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Cinco Minutos/X

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X

 

O resto d’esta historia, minha prima, a senhora conhece, com excepção de algumas particularidades.

Vivi um mez, contando os dias, as horas e os minutos; o tempo corria vagarosamente para mim, que desejava poder devoral-o.

Quando tinha durante uma manhã inteira olhado o seu retrato, conversando com elle, e lhe contado a minha impaciencia e o meu soffrimento, começava á calcular as horas que faltavam para acabar o dia, os dias que faltavam para acabar a semana, e as semanas que ainda faltavam para acabar o mez.

No meio da tristeza que me causára a sua ausencia, o que me deo um grande consolo foi uma carta que ella me havia deixado, e que me foi entregue no dia seguinte ao da sua partida.

«Bem vês, meu amigo, dizia-me ella, que Deos não quer aceitar o teu sacrificio. Apezar de todo o teu amor, apezar de tua alma, elle impedio a nossa união; poupou-te um soffrimento e á mim talvez um remorso.

Sei tudo quanto fizeste por minha causa, e adivinho o resto; parto triste por não te ver, mas bem feliz por sentir-me amada, como nenhuma mulher talvez o seja n’este mundo.»

Esta carta tinha sido escripta na vespera da sahida do paquete; um criado que viera de Petropolis, e á quem ella incumbira de entregar-me a caixinha com o seu retrato, contou-lhe metade das extravagancias que eu praticára para chegar á cidade no mesmo dia.

Disse-lhe que me tinha visto partir para a Estrella, depois de perguntar a hora da sahida do vapor; e que em baixo da serra referiram-lhe como eu tinha morto um cavallo para alcançar a barca, e como me embarcára em uma canôa.

Não me vendo chegar, ella adivinhára que uma difficuldade invencivel me retinha, e attribuia isto á vontade de Deos, que não consentia no meu amor.

Entretanto, lendo e relendo a sua carta, uma cousa me admirou; ella não me dizia um adeos, apezar de sua ausencia e apezar da molestia que poderia tornar essa ausencia eterna.

Tinha-me adivinhado! Ao mesmo tempo que fazia por me dissuadir estava convencida que a acompanharia.

Com effeito parti no paquete seguinte para a Europa.

Ha de ter ouvido fallar, minha prima, si é que ainda não sentio, da força dos presentimentos do amor, ou da segunda vista que tem a alma nas suas grandes affeições.

Vou contar-lhe uma circumstancia que confirma este facto.

No primeiro lugar onde desembarquei, não sei que instincto, que revelação, me fez correr immediatamente ao correio; parecia-me impossivel que ella não tivesse deixado alguma lembrança para mim.

E de facto em todos os portos da escala do vapor havia uma carta que continha duas palavras apenas:

«Sei que tu me segues. Até logo.»

Emfim cheguei á Europa e vi-a. Todas as minhas loucuras e os meus soffrimentos foram compensados pelo sorriso de inexprimivel gozo com que me acolheu.

Sua mãi dizia-lhe que eu ficaria no Rio de Janeiro, mas ella nunca duvidára de mim! Esperava-me como si a tivesse deixado na vespera, promettendo voltar.

Encontrei-a muito abatida da viagem; não soffria, mas estava pallida e branca como uma d’essas Madonas de Raphael, que vi depois em Roma.

Ás vezes uma languidez invencivel a prostava; n’esses momentos um quer que seja de celeste e vaporoso a cercava, como si a alma exhalando-se envolvesse o seu corpo.

Sentado a seu lado, ou de joelhos á seus pés, passava os dias á contemplar essa agonia lenta; sentia-me morrer gradualmente, á semelhança de um homem que vê os ultimos clarões da luz que vai extinguir-se e deixal-o nas trevas.

Uma tarde que ella estava ainda mais fraca tinhamo-nos chegado para a varanda.

A nossa casa em Napoles dava sobre o mar; o sol, transmontando, escondia-se nas ondas; um raio pallido e descorado veio enfiar-se pela nossa janella e brincar sobre o rosto de Carlota, sentada ou antes deitada em uma conversadeira.

Ella abrio os olhos um momento e quiz sorrir; seus labios nem tinham força para desfolhar o sorriso.

As lagrimas saltáram-me dos olhos; havia muito que eu tinha perdido a fé, mas conservava ainda a esperança; esta desvaneceu-se com aquelle reflexo do occaso, que me parecia o seu adeos á vida.

Sentindo minhas lagrimas molharem suas mãos, que eu beijava, ella voltou-se e fixou-me com os seus grandes olhos languidos.

Depois, fazendo um esforço reclinou-se para mim e apoiou as mãos sobre o meu hombro.

— Meu amigo, disse ella com voz debil, vou te pedir uma cousa, a ultima. Tu me promettes cumprir?

— Juro, respondi-lhe eu com a voz cortada pelos soluços.

— D’aqui á bem pouco tempo... d’aqui á algumas horas talvez... Sim! sinto faltar-me o ar!...

— Carlota!...

— Soffres, meu amigo! Ah! si não fosse isto eu morreria feliz.

— Não falles em morrer!

— Pobre amigo, em que deverei fallar então? Na vida?... Mas não vês que a minha vida é apenas um sopro... um instante que breve terá passado?

— Tu te illudes, minha Carlota.

Ella sorrio tristemente.

— Escuta; quando sentires minha mão gelada, quando as palpitações do meu coração cessarem, promettes receber em teus labios a minha alma?

— Meu Deos!...

— Promettes? sim?...

— Sim.

Decorreram instantes. De repente ella tornou-se livida; sua voz suspirou apenas:

— Agora!...

Apertei-a ao peito e collei meus labios aos seus. Era o primeiro beijo de nosso amor, beijo casto e puro, que a morte ia sanctificar.

Sua fronte se tinha gelado, não sentia a sua respiração nem as pulsações de seu seio.

De repente ergueu a cabeça. Si visse, minha prima, que reflexo de felicidade e alegria illuminava n’esse momento seu rosto pallido!

— Oh! quero viver! exclamou ella.

E com os labios entreabertos aspirou com delicia a aura impregnada de perfumes que nos enviava o golpho de Ischia.

Desde esse dia foi pouco a pouco restabelecendo-se, ganhando as forças e a saude; sua belleza reanimava-se e expandia como um botão que por muito tempo privado de sol se abre em flôr viçosa.

Esse milagre, que ella sorrindo e corando attribuia ao meu amor, foi-nos um dia explicado bem prosaicamente por um medico allemão, que fez-nos uma longa dissertação á respeito da medicina.

Segundo elle dizia, a viagem tinha sido o unico remedio, e o que nós tomavamos por um estado mortal não era sinão a crise que se operava, crise perigosa, que podia matal-a, mas que felizmente a salvou.

Casámo-nos em Florença na igreja de Santa Maria Novella.

Percorrêmos a Allemanha, a França, a Italia e a Grecia; passámos um anno n’essa vida errante e nomade, vivendo do nosso amor e alimentando-nos de musica, de recordações historicas, de contemplações de arte.

Creámos assim um pequeno mundo, unicamente nosso; depositámos n’elle todas as bellas reminiscencias de nossas viagens, toda a poesia d’essas ruinas seculares em que as gerações que morrêram fallam ao futuro pela voz do silencio: todo o enlevo d’essas vastas e immensas solidões do mar, em que a alma, dilatando-se no infinito, sente-se mais perto de Deos.

Trouxemos das nossas peregrinações um raio do sol do Oriente, um reflexo da lua de Napoles, uma nesga do céo da Grecia, algumas flôres, alguns perfumes, e com isto enchêmos o nosso pequeno universo.

Depois, como as andorinhas que voltam com a primavera para fabricar o seu ninho no campanario da capellinha em que nascêram, apenas ella recobrou a saude e as suas bellas côres, viemos procurar em nossa terra um cantinho para esconder esse mundo que haviamos creado.

Achámos na quebrada de uma montanha um lindo retiro, um verdadeiro berço de relva suspenso entre o céo e a terra por uma ponta de rochedo.

Ahi abrigámos o nosso amor e vivemos tão felizes que só pedimos á Deos que nos conserve o que nos deu: a nossa existencia é um longo dia, calmo e tranquillo, que começou hontem, mas que não tem amanhã.

Uma linda casa, toda alva e louçã, um pequeno rio saltitando entre as pedras, algumas braças de terra, sol, ar puro, arvores, sombras, — eis toda a nossa riqueza.

Quando nos sentimos fatigados de tanta felicidade, ella arvora-se em dona de casa, ou vai cuidar de suas flôres; eu fecho-me com os meus livros e passo o dia á trabalhar. São os unicos momentos em que não nos vemos.

Assim, minha prima, como parece que n’este mundo não póde haver um amor sem o seu receio e a sua inquietação, nós não estamos isentos d’essa fraqueza.

Ella tem ciumes de meus livros, como eu tenho de suas flôres. Diz que a esqueço para trabalhar; eu queixo-me de que ella ama as suas violetas mais do que á mim.

Isto dura quando muito um dia; depois vem sentar-se ao meu lado e dizer-me ao ouvido a primeira palavra que balbuciou o nosso amor: — No ti scordar di me.

Olhamo-nos, sorrimos e recomeçamos esta historia que lhe acabo de contar, e que é ao mesmo tempo o nosso drama e o nosso poema.

Eis, minha prima, a resposta á sua pergunta: eis porque esse moço elegante, como teve a bondade de chamar-me, fez-se provinciano e retirou-se da sociedade, depois de ter passado um anno na Europa.

Podia dar-lhe outra reposta mais breve, e dizer-lhe simplesmente que tudo isto succedeu porque me atrasei cinco minutos.

D’esta pequena causa, d’esse grão de arêa, nasceu a minha felicidade; d’ella podia resultar a minha desgraça. Si tivesse sido pontual como um Inglez não teria tido uma paixão nem feito uma viagem; mas ainda hoje estaria perdendo o meu tempo á passear pela rua do Ouvidor e á ouvir fallar de politica e de theatro.

Isto prova que a pontualidade é uma excellente virtude para uma machina: mas um grave defeito para um homem.

Adeos, minha prima, Carlota impacienta-se, porque ha muitas horas que lhe escrevo: não quero que ella tenha ciumes d’esta carta e me prive de envial-a.

Minas, 12 de Agosto.

Abaixo da assignatura havia um pequeno post scriptum de uma lettra fina e delicada:

«P. S. — Tudo isto é verdade, D***, menos uma cousa.

Elle não tem ciumes de minhas flôres, nem podia ter, porque sabe que só quando seus olhos não me procuram é que vou visital-as e pedir-lhes que me ensinem á fazer-me bella para agradal-o.

N’isto enganou-a; mas eu vingo-me roubando-lhe um dos meus beijos, que lhe envio n’esta carta.

Não o deixe fugir, prima; iria talvez revelar nossa felicidade ao mundo invejoso.

Carlota