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Contos do Norte (Marques de Carvalho)/Conto do natal

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CONTO DO NATAL

 

O velho padre Jacintho estava já abroquelado na dupla coiraça da virtude e da edade. Não havia cara bonita de mulher nova que lhe attraisse um olhar mais demorado, assim como não existia peccado, venial ou mortal, cuja denuncia pudesse conturbal-o. Tinha o sacerdote ouvidos castos para quantos delictos lhe segredavam as beatas, atravez da lamina de folha esburacada do confissionario.

E era sempre com a mais tranquilla meiguice, toda paternal,

que monotonamente prescrevia um Padre-Nosso e uma Avè-Maria como penitencia ás mais reincidentes peccadoras.

Trinta annos de pastoreio de ovelhas espirituaes haviam-lhe dado, com a calma imperturbavel, o anesthesico da sensualidade.

D’entre as suas mais assiduas confessadas distinguia-se, pelo ameno rosto e fervorosa devoção, uma joven mulatinha, filha d’um fazendeiro da comarca de Chaves. Era um primor, a Maricota, requestada por muitas leguas em torno, na cálida terra marajoara, onde o amor bebe roborantes philtros aperitivos, na doce emanação das gordas pastagens restolhadas.

Ninguém mais attenta do que ella aos deveres do culto catholico e ao cumprimento de suas obrigações domesticas: «rapariga da ponta», consagrava-a a opinião da comarca, pelo orgão competentissimo do conspicuo juiz de direito.

Quando chegou dezembro, Maricota combinara com o vaqueiro Antonio, seu namorado de infancia, que a fosse pedir em casamento no dia de Natal. Tinha fé na data, que havia de angariar-lhe maior mésse de venturas; e ainda em obediencia á inclinação religiosa, abalou campos a fóra, até á residencia do clerigo, a quem confiou a tarefa de formular perante seus progenitores o pedido sacramental em nome do rapaz.

Ao tremulo pastor d’almas agradou aquella incumbencia intencional, como lisongeira homenagem á sua dupla auctoridade de confessor e velho amigo da familia.

Que fosse com Deus e ficasse certa de que, no dia de Natal, pela tarde, lá estaria a representar o maganão.

Á porta da casa principal da fazenda, á beira-rio, em Marajó. Tarde assoalhada pomposamente,

na magnificencia vencedora do grande astro a descambar pelo espaço translucido. Chovera uma hora antes e o céu, azul e brunido, estava ermo de nuvens. Dos campos infinitos, muito verdes ao perto, gradativamente azulados á medida que a vista buscava o horizonte, subiam olores adocicados, o bom cheiro dos fortes pastos ensopados d’agua. E do lado dos estabulos, era um retintim jovial de cavaquinhos e violas, o ardente sapateio das danças campesinas.

Toda a familia da Maricota, sentada no copiar em derredor da secular mangueira frondosa da esquerda, palestrava contente, ouvindo as boas chalaças inoffensivas do sacerdote.

Os dois noivos — noivos desde meia hora antes — conversavam a alguns passos de distancia do grupo principal. Para o vaqueiro, esse instante era o mais feliz da vida. Pulava-lhe o coração desencontrado no peito arfante, rebrilhavam-lhe as pupillas, que reflectiam a imagem, sempre meiga e adorada, da sua querida Maricota. Parecia-lhe que a voz da rapariga, n’esse primeiro colloquio já realizado com o assenso da familia, e por isso dotado de um sabor novo, possuia inflexões desconhecidas, entonações extranhas, um avelludado espesso como o refresco do assahy.

Á moça, entretanto, como que um pensamento fixo a preoccupava. Duas vezes já, deixara sem resposta, ou respondera demoradamente, a uma apaixonada interrogação do noivo, ternamente segredada em tremulo balbucio de emoção.

Notou-o o velho padre, ao observal-os de longe. Erguendo a voz, perguntou-lhe n’um sorriso:

— Que tens, filha? Em que pensas?

E a Maricota, levantando-se de ao pé do noivo, acercou-se da familia e:

— Penso, explicou, que por ser hoje dia de Natal, o sr. padre bem poderia obter para mim a graça de ficar sempre «virgem antes do parto, no parto e depois do parto»...

E voltando-se para o vaqueiro, a sorrir — innocente ou maliciosa? ninguem poderia reconhecel-o, no meio da estupefacção geral, — accrescentou:

— Não deves zangar-te com isso; Jesus foi filho de Deus, e São José não deu o cavaco!