Contos Populares Portuguezes/O menino assafroado

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O MENINO ASSAFROADO


Era uma vez um rei que era casado, mas não tinha filho, o que fazia com que elle e a sua mulher vivessem muito descontentes. Pediam constantemente a Deus que lhe désse um filho e sabendo que havia uma velha de grandes virtudes mandaram-na chamar a palacio para lhe pedirem que rogasse a Deus que os ouvisse. Então a velha disse-lhe um dia que a rainha havia de ter uma creança, mas que se essa creança fosse menino, quando fosse homem seria tão mao que faria a desgraça de seus paes, e que se fosse menina teria má sorte, mas que escolhessem elles o que queriam. O rei disse que antes queria uma menina, pois em sendo mulher havia de saber guardal-a, que não lhe succedesse nenhuma desgraça. Teve a rainha uma menina e logo o rei mandou uma ama para uma torre com a menina. Alli não viam ninguem, nem saiam fóra, porque o rei guardava as chaves da torre. A menina foi crescendo e perguntava á ama: «Não ha mais mundo do que este? não ha mais gente do que nós?» A ama respondia-lhe sempre que não.

Já a menina estava como uma senhora, e o desejo de sair da torre era cada vez maior. Um dia por acaso levantou uma ponta da alcatifa do quarto onde dormia e viu um buraco no chão, por onde saia muita claridade; a menina, cheia de curiosidade, fez o buraco maior, metteu-se n'elle e viu logo uma escada; desceu a escada e foi ter a um lindo jardim; chegada ao jardim, viu outra escada; subiu-a e foi ter a um palacio; depois entrou e foi dar a um quarto muito asseado, que tinha uma cama, tambem muito asseada. Como a noite chegasse e ella tivesse somno, deitou-se na cama e adormeceu. O quarto e a cama pertenciam a um conde, e elle, á hora do costume foi-se deitar e encontrou a menina na cama. De madrugada emquanto o conde estava a dormir, a menina levantou-se e foi-se para a torre. O conde levantou-se mais tarde e foi ter com a mãe e disse-lhe: «Minha mãe, não sabe? quando hontem me fui deitar encontrei uma menina muito linda na minha cama, mas foi-se de madrugada sem que eu désse por isso». Respondeu-lhe a mãe: «Olha, filho; é muito provavel que ella volte e por isso põe uma campainha e tu accordes e vai seguil-a para ver para onde ella vae.» Á noite a menina foi outra vez deitar-se na cama e o conde poz a campainha na porta, mas ella quando de madrugada se levantou tirou-a e levou-a, sem que o conde désse por tal. Foi-se elle ter outra vez com a mãe e contou-lhe o succedido e ella respondeu-lhe: «Esta noite porás á porta uma bacia cheia de agua de assafrão; a menina quando sair hade molhar a anagoa e depois deve deixar a casa molhada por onde passar e por este rasto é que tu has de saber para onde ella vae.»

Fez o conde o que a mãe lhe ensinara, mas a menina quando molhou a anagoa na agua de assafrão, em vez de a levar de rastos, levantou-a para não molhar o chão. A menina não voltou ao quarto do conde e elle andava muito apaixonado. Passado tempo a menina teve um menino muito lindo, que vestiu com uma saia feita da anagoa que tinha molhado na agua de assafrão e a que poz ao pescoço a campainha que tinha trazido do quarto do conde e foi metter o menino na cama d'elle, sem que ninguem désse por tal. Á noite o conde encontrou lá o menino e foi ter com a mãe e disse-lhe: «Minha mãe, encontrei este menino na minha cama.» Ella examinou a saia assafroada e a campainha e disse-lhe: «Não ha duvida que é teu filho e deves creal-o».

Quando o menino chegou á edade de tres annos mandou o conde a um creado que levasse aquelle menino a muitas terras e fosse dizendo: «Quem quer ver o menino assafroado?» e que se visse que alguma mulher se commovia ao vel-o que reparasse bem n'ella e lh'o viesse dizer. Ora o menino levava vestida a saia assafroada e ao pescoço a campainha.

O creado correu muitas terras, mas não viu nenhuma mulher commover-se. Já o conde ia perdendo a esperança de encontrar a mãe do seu filho, quando, indo um dia ao palacio do rei, este lhe disse: «Conde, ouvi dizer que tens um filho muito lindo; admira que ainda não o trouxesses a palacio.» Respondeu-lhe o conde: «Eu não sabia que vossa magestade desejava ver meu filho, mas visto isso amanhã cá o mando.» Ora o rei estava bem longe de saber que a filha que estava na torre era a mãe do menino e tinha dito um dia para a rainha: «É melhor mandarmos vir a nossa filha para palacio, pois ella agora já não se perde.» A princeza tinha vindo para palacio. Chegou o creado do conde com o menino e o rei gabou muito a creança e chamou a rainha e a filha para o virem ver. A princeza quando viu a creança commoveu-se muito e fez-lhe muitas caricias, dizendo: «Ai meu menino assafroado!» Não escapou isto ao creado que foi logo dizer ao conde: «Saiba, senhor conde, que a princeza é a mãe do seu filho.» Ficou o conde muito contente e foi logo a correr a palacio e disse ao rei: «Então vossa magestade gostou de meu filho?» O rei respondeu: «Gostei muito». «Pois saiba vossa magestade que eu lhe venho pedir a mão da princeza sua filha.» «Oh conde! attreves-te a tanto?» «Attrevo-me porque a princeza é a mãe de meu filho.» O rei chamou a princeza e sabendo a verdade casou-a com o conde e foram muito felizes.

(Coimbra.)