Contrastes e Confrontos/Entre as ruínas
Quem saltar em qualquer das estações da Central no trecho paulista, a partir de Cachoeira, entra quase de improviso em lugares que não lhe recordam mais as bordas pinturescas do Paraíba.
A terra, uma terra antiga cortada pela estrada real três vezes secular que ia do Rio a S. Paulo, vai tornando-se cada vez mais desabrigada e pobre. Tumultuando em colinas desnudas, de flancos entorroados; afundando em pequenos vales sem encantos, onde se rebalsam pauis frechados de tábuas; desatando-se, planas arenosas e limpas - nada mais revela da opulência incomparável que por três séculos, da expedição de Glimmer aos dias da Independência, fez do vale do grande rio, alteado num socalco de cordilheiras e recamado de matas exuberando floração ridente, o cenário predileto da nossa história.
Por mais incurioso que seja o viajante, ao romper aquelas veredas em torcicolos, vai sendo invadido pela tristeza daqueles ermos desolados. E deparando de momento em momento as cruzes sucessivas que a espaços aparecem às margens do caminho, tem a impressão de calcar um antigo chão de batalhas esterilizado e revolto pela marcha dos exércitos...
É uma sugestão empolgante.
Ressaltam, a cada passo, expressivos traços de grandezas decaídas.
Os morros escalvados, por onde trepa teimosamente uma flora tolhiça, de cafezais de 80 anos, ralos e ressequidos, mas revelando os alinhamentos primitivos; cintados ainda pela faixa parda-avermelhada dos carreadores tortuosos, por onde subiam, outrora, as turmas dos escravos; tendo ainda pelos topos, à ourela dos velhos valos divisórios, extensos renques de bambuzais; e ao viés das encostas, salteadamente, branqueando nas macegas, as vivendas humildes por ali esparsas, a esmo, dão quase um traço bíblico às paisagens. Sem mais a vestidura protetora das matas, destruídas na faina brutal das derribadas, desagregam-se, escoriados dos enxurros, solapados pelas torrentes, tombando aos pedaços nas "corridas da terra" depois das chuvas torrenciais, e expõem agora, nos barrancos a prumo, em acervos de blocos, a rígida ossamenta de pedra desvendada, ou alevantam-se despidos e estéreis, revestidos de restolhos pardos, no horizonte monótono, que abreviam entre as encostas íngremes...
Os caminhos tornejam-nos, galgam-nos, vingam-nos, descem-nos. Mas os quadros não se animam.
Sucedem-se choupanas pobres, em ruínas umas - tetos de sapé caídos sobre montes de terras e paus, roliços - habitadas, outras, centralizando exíguas roças maltratadas, à beira dos córregos apaulados, onde os lírios selvagens derramam, no perfume insidioso, o filtro das maleitas.
As estradas são ermas. De longe em longe um caminhante. Mas é também um decaído. Não é daqueles caboclos rijos e mateiros, que abriram neste vale as picadas atrevidas das "bandeiras". O caipira desfibrado, sem o desempeno dos titãs bronzeados que lhe formam a linha obscura e heróica, saúda-nos com uma humildade revoltante, esboçando o momo de um sorriso deplorável, deixa-nos mais apreensivos, como se vivêssemos uma ruína maior por cima daquela enorme ruinaria da terra.
Seguimos.
Em vários trechos cerradões trançados, guardando ainda no afogado das embaúbas e dos tabocais alguns raros pés de café de remotas culturas em abandono, desdobram-se inextricáveis na lenta reconquista do solo, num ressurgimento da floresta primitiva.
A estrada vara-os entre espinheirais e barrancos, tendo, não raro, ladeando-a longo tempo, extensos lanços desmoronados de velhos muros de taipa dos sítios florescentes noutro tempo.
Destes, alguns permanecem ainda animados. Mas sem a azáfama antiga, sem o mourejar febril das colheitas fartas, sem os requinos festivos dos engenhos, sem o bulício álacre e estonteador das moendas ruidosas, nos velhos tempos, quando por aquelas encostas ondulavam e subiam lentamente à melopéia das cantigas africanas - dezenas de dorsos luzidios rebrilhando ao sol - os cordões desenvolvidos dos eitos.
Os demais, num decair contínuo, mal avultam nos terreiros desertos. Vão sendo, lento e lento, afogados na constrição do matagal que se lhe aperta em roda e cobre-lhes as plantações, e invade-lhes as pastagens, até atingi-los e suplantá-los, penetrando-os pelas portas e janelas; enraizando-se nas suas paredes de barro e disjungindo-lhas e derribando-lhas à maneira de uma reação formidável e surda da natureza contra os que outrora, ali, aplicaram no seu seio, torturando-a, o cáustico fulgurante das queimadas.
Outros ainda surgem, de improviso, no bolear os cerros, à meia encosta dos pendores, com a imagem perfeita de uns desgraciosos castelos, sem barbacãs e sem torres, gizados por essa arquitetura terrivelmente chata em que se esmeravam os nossos avós de há dois séculos. Entretanto, malgrado o deprimido das linhas, essas vivendas quadrangulares e amplas, sobranceando as senzalas abatidas, os moinhos estruídos, os casebres de "agregados", e alteando de chapa para a estrada os altos muramentos de pedra, que lhe sustentam os planos unidos dos terreiros, conservam o antigo aspecto senhoril.
Mas jazem para todo o sempre vazias, até que as destrua o absoluto abandono. Porque o caipira crendeiro, por menos célere que siga e por mais que o fustiguem os aguaceiros e os ventos, não pára às suas portas.
Segue, desabaladamente, sem desfitar as esporas dos flancos do cavalo, fazendo o "pelo sinal", e fugindo...
Nem um olhar para a vivenda sinistra e mal assombrada, onde imagina coisas pavorosas: constante pervagar de sombras; choros plangentes; ulular golpeante de espectros merencórios; aparições macabras; longos arrastamentos de correntes; e adoidados sabbats das almas vagabundas; e cabeças, e pernas, e braços, que despencam dos tetos e rompem das paredes, fundindo-se, improvisadamente, em demônios horrorosos...
E quem, curioso e incrédulo, as procura, justifica-lhes os temores.
Aproxima-se do largo portão desquiciado, de umbrais vacilantes, ou tensos; desapeia e avança pelos terreiros de pedra, arruinados; galga a velha escadaria, pulando sobre os degraus que faltam; e estaca no patamar, em cima, diante da porta, escancarada, da entrada, abrindo para o amplo salão deserto. Penetra-o.
Contempla, de relance, as molduras esborcinadas das paredes, e o teto onde adivinha resquícios de frisos dourados na cimalha de estuque. Enfia pelo longo corredor afogado no bafio angulhento do ambiente imóvel, para o qual se abrem as portas de outros repartimentos desertos, onde chiam e revoam desequilibradamente centenas de morcegos tontos. Chega à sala de jantar, deserta...
E naquela quietude sinistra, se não o amedrontam os ecos dos próprios passos, longos, reboantes, morrendo vagarosamente na habitação vazia, comove-os, irresistível, a visão retrospectiva dos belos tempos em que a vivenda senhoril pompeava triunfalmente no centro dos cafezais floridos.
Então era o tropear ruidoso das cavalgadas que chegavam; a longa escadaria onde rolavam saudações joviais, risos felizes, subidas e descidas tumultuarias entre os estrépitos argentinos das esporas; o vasto salão referto de convivas; a velha sala ornada para os banquetes ricos; e à noite as janelas resplandecendo, abertas para a escuridão e para o silêncio, golfando claridades e a cadência das danças, enquanto fora, no terreiro limpo, ao brilho das fogueiras, turbilhonava o samba dos cativos ao toar, melancólico e bruto, dos cachambus monótonos.
É um contraste comovente.
O viajante deixa a vivenda malsinada com uma emoção maior que a dos recoveiros: vai como quem foge. Rompe por um matagal bravio, onde adivinha os restos de um jardim, ou de um pomar; volve ao terreiro orlado de senzalas que desabam; transpõe o portão encombente; galga o cavalo e parte, disparando-o...
Não voltará mais: segue pelos caminhos em torcicolos, torneja outros morros escalvados, atravessa outras fazendas antigas, divisa outras vivendas desertas. depara outros caminhantes taciturnos; e ao encontrar, de momento a momento, intermináveis, como se andasse pelas avenidas de um velhíssimo cemitério - as mesmas "santas-cruzes" à orla dos caminhos, sente-se, sem o querer, invadido pelas crenças ingênuas dos caipiras.
Justifica-se, ao menos, como se, de fato, por ali vagassem, na calada dos ermos, todas as sombras de um povo que morreu, errantes, sobre uma natureza em ruínas.