente, boa mamãi?
— Não, minha filha, elle assegurou que não tens nada; é apenas um incommodo nervoso.
E minha querida mãi, não podendo mais conter as lagrimas que lhe saltavam dos olhos, fugio pretextando uma ordem á dar.
Então, á medida que a minha intelligencia ia sahindo do lethargo, comecei á reflectir sobre o que se tinha passado.
— Aquelle desmaio tão longo, aquellas palavras que eu ouvira ainda entre as nevoas de um somno agitado, as lagrimas de minha mãi e a sua repentina afflicção, o tom condoìdo com que o medico lhe fallára...
Um raio de luz esclareceu de repente o meu espirito.
Estava desenganada.
O poder da sciencia, o olhar profundo, seguro, infallivel, d’esse homem, que lê no corpo humano como em um livro aberto, tinha visto em meu seio um atomo imperceptivel.
E esse atomo era o verme que devia destruir as fontes da vida, apezar dos meus dezeseis annos, apezar de minha organisação, apezar de minha belleza e dos meus sonhos de felicidade!»
Aqui terminava a primeira folha,
que eu acabei de ler entre as lagrimas
que me inundavam as faces e cahiam
sobre o papel.
Era este o segredo de sua estranha reserva; era a razão por que me fugia, por que se ócultava, por que ainda na vespera dizia que se tinha imposto o sacrificio de nunca ser amada por mim.
Que sublime anegação, minha prima! E como eu me sentia pequeno e mesquinho á vista d’esse amor tão nobre!»