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Clara dos Anjos (romance)/X

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Clara dos Anjos, meio debruçada na janela do seu quarto, olhava as árvores imotas, mergulhadas na sombra da noite, e contemplava o céu profundamente estrelado. Esperava.

Fazia uma linda noite sem luar; era silenciosa e augusta. As árvores erguiam-se hirtas e se recortavam na sombra, como desenhadas. Nem uma aragem corria; mas estava fresco. Não se ouvia a mínima bulha natural. Nem o estridular de um grilo; nem o piar de uma coruja. A noite quieta e misteriosa parecia aguardar quem a interrogasse e fosse buscar no seu sossego paz para o coração.

Clara contemplava o céu negro, picado de estrelas, que palpitavam. A treva não era total, por causa da poeira luminosa que peneirava das alturas. Ela, daquela janela, que dava para os fundos de sua casa, abrangia uma grande parte da abóbada celeste. Não conhecia o nome daquelas jóias do céu, das quais só distinguia o Cruzeiro do Sul. Correu com o pensamento errante toda a extensão da parte do céu que avistava. Voltou ao Cruzeiro, em cujas proximidades, pela primeira vez, reparou que havia uma mancha negra, de um negro profundo e homogêneo de carvão vegetal. Perguntou de si para si:

— Então, no céu, também se encontram manchas?

Essa descoberta, ela a combinou com o transe por que passara. Não lhe tardaram a vir lágrimas; e, suspirando, pensou de si para si:

— Que será de mim, meu Deus?

Se "ele" a abandonasse, ela estava completamente desmoralizada, sem esperança de remissão, de salvação, de resgate... Moça, na flor da idade, cheia de vida, seria como aquele céu belo, sedutoramente iluminado pelas estrelas, que também tinha ao lado de tanta beleza, de tanta luz, de não sabia que sublime poesia, aquela mancha negra como carvão. Cassi a teria de fato abandonado? Ela não podia crer, embora há quase dez dias não a viesse ver. Se ele a abandonasse - o que seria dela? Veio-lhe então perguntar a si mesma como se entregou. Como foi que ela se deixou perder definitivamente?

Clara não podia bem apanhar todas as fases dessa queda; ela se lembrava de poucas e sem nitidez apreciável. Tudo foi num galope para a desgraça... Em começo, a primeira impressão simpática, os gemidos do violão, os seus repinicados, seguidos dos requebros dos olhares do tocador, que os exagerava e punha neles não sei que chama estranha, doce e, ao mesmo tempo, quente. Impressionara-se muito com isso, tão preparada já estava para os efeitos do instrumento. Depois, aquela oposição de todos, aquele falar contínuo nele, para dizer mal, tanto da parte do padrinho, como da parte da mãe e de Dona Margarida. Essa insistência em denegri-lo fizeram que ela representasse, dentro de si mesma, Cassi, como um homem excepcional, que causava inveja a todos, pelas suas qualidades de bravura, pela sua habilidade no canto e na viola. Não acreditava no que diziam dele... Pareceu-lhe, na primeira vez que o viu, tão modesto, tão reservado de modos, tão delicado, que não podia ser o que diziam. Quando conversou com ele, meses depois, pela primeira vez, no gradil de sua casa, mais esse retrato se firmou; as suas conversas eram tão inocentes e honestas, falando sempre em empregar-se e casar-se com ela; removendo as objeções e dúvidas que ela punha quanto à viabilidade do casamento deles, com segurança e franqueza; contrapondo, para mostrar a sua possibilidade, à cor dela, além da grande paixão que nutria, a sua pobreza, a oposição dos pais, a sua falta de posição, de saber - o que não permitia a ele aspirar a grandes casamentos vistosos, com mulher mais bem-educada do que ele, mais instruída...

O seu ideal era Clara, pobre, meiga, simples, modesta, boa dona-de-casa, econômica que seria, para o pouco que ele poderia vir a ganhar...

De dia para dia, ele ganhava mais fortemente a confiança da rapariga. Ela se convencia e sonhava a toda hora com aquela "casa branca da serra", onde iria aninhar o seu amor por Cassi. Indagava, em todas as entrevistas, dos passos que ele dava para obter emprego, colocação; e ele, com blandícia, com afagos, dizia-lhe com açúcar nas palavras:

— Sossega, filhinha querida! Roma não se fez num dia... É preciso esperar... Falei ao doutor Brotero, que me deu uma recomendação para o Senador Carvalhais. Procurei este e ele me disse que, para o Cais do Porto, não podia arranjar... Tinha pedido muito e muito; estava "queimado", como se diz.

Ouvindo tudo isto, Clara sentia-se desfazer, ao calor, à meiguice, ao entono amoroso daquela voz. Era mesmo um bom, um sincero, um namorado, mais que isto, um noivo - esse Cassi.

— Por que você não me "pede" a papai? - perguntou-lhe um dia.

Cassi, sem hesitação, com o mais convincente tom de franqueza, respondeu:

— Não posso ainda, meu bem. Seus pais... É verdade que seu padrinho não existe mais...

A estas palavras, Clara estremeceu e olhou-o medrosa; ele, porém, não percebeu o movimento da rapariga, como ainda não tinha notado as suspeitas que ela tinha, de quando em quando, da intervenção dele no assassinato do padrinho. No começo, Clara quase ficara certa de que ele estava metido no crime; mas, quando, daí a dias, conversou com ele, fosse a emoção da primeira entrevista, fosse a ternura com que a cobria e se expandia por ele todo, ela afastou a convicção e perdeu o terror que ele começara a lhe inspirar. A sua débil inteligência, a sua falta de experiência e conhecimento da vida, aliado tudo isto à forte inclinação que tinha e não sopitava pelo violeiro, agiram sobre a sua consciência, de forma a inocentar, a seus olhos, o tocador de violão, no caso da morte misteriosa do padrinho. Entretanto, de quando em quando, lá lhe vinha uma suspeita, mas ele era tão bom...

Cassi, sem hesitação, respondeu-lhe à pergunta, no mais persuasivo tom de franqueza:

— Não posso ainda, meu bem. Seus pais... É verdade que seu padrinho não existe mais; mas Dona Engrácia não me suporta. Além disso, essa Dona Margarida também não me traga... Que estranho o que se passou com ela e Timbó...

— Você por que anda com ele, Cassi?

— Que hei de fazer? Ele não me faz e não me fez mal; procura-me e não posso correr com ele. É por isso.

— Mas é só por isso que você não me pede? Por causa da implicância que têm com você? Por isso só, não!

— Não é só por isso. É porque estou ainda desempregado. Se eu estivesse empregado, desarmava todos; e - fique você certa - logo que me empregue, peço-te em casamento.

Recordando-se disso, Clara, mais uma vez, contemplou o céu profusamente estrelado; mas, logo, deu com a mancha de alcatrão e ficou triste.

Rememorando conversas e fatos, ela punha todo o esforço em analisar o sentimento, sem compreender o ato seu que permitiu Cassi penetrar no seu quarto, alta noite, sob o pretexto de que precisava se abrigar da chuva torrencial prestes a cair. Ela não sabia decompô-lo, não sabia compreendê-lo. Lembrando-se, parecia-lhe que, no momento, lhe dera não sei que torpor de vontade, de ânimo, como que ela deixou de ser ela mesma, para ser uma coisa, uma boneca nas mãos dele. Cerrou-se-lhe uma neblina nos olhos, veio-lhe um esquecimento de tudo, agruparam-se-lhe as lembranças e as recordações e toda ela se sentiu sair fora de si, ficar mais leve, aligeirada não sabia de quê; e, insensivelmente, sem brutalidade, nem violência de espécie alguma, ele a tomou para si, tomou a sua única riqueza, perdendo-a para toda a vida e vexando-a, daí em diante, perante todos, sem esperança de reabilitação.

Pôs-se a chorar silenciosamente. No seio da noite, um apito de locomotiva ecoou como um gemido; as árvores como que estremeceram; por sobre um capinzal próximo, um pirilampo emitia a sua luz de prata azulada; por cima da casa, morcegos silenciosos esvoaçavam; ao longe, as montanhas tinham aspectos sinistros, de gigantes negros que montavam sentinela; tudo era silêncio, e, em vão, ela apurava o ouvido e reforçava o seu poder de visão, para ver se daquele mistério todo saía qualquer resposta sobre o seu destino - ou se via o caminho para a sua salvação...

Olhou ainda o céu, recamado de estrelas, que não se cansavam de brilhar. Procurou o Cruzeiro, rogou um instante a Deus que a perdoasse e a salvasse. Andou com o olhar no céu, um pouco além; lá estava a indelével mancha de carvão...

"Ele" não vinha; os galos começavam a cantar. Fechou a janela chorando e chorando foi-se deitar. Custou a conciliar o sono; e a visão ameaçadora da descoberta, por parte dos seus, da sua falta, passou-lhe pelos olhos e aterrou-a como um duende, um fantasma.

Em casa e fora, ainda ninguém suspeitava. Os sintomas de gravidez, por ora, não se faziam sentir. É verdade que tinha náuseas, enjôos, sem causa nem motivo; mas ela dissimulava-os tão bem, que sua mãe nada percebia.

Dona Engrácia mesmo era de seu natural pouco sagaz e tinha grande confiança na vigilância que exercia sobre a filha. Joaquim, nos dias úteis, mal via a filha, pela manhã, ao sair, e à noite, quando voltava do serviço.

A morte desgraçada do seu compadre Marramaque o fizera triste, verdadeiramente triste e acabrunhado. A sua amizade era velha, e ele devia favores inolvidáveis ao pobre contínuo. Fora ele quem aperfeiçoara o pouco que ele, Joaquim, sabia, para ser carteiro. Devia-lhe esse serviço espontâneo. Mais de uma vez, arranjara-lhe recomendações para promoções, de modo que o que era, devia de alguma sorte a Marramaque. As partidas de solo, aos domingos, não se realizavam mais. Lafões tinha sido transferido para os mananciais. O sagaz minhoto farejava que aquele negócio de Cassi desandaria em desgraça. Ele não a podia impedir, mas não a queria assistir, tanto mais que se sentia arrependido de ter apresentado o modinheiro em casa do carteiro. Enganou-o, o malandro! Fizera-o de boa-fé...

O único que aparecia ainda, era Meneses. Estava, porém, amalucado, monomaníaco. Fugia de todas as conversas e teimava em expor o seu sistema de carro motor, sem rodas, absolutamente sem rodas. Uma grande descoberta! - arrematava ele.

— A roda, meu caro Joaquim, é um atraso das nossas máquinas. No seu acionamento, devido ao atrito dos eixos nos mancais e outros meios de transmissão da força, perde-se muito do efeito útil desta, proveniente das resistências passivas. Se nós, para nos movermos; se um cavalo, um elefante e todos os animais empregassem rodas para se deslocarem de um ponto para outro, a força que despenderiam seria muitas vezes maior do que a de que efetivamente dispõem. Suprimo as rodas da minha "Andotiva" (é assim que o meu aparelho se chama) e imito o meio de locomover-se dos animais terrestres. Tenho hesitado entre os reptis e os mamíferos; mas vou tomar por modelo estes. Com juntas, jogos combinados de cadeias de distensão e contração, como as nossas cadeiras de molas, obterei uma máquina que, com o mesmo custo de força e combustível que uma locomotiva comum, produzirá o dobro do rendimento útil que esta produz.

Joaquim, ouvindo tudo isto, bocejava; Meneses, inteiramente engolfado no seu sonho mecânico, não percebia que estava enfadando o amigo. Falava, falava sobre a sua sonhada - "Andotiva" - e bebia parati.

Às vezes, jantava com o carteiro e família; mas, na mesa, pouco se dirigia à Clara. Tinha medo que, conversando, traísse o segredo que existia entre ambos.

O velho dentista, mesmo, havia deixado de ver Cassi, e este, por sua vez, evitava-o, temendo que Meneses percebesse os seus propósitos de fuga e contasse a todos, levantando suspeitas em Clara.

Outras vezes, o velho dentista ia procurar Leonardo Flores, para conversar e mesmo jantar com ele. Flores não passava verdadeiramente necessidade. Com a sua aposentadoria e o auxílio que os filhos lhe prestavam, sempre tinha o que comer sem se queixar da fome.

A sua casa, graças à dedicação da mulher, vivia em ordem. Ele não se intrometia em nada da economia do lar. Os seus próprios vencimentos de aposentado, ele ia recebê-los, ou ela, e os entregava intactos. Roupa, jornais, fumo, parati - tudo ela comprava e lhe dava. Em começo, a boa da Dona Castorina quis ver se suprimia a cachaça; mas viu que era pior. Ele caía num abatimento, numa apatia de coisa morta. Resolveu fazer mais este sacrifício ao seu triste casamento: dar cachaça ao marido. Quando ele queria sair, ela lhe dava níqueis para a sua predileta bebida.

As visitas de Meneses eram particularmente agradáveis à mulher de Flores, porque não só distraía o marido, como lhe tirava a vontade de sair.

Flores tinha épocas em que não se movia de casa, senão a muito custo, para ir ao Tesouro receber a sua pensão; mas tinha outra em que se lhe tomava inteiramente o delírio ambulatório. Dona Castorina, embora compreendendo que o marido não podia ficar sempre retido em casa, procurava evitar que ele saísse, devido aos desatinos que praticava. Lá vinha, porém, um dia que...

Quando Meneses ia, aos domingos, procurá-lo, Flores recebia-o com um grandiloqüente palavreado heráldico e fidalgo; mas ele dizia com grande melancolia, com uma mágoa que bem sabia não ter remédio:

— Só tu me procuras, Meneses! Os outros me abandonaram... Ah! A Poesia! Ela me tem dado bons momentos, mas me fez ir longe demais no meu grande serviço...

Punham-se a bebericar e, quando já estavam um tanto "esquentados", cada um dava para a sua mania. Meneses explicava a mecânica sutil da sua "Andotiva"; e Leonardo Flores recitava o seu último soneto, que, embora desconexo, ainda tinha música, uma imponderável nostalgia de coisas entrevistas em sonho, uma obsessão de perfume, que constituíam os característicos de sua poética.

De repente, Meneses punha-se a roncar no sofá, e Leonardo, saindo do seu mundo sonoro de versos e rimas, punha-se de pé e, contemplando o camarada, com os braços cruzados, limitava-se a dizer:

— Imbecil! Dorme imbecil! Filisteu! Burguês!

E voltava a fazer versos, a que era como que forçado até à hora do jantar. Por essa ocasião, despertava Meneses aos berros e debaixo de descomposturas e injúrias poéticas.

O jantar, conforme o hábito das nossas pequenas famílias, nos domingos, era posto à mesa, mais cedo, constituindo o que se chama o "ajantarado". Assim se usava na casa de Flores; mas, em geral, era servido tarde, quase à hora do jantar habitual. A refeição não corria alegre. Meneses tinha a sua mania; Flores a dele; e ambos, durante ela, entregavam-se às suas extravagâncias, falando de coisas que os outros não entendiam. Meneses era calmo; mas o seu amigo comia fazendo esgares, soltando rugidos, cofiando a barba, ainda negra, que terminava num cavaignac pontiagudo.

Dona Castorina, a mulher de Flores, de vez em vez, repreendia-o como a um filho menor:

— Come com modos, Flores! Você parece uma criança.

Raramente acontecia estar presente um dos filhos. Andavam pelo football e a mãe lhes reservava o jantar. Se acontecia o contrário, o rebento do poeta olhava o pai sem nenhuma expressão, sem ânimo de aconselhá-lo e sem insensibilidade para rir. A loucura de Flores era curiosa. Não só ela se manifestava com intermitências de grandes intervalos, como também as havia num curto espaço de um dia. O álcool tinha contribuído para ela; mas, sem ele, a sua alienação mental ter-se-ia manifestado, cedo ou tarde. Todos os que o conheceram moço, sabiam-no de sobra possuidor de diátese da loucura. Os seus tics, os seus caprichos, a sua exaltação e outros sintomas confusamente percebidos levavam os seus íntimos a temerem sempre pela sua integridade mental. A tudo isso, ele juntava, ainda por cima, álcoois fortes, que sempre tomou; whisky, genebra, gim, rum, parati - para se compreender a natureza da insânia de Flores.

Certa vez, após o jantar, tomando café no jardinzinho de sua casa, que ele mesmo cuidava com rara dedicação, de surpreender no seu estado - Leonardo olhou o céu e gritou para Meneses, descansando a xícara sobre uma cadeira ao lado:

— Meneses! Vê só tu como esta tarde está linda! Não é só o ouro e a púrpura do crepúsculo que vêm; não é só o azul-ferrete dos morros que, com o aproximar-se a noite, se vai enegrecendo aos poucos... Há mais, caro Meneses; há verde no céu, um verde imaterial que não é o do mar, que não é o das árvores, que não é o da esmeralda, que não é o dos olhos de Minerva - é um verde celestial, diferente de todos aqueles que nós habitualmente vemos... Vamos sair, vamos gozar a natureza!

— Deixa-te disso, Flores. Daqui mesmo, nós vemos...

— Idiota! Não és um artista... Se não me acompanhas, saio só!...

Dona Castorina interveio naturalmente:

— Para que vais sair, Leonardo? Estás tão bem aqui com o "Seu" Meneses... Precisas de repouso, descanso...

— Mulher! Sabes quem eu sou? - fez Flores, com o seu modo habitual de cruzar os braços e enterrar o queixo no peito, quando falava com solenidade.

— Sei muito bem. És Leonardo Flores, meu marido - respondeu-lhe a mulher, sorrindo.

— Não sou só isso. Sou mais! - insistiu Flores, carrancudo.

— O que és, então? - perguntou-lhe Dona Castorina.

— Sou um poeta!

Dizendo isto, entrou pela sala adentro e encaminhou-se para o quarto de dormir.

— Onde vais? - indagou-lhe a mulher.

— Vou me vestir; quero ver este crepúsculo de pedraria, de metais caros, de sonhos e de quimeras. Sou um poeta, mulher!

Dona Castorina já sabia que, quando lhe dava essa fúria de sair, era pior contrariá-lo. Nada disse ao marido e foi pedir a Meneses que o acompanhasse. O velho dentista não se sentia bem; o seu desejo era descansar; mas, à vista do pedido de Dona Castorina, não teve outro remédio senão acompanhar o camarada. Andaram a pé por toda a parte, bebendo sempre onde encontravam lugar propício; Meneses, arrastando o passo; e Flores, dilatando as narinas, fazendo horríveis contrações com o rosto, alisando o cavaignac e dizendo:

— Que beleza! Que beleza! Quero respirar, cheirar, absorver todo o perfume desse divino crepúsculo... Não fora a natureza, os céus, os pássaros, as águas múrmuras, como poderíamos viver?

Depois de uma pausa, acrescentou desolado:

— A vida é tão banal, tão chata... Nós somos também natureza; mas do que nos vale isto? Há os burgueses e os regulamentos que nos abafam...

Já tinha anoitecido de todo. Leonardo Flores não dava mostras de querer voltar para casa; Meneses arrastava o passo a muito custo. Iam atravessando um trecho deserto de rua, quando o velho dentista disse para o amigo:

— Leonardo, estou com as pernas que não posso. Vamos descansar um pouco.

— Onde?

— Sentados na relva, um pouco longe da estrada, ali, atrás daquela moita... Estou que não posso, meu caro.

Os dois abandonaram o caminho público e procuraram a tal moita. Meneses, com muita dificuldade, sentou-se; mas Leonardo foi logo se deitando. Tinham bebido muito, e a embriaguez lhes chegava. Leonardo ainda pôde dizer, olhando as estrelas que começavam a brilhar:

— Como é belo o céu! Lá não haverá por certo ministros, nem congresso, nem presidentes... Que bom será!

O dentista não se demorou muito tempo sentado; deitou-se logo; e Leonardo, mal dissera aquelas palavras, ferrou no sono. Dormiram afinal, na relva, com os olhos voltados para o céu estrelado...



Leonardo, já dia adiantado, veio a despertar naquele capinzal, atordoado, zonzo; e, ao dar com Meneses ao lado, procurou acordá-lo. Foi em vão; o velho estava morto. Um colapso cardíaco o tinha levado. Percebendo que o amigo tinha morrido, Leonardo ergueu-se, tirou-lhe o chapéu de perto da cabeça, pôs-lhe o rosto bem à mostra, com as suas brancas barbas veneráveis, e começou a exclamar:

— Sol! Sol glorioso das auroras e das ressurreições! Sol divino que conténs todos nós, homens e plantas, bestas e gênios, insetos e vampiros, lesmas e belezas! Sol que tudo fecundas e transformas! Vem tu - ó Sol! - beijar esta augusta cabeça de imperador (apontava para Meneses hirto) que vai para sempre mergulhar na treva e só te verá de novo, quando for árvore, quando for arbusto, quando for pássaro e quando de novo voltar a ser homem. Beija-o ainda mais uma vez! Beija-o, porque ele te amou e muitas vezes voou para os espaços sidéreos, desejoso de ver o teu fulgor e morrer por tê-lo visto.

Não dera fé, Leonardo, que alguns transeuntes haviam parado, para ouvir as suas palavras e ver os seus estranhos trejeitos. Os mais curiosos se aproximaram e deram com aquele estranho e bizarro espetáculo de um homem, que parecia louco ou bêbedo, a pronunciar coisas incompreensíveis e a gesticular, diante de um pobre velho morto. Chamaram a polícia; e lá foi Leonardo, gesticulando e falando só, para a delegacia. Meneses tomou o caminho do necrotério, após fotografias e outras precauções policiais.

O primeiro movimento do policial que recebeu Leonardo, foi removê-lo incontinenti para o hospício ou lugar equivalente. Na verdade, o poeta não dizia coisa com coisa; nem mesmo quem era, informava. Muitos o conheciam de vista, mas, para essas pessoas, era simplesmente - "o poeta". Em chegando Praxedes, as coisas mudaram. Tinha ele o hábito de ir de manhã às delegacias, ver se pegava algum biscate, alguma coisa. Indo, naquele dia, topou com Leonardo lá e soube que um velho, que bebia muito e costumava estar com ele, havia sido encontrado morto junto a Flores e fora removido para a morgue. Viu logo que se tratava de Meneses. Muito prestável, obsequioso de gênio, Praxedes, para quem a polícia não tinha segredos, informou ao comissário quem era Leonardo e quem era Meneses. A autoridade policial encarregou-o de prevenir os parentes e amigos de ambos do que havia acontecido. Praxedes correu à casa de Joaquim dos Anjos, para desobrigar-se da missão. Foi recebido pela mulher e a filha.

— Quincas não está aí - disse-lhe Dona Engrácia. - Ele saiu cedo...

— O senhor pode telefonar para a Repartição dos Correios - lembrou Clara.

— Lembrei-me disso, mas não sabia a seção.

A filha disse-lhe e o doutor Praxedes, muito diplomaticamente, ergueu-se todo e, ao despedir-se das senhoras, desculpou-se:

— Vossas Excelências hão de me perdoar. Não podia deixar de vir até aqui. Sabia de dois amigos íntimos do doutor Meneses; um era o Senhor Cassi, mas este está fora...

Clara espantou-se:

— Está fora!

— Ué, Clara! - fez Dona Engrácia, - Que espanto!

— Não, porque ainda há dias "Seu" Meneses disse a papai que estivera com ele - fez Clara disfarçando.

— Deve ser há algum tempo, minha senhora -- aventou Praxedes, com toda a delicadeza de voz; -- porque há bem quinze dias que embarcou para São Paulo, em Cascadura. Eu até me despedi dele...

Praxedes saía e Clara, logo que pôde, correu ao quarto para chorar. Estava irremediavelmente perdida; ele a abandonava de vez. Como havia de ser? Como havia de esconder a gravidez, que se ia mostrando aos poucos? Que fariam dela os seus pais? Era atroz o seu destino!

Todas essas perguntas, ela formulava e não lhes dava resposta. Cassi partira, fugira... Agora, é que percebia bem quem era o tal Cassi. O que os outros diziam dele era a pura verdade. A inocência dela, a sua simplicidade de vida, a sua boa-fé, e o seu ardor juvenil tinham-na completamente cegado. Era mesmo o que diziam... Por que a escolhera? Porque era pobre e, além de pobre, mulata. Seu desgraçado padrinho tinha razão... Fora Cassi quem o matara.

Ele contava, já não se dirá com o apoio, mas com a indiferença de todos pela sorte de uma pobre rapariga como ela. Devia ser assim, era a regra. Nessa indiferença, nessa frouxidão de persegui-lo, de castigá-lo convenientemente, é que ele adquiria coragem para fazer o que fazia. Além de tudo, era covarde. Não cedia ao impulso do seu desejo, de seu capricho, por uma moça qualquer. Catava com cuidado as vítimas entre as pobres raparigas que pouco ou nenhum mal lhe poderiam fazer, não só no que toca à ação das autoridades, como da dos pais e responsáveis.

Estava aí o seu forte; o mais eram acessórios de modinhas, de tocatas de violão, de cartas, de suspiros - todo um arsenal de simulação amorosa, que ele, sem caráter e, por demais, cínico, sabia empregar, como ninguém.

Que havia de ser dela, agora, desonrada, vexada diante de todos, com aquela nódoa indelével na vida?

Sentia-se só, isolada, única na vida. Seus pais não a olhariam mais como a olhavam; seus conhecidos, quando soubessem, escarneceriam dela; e não haveria devasso por aí que a não perseguisse, na persuasão de que quem faz um cesto, faz um cento. Exposta a tudo, desconsiderada por todos, a sua vontade era de fugir, esconder-se. Mas, para onde? Com a sua inexperiência, com a sua mocidade, com a sua pobreza, ela iria atirar-se à voracidade sexual de uma porção de Cassis ou piores que ele, para acabar como aquela pobre rapariga, a quem chamavam de Mme. Bacamarte, suja, bebendo parati e roída por toda a sorte de moléstias vergonhosas.

Pensou em morrer; pensou em se matar; mas, por fim, chorou e rogou a Nossa Senhora que lhe desse coragem. Se pudesse esconder?... - acudiu-lhe repentinamente este pensamento. Se pudesse "desfazê-lo"? Seria um crime, havia perigo de sua vida; mas era bom tentar. Quem lhe ensinaria o remédio? Correu o rol de suas poucas amigas; e só encontrou uma: Dona Margarida.

Nisto, sua mãe gritou-lhe do fundo da casa:

— Clara, estás dormindo? Olha que estão batendo na porta.

— Já vou, mamãe.

Era o estafeta dos telégrafos, que trazia um despacho do pai, comunicando que, devido a ter de fazer o enterro de Meneses, chegaria mais tarde, mas viria jantar.

Ela e a mãe não esperaram; jantaram antes. Clara, muito preocupada com o "remédio" que ia ver se Dona Margarida lhe arranjava; e Dona Engrácia, aborrecida com a morte de Meneses.

— Pobre Meneses! - dizia ela. - Morrer assim, no mato! Por que ele não foi pra casa? Era bem velho, não era, Clara?

— Devia ter mais de setenta anos.

— Isto não quer dizer nada. Há quem dure mais... Você tem reparado, Clara, que, de uns tempos para cá, está nos acontecendo uma porção de coisas más?

— Nem tantas! Duas só: a morte do padrinho e...

— Você acha pouco e, ainda por cima, da forma que elas nos chegam! Deus nos proteja! Tenho para mim que alguma está para nos acontecer...

— Qual, mamãe! Tudo isto é doloroso, mas são fatos que se dão...

— Felizmente, esse azar de Cassi se foi. Que vá pro diabo que o carregue!

Clara teve vontade de chorar; mas conteve-se. Estava resolvida: amanhã, pediria um "abortivo" a Dona Margarida.

Joaquim dos Anjos chegou e narrou tudo o que acontecera com Meneses e Leonardo. Aquele, por não ter ninguém que lhe fizesse o enterro, ele o fizera; e Leonardo, logo que foi afastada a hipótese de crime e ficou sabido o seu estado mental, entregaram-no à mulher. Ao chegar em casa, acompanhado de Dona Castorina, foi que Flores caiu em si e teve consciência perfeita do fim do amigo. Estava lúcido, bom; estava o verdadeiro Leonardo, que chorou o falecimento do camarada, sem mescla de delírio, pressentindo que, nele, havia aviso do seu próximo fim.

Engrácia ouviu a narração de Quincas e, ingenuamente, perguntou-lhe:

— Esse Leonardo é mesmo homem de inteligência, Quincas?

— É, Engrácia. Por quê?

— Por que ele então bebe tanto?

— Quem sabe lá? Vício, hábito, capricho da sua natureza, desgostos, ninguém sabe! - observou o marido.

— Eu vejo tanto doutor por aí que não bebe.

— Você pensa que todo doutor é inteligente, Engrácia?

— Pensei.

Clara ficou admirada de que a opinião da mãe não fosse exata. Ela também, muito popular e estreita de idéia, admitia que toda a espécie de doutor fosse de sábios e inteligentes.

Joaquim, dizendo-se cansado, fora logo deitar-se; e, em seguida, a sua mulher e filha.

Em breve, tudo era silêncio na casa e na rua. Clara não esperava mais, com a janela semi-aberta, a visita do sedutor. Havia-se fatigado de aguardá-lo muitas noites seguidas; e, agora então, depois da informação de Praxedes, tinha perdido toda a esperança. Ele fugira, e ela ficara com o filho a gerar-se no ventre, para a sua vergonha e para tortura de seus pais. Imediatamente, o seu pensamento se encaminhou para o "remédio" que devia "desmanchá-lo", antes que lhe descobrissem a falta. Tinha medo e tinha remorsos. Tinha medo de morrer e tinha remorsos de "assassinar" assim, friamente, um inocente. Mas... era preciso. Pôs-se a examinar o que lhe podia responder Dona Margarida. Pesou os prós e os contras; analisou bem o caráter da amiga russa-alemã; e, na calma do quarto, percebeu bem que não lhe daria nem indicaria o "remédio" criminoso. Margarida era uma mulher séria, rigorosa de vontade, visceralmente honesta, corajosa, e não haveria rogos nem choro que a fizessem contribuir para um crime de qualquer natureza. Então, como havia de ser? Examinou a lista das conhecidas, a ver se encontrava uma que lhe prestasse esse "serviço"... Não encontrou, e também eram tão poucas... Se tivesse dinheiro, com auxílio de Mme. Bacamarte... Acudiu-lhe então uma idéia. Ela ajudava Dona Margarida nos bordados e nas costuras, com o que já ganhava algum dinheiro. Não tinha nada a haver da amiga; mas bem lhe podia pedir emprestado, sob qualquer pretexto, uns vinte ou trinta mil-réis e pagá-los com trabalho. Qual seria o pretexto? Pensou, combinou mentiras; e, afinal, encontrou-o. Diria que era para comprar um presente destinado à mãe, cujo aniversário natalício estava a chegar. Sorriu de contentamento, quando organizou toda aquela mentiralhada. Julgava-se salva; mas, com o que ela não contava, era com a sagacidade da alemã.

Dona Margarida era mulher alta, forte, carnuda, com uma grande cabeça de traços enérgicos, olhos azuis e cabelos castanhos tirando para louro. Toda a sua vida era marcada pelo heroísmo e pela bondade. Embora nascida em outros climas e cercada de outra gente, o seu inconsciente misticismo humanitário, herança dos avós maternos, que andavam sempre às voltas com a polícia dos czares, fê-la logo se identificar com a estranha gente que aqui veio encontrar. Aprendeu-lhe a linguagem, com seus vícios e idiotismos, tomou-lhe os hábitos, apreciou-lhe as comidas, mas sem perder nada da tenacidade, do esprit de suite, da decidida coragem da sua origem. Gostava muito da família do carteiro; mas, no seu íntimo, julgava-os dóceis demais, como que passivos, mal armados para a luta entre os maus e contra as insídias da vida.

Quando Clara lhe falou no empréstimo ou adiantamento, ela se espantou. Nunca a filha do "correio" lhe havia feito semelhante pedido - o que queria dizer aquilo? Não respondeu logo à solicitação e encarou firmemente, com o seu olhar translúcido e, no momento, duro, a filha do carteiro; e, por sua vez, indagou:

— Para que você quer esse dinheiro, Clarinha?

A moça, não podendo suportar a mirada da alemã, abaixara os olhos; e, com voz sumida, explicou o suposto destino que ia dar à quantia pedida. Dona Margarida não acreditou; e, continuando com o olhar a sondar inquisitorialmente Clara, observou com energia maternal:

— Clara, você não fala a verdade; você está escondendo alguma coisa.

A moça quis negar; mas Dona Margarida, pressentindo que ela ocultava alguma coisa de grave, cercou-a de perguntas; e Clara não teve outro remédio senão confessar tudo. Ela chorou, mas Dona Margarida, sem se deixar comover, durante toda a confissão, mais arrancada aos poucos do que mesmo narrada espontaneamente, foi pensando como agir. Encheu-se, Dona Margarida, de uma infinita pena daquela desgraçada rapariga, dos seus pais, e mais profunda se tornava a pena, quando antevia o horrível destino da pobre Clara; entretanto, não deu qualquer demonstração do que lhe ia n'alma.

Num dado momento, sem dar-lhe a mínima explicação, Dona Margarida ergueu-se e, dirigindo-se à Clara, ordenou imperiosamente:

— Vamos falar à sua mãe.

A filha do carteiro, sem fazer a mínima objeção, obedeceu. Ao chegar à casa de Joaquim, Dona Engrácia estava no interior, inocentemente entregue aos seus afazeres domésticos. Entretanto, Dona Margarida chamou de parte a mãe de Clara e começou a narrar-lhe o que havia acontecido com a filha. Dona Engrácia não se pôde conter. Logo que compreendeu a gravidade do fato, pôs-se a chorar copiosamente, a lastimar-se, a soluçar, dizendo entre um acesso de choro e outro:

— Mas, Clara!... Clara, minha filha!... Meu Deus, meu Deus!

A filha aproximou-se chorando; ajoelhou-se, ajuntou as mãos, em postura de oração, aos pés da mãe e, soluçando, repetiu:

— "Me perdoe", mamãe! "Me perdoe", pelo amor de Deus!

Dona Margarida, de pé, nada dizia e olhava com profunda e desmedida tristeza, que não se adivinhava na sua calma e na segurança do seu olhar, aquele quadro desolador do enxovalhamento de um pobre lar honesto.

Afinal, quando lhe pareceu que ambas estavam mais calmas, interveio:

— Você sabe, Clara, onde mora a família desse sujeito?

Clara, ainda soluçando, respondeu:

— Sei.

Dona Engrácia indagou:

— Para quê?

Dona Margarida explicou que, antes de qualquer procedimento e mesmo de comunicar o fato a "Seu" Joaquim, era conveniente entender-se com a família de Cassi. Ela, Dona Margarida, iria imediatamente à casa dele, acompanhada de Clara. Mãe e filha concordaram; e Clara vestiu-se.

A residência dos pais de Cassi ficava num subúrbio tido como elegante, porque lá também há estas distinções. Certas estações são assim consideradas, e certas partes de determinadas estações gozam, às vezes, dessa consideração, embora em si não o sejam. O Méier, por exemplo, em si mesmo não é tido como chique; mas a Boca do Mato é ou foi; Cascadura não goza de grande reputação de fidalguia, nem de outra qualquer prosápia distinta; mas Jacarepaguá, a que ele serve, desfruta da mais subida consideração.

A casa da família do famoso violeiro não ficava nas ruas fronteiras à gare da Central; mas, numa transversal, cuidada, limpa e calçada a paralelepípedos. Nos subúrbios, há disso: ao lado de uma rua, quase oculta em seu cerrado matagal, topa-se uma catita, de ar urbano inteiramente. Indaga-se por que tal via pública mereceu tantos cuidados da edilidade, e os historiógrafos locais explicam: é porque nela, há anos, morou o deputado tal ou o ministro sicrano ou o intendente fulano.

Tinha boa aparência a residência da família do Senhor Azevedo; mas quem a observasse com cuidado, concluiria que a parte imponente dela, a parte da cimalha, sacadas gradeadas e compoteiras ao alto, era nova. De fato, quando o pai de Cassi a comprou, a casa era um simples e modesto chalet, mas, com o tempo, e com ser sua vagarosa, mas segura, prosperidade, pôde ir, também devagar, aumentando o imóvel, dando um aspecto de boa burguesia remediada. Na frente, não era alto; o terreno, porém, inclinava-se rapidamente para os fundos, de forma que, nessa parte, havia um porão razoável, onde, ultimamente, habitava Cassi. O puxado, na traseira da casa, também tinha porão, porém, com maus quartos, que eram ocupados pelas galinhas do filho e por coisas velhas ou sem préstimo, que a família refugava, sem querer pôr fora de todo.

Dona Margarida tocou a campainha com decisão e subiu a pequena escada que dava acesso à casa. Disse à criada que desejava falar à dona da casa. Dona Salustiana, que esperava tudo, menos aquela visita portadora de semelhante mensagem, não tardou em mandar entrar as duas mulheres. Ambas estavam bem-vestidas e nada denunciava o que as trazia ali. Só Clara tinha os olhos vermelhos de chorar, mas passava despercebido. Chegou Dona Salustiana e cumprimentou-as com grandes mostras de si mesma. Dona Margarida, sem hesitação, contou o que havia. A mãe de Cassi, depois de ouvi-la, pensou um pouco e disse com ar um tanto irônico:

— Que é que a senhora quer que eu faça?

Até ali, Clara não dissera palavra; e Dona Salustiana, mesmo antes de saber que aquela moça era mais uma vítima da libidinagem do filho, quase não a olhava; e, se o fazia, era com evidente desdém. A moça foi notando isso e encheu-se de raiva, de rancor por aquela humilhação por que passava, além de tudo que sofria e havia ainda de sofrer.

Ao ouvir a pergunta de Dona Salustiana, não se pôde conter e respondeu como fora de si:

— Que se case comigo.

Dona Salustiana ficou lívida; a intervenção da mulatinha a exasperou. Olhou-a cheia de malvadez e indignação, demorando o olhar propositadamente. Por fim, expectorou:

— Que é que você diz, sua negra?

Dona Margarida, não dando tempo a que Clara repelisse o insulto, imediatamente, erguendo a voz, falou com energia sobranceira:

— Clara tem razão. O que ela pede é justo; e fique a senhora sabendo que nós aqui estamos para pedir justiça e não para ouvir desaforos.

Dona Salustiana voltou-se para Dona Margarida e perguntou, pronunciando, devagar, as palavras, como para se dar importância:

— Quem é a senhora, para falar alto em minha casa?

Dona Margarida não se intimidou:

— Sou eu mesma, minha senhora; que, quando se decide a fazer alguma coisa de justo, nada a atemoriza.

Foi calmamente que Dona Margarida falou; e, à vista dessa atitude, Dona Salustiana resolveu mudar de tática. Gritou para as filhas:

— Catarina! Irene! Venham cá que esta mulher está me insultando.

As moças acudiram e, contemplando o ar enérgico da teuto-eslava e a figura lastimosa de Clara, compreenderam que Cassi estava no meio. Acalmaram a mãe e indagaram do sucedido; Dona Margarida explicou; mas, quando se falou em casamento de Cassi, Dona Salustiana prorrompeu:

— Ora, vejam vocês, só! É possível? É possível admitir-se meu filho casado com esta...

As filhas intervieram:

— Que é isto, mamãe?

A velha continuou:

— Casado com gente dessa laia... Qual!... Que diria meu avô, Lord Jones, que foi cônsul da Inglaterra em Santa Catarina - que diria ele, se visse tal vergonha? Qual!

Parou um pouco de falar; e, após instantes, aduziu:

— Engraçado, essas sujeitas! Queixam-se de que abusaram delas... É sempre a mesma cantiga... Por acaso, meu filho as amarra, as amordaça, as ameaça com faca e revólver? Não. A culpa é delas, só delas...

Dona Margarida ia perguntar: "Que decide, então?" - quando se ouviram passos na escada. Era o dono da casa. Entrando e deparando-se-lhe aquele quadro, suspendeu os passos e parou no meio da sala.

Olhou tudo e todos e perguntou:

— Que há?

"Papai" - ia dizendo uma das filhas; - mas sabendo, por aí, quem era aquele homem, Clara correu para ele, ajoelhou-se e implorou:

— Tenha pena de mim, "Seu" Azevedo! Tenha pena de uma infeliz! Seu filho me desgraçou!

O velho Azevedo descansou os embrulhos, levantou a moça, fê-la sentar-se; e ele, sentando-se por sua vez, pôs-se a olhar, cheio de pena, o dorido rosto da rapariga. Todos os olhos se fixaram nele; ninguém respirava. Afinal, Azevedo falou:

— Minha filha, eu não te posso fazer nada. Não tenho nenhuma espécie de autoridade sobre "ele"... Já o amaldiçoei... Demais, "ele" fugiu e eu já esperava que essa fuga fosse para esconder mais alguma das suas ignóbeis perversidades... Tu, minha filha, te ajoelhaste diante de mim ainda agora. Era eu que devia ajoelhar-me diante de ti, para te pedir perdão por ter dado vida a esse bandido - que é o meu filho... Eu, como pai, não o perdôo; mas peço que Deus me perdoe o crime de ser pai de tão horrível homem... Minha filha, tem dó de mim, deste pobre velho, deste amargurado pai, que há dez anos sofre as ignomínias que meu filho espalha por aí, mais do que ele... Não te posso fazer nada... Perdoa-me, minha filha! Cria teu filho e me procura se...

Não acabou a frase. A voz sumiu-se; ele descaiu o corpo sobre a cadeira e os olhos se foram tornando inchados.

As filhas acudiram, a mulher também; e uma daquelas, chorando, pediu à Clara e à Dona Margarida:

— É favor, minhas senhoras; retirem-se, sim?

Na rua, Clara pensou em tudo aquilo, naquela dolorosa cena que tinha presenciado e no vexame que sofrera. Agora é que tinha a noção exata da sua situação na sociedade. Fora preciso ser ofendida irremediavelmente nos seus melindres de solteira, ouvir os desaforos da mãe do seu algoz, para se convencer de que ela não era uma moça como as outras; era muito menos no conceito de todos. Bem fazia adivinhar isso, seu padrinho! Coitado!...

A educação que recebera, de mimos e vigilâncias, era errônea. Ela devia ter aprendido da boca dos seus pais que a sua honestidade de moça e de mulher tinha todos por inimigos, mas isto ao vivo, com exemplos, claramente... O bonde vinha cheio. Olhou todos aqueles homens e mulheres... Não haveria um talvez, entre toda aquela gente de ambos os sexos, que não fosse indiferente à sua desgraça... Ora, uma mulatinha, filha de um carteiro! O que era preciso, tanto a ela como às suas iguais, era educar o caráter, revestir-se de vontade, como possuía essa varonil Dona Margarida, para se defender de Cassis e semelhantes, e bater-se contra todos os que se opusessem, por este ou aquele modo, contra a elevação dela, social e moralmente. Nada a fazia inferior às outras, senão o conceito geral e a covardia com que elas o admitiam...

Chegaram em casa; Joaquim ainda não tinha vindo. Dona Margarida relatou a entrevista, por entre o choro e os soluços da filha e da mãe.

Num dado momento, Clara ergueu-se da cadeira em que se sentara e abraçou muito fortemente sua mãe, dizendo, com um grande acento de desespero:

— Mamãe! Mamãe!

— Que é minha filha?

— Nós não somos nada nesta vida.