Como budistas...

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Tenho tanto que escrever, sobre coisas tão interessantes, que, agora, o tratar dessa notícia de polícia de São Paulo, eu me arrependo. Tinha de falar do Sol de Portugal. do José Vieira; tinha de falar desse extraordinário discurso do senhor doutor Ildefonso Albano, deputado federal.

Há tanta coisa tão interessante, num e noutro livro, que eu me reservo para dizer tudo o que de bom encontrei neles, mais tarde.

O que me absorve agora o pensamento é este caso dessa pobre moça que matou o marido em São Paulo. É essa moça que, como todas as moças, não tem experiência da vida e são levadas a julgá-la da maneira mais infame que os charlatães a receitam.

Ela pensou que seu marido fosse um homem; ele, quando ela o conheceu direito, não passava de um caçador de dotes.

Todos nós, inclusive eu, malgré tout,estamos arriscados a casar com "moça rica"; mas de que nós não estamos ameaçados é de sermos maus para essas moças.

O que há nisto tudo é a combinação do nosso espírito muito brasileiro de acreditar que o "doutor" é tudo e a crença universal do dinheiro.

Essa moça não se casaria com esse moço, se não o visse armado de um "anel"; ela não daria seu corpo se a ambiência social não dissesse que, com a tal carta, ele valia muitas coisas.

E ele não iria procurá-la, se não estivesse armado do que a bobagem dos jornais chama "pergaminho".

Houve um mútuo engano. Ele procurou enganar a mulher com o título que o Belisário Pena diz ser científico; ela procurou enganá-lo com aquilo com que os homens enrique­cem.

Mas, todos os dois se esqueceram que entre mulher e marido não há furtos. Está no Código Penal.

Entre os dois só deve haver a máxima lealdade. Todos os dois devem entrar na sociedade conjugal com a máxima boa vontade e admiração um pelo outro. O que não pode continuar, é que se faça da mulher, escada para subir.

Nós temos direito de ter ambições. Eu mesmo quero morrer em Veneza, para ver se ainda lá encontro a minha grande paixão - Desdêmona. O que eu não posso compreender, é que um homem ambicioso, transforme a sua mulher, o seu maior amigo, a sua própria filha, em instrumento da sua am­bição.

Todos esses entes são sagrados; para todos eles, o nosso amor e a nossa piedade devem ser coisa muito pouca.

Quando a gente se quer bater, tem muitos homens por diante; e não precisa procurá-los em sua própria casa.

A vida, apesar de não poder ser uma felicidade, deve ser uma coisa heróica.

E não há homem que tenha esse sentimento de heroísmo que não o deseje encontrar nas mulheres escolhidas.

A mulher não é instrumento de ambição; a mulher é um consolo e um conforto para os nossos vícios e as nossas des­graças.

Já fui muitas vezes jurado; já sofri muito por causa disso; mas, se eu fosse escolhido, para o júri de da .Julieta Melilo, eu a absolveria.

Absolvia, minha senhora, porque não gosto desses seres cheios de títulos, que não amam a mulher a quem eles de­viam amor.

Como eu sou budista, o que eu quero é o esquecimento da vida; e não mais tratarei de semelhante caso.

A.B.C., Rio, 31-8-1918.