Correspondência de Fradique Mendes/As Cartas
I
AO VISCONDE DE A.-T.
Londres, Maio.
Meu caro patrício.—Só ontem à noite, tarde, ao recolher do campo, encontrei o bilhete com que consideravelmente me honrou, perguntando à minha experiência—«qual é o melhor alfaiate de Londres». Depende isso inteiramente do fim para que V. necessita esse Artista. Se pretende meramente um homem que lhe cubra a nudez com economia e conforto, então recomendo-lhe aquele que tiver tabuleta mais perto do seu Hotel. São tantos passos que forra—e, como diz o Eclesiastes, cada passo encurta a distância da sepultura.
Se porém V., caro patrício, deseja um alfaiate que lhe dê consideração e valor no seu mundo; que V. possa citar com orgulho, à porta da Havanesa, rodando lentamente para mostrar o corte ondeado e fino da cinta; que o habilite a mencionar os Lordes que lá encontrou, escolhendo de alto, com a ponta da bengala, cheviotes para blusas de caça; e que lhe sirva mais tarde, na velhice, à hora geba do reumatismo, como recordação consoladora de elegâncias moças—então com ardente instância lhe aconselho o Cook (o Tomás Cook), que é da mais extremada moda, absolutamente ruinoso, e falha tudo.
Para subsequentes conselhos de «fornecedores», em Londres ou outros pontos do Universo, permanece sempre ao seu grato serviço.—Fradique Mendes.
II
A «MADAME» DE JOUARRE
(Trad.) [1]
Paris, Dezembro
Minha Querida Madrinha.—Ontem, em casa de Madame de Tressan, quando passei, levando para a ceia Libuska, estava sentada, conversando consigo, por debaixo do atroz retrato da Marechala de M oy, uma mulher loira, de testa alta e clara, que me seduziu logo, talvez por lhe pressentir, apesar de tão indolentemente enterrada num divã, uma rara graça no andar, graça altiva e ligeira de Deusa e de ave. Bem diferente da nossa sapiente Libuska, que se move com o esplêndido peso de uma estátua! E do interesse por esse outro passo, possivelmente alado e diânico (de Diana), provém estas garatujas.
Quem era? Suponho que nos chegou do fundo da província, de algum velho castelo do Anju com erva nos fossos, porque me não lembro de ter encontrado, em Paris, aqueles cabelos fabulosamente loiros como o sol de Londres em Dezembro—nem aqueles ombros descaídos, dolentes, angélicos, imitados de uma madona de Montegna, e inteiramente desusados em França desde o reinado de Carlos X, do Lírio no Vale, e dos corações incompreendidos. Não admirei com igual fervor o vestido preto, onde reinavam coisas escandalosamente amarelas. Mas os braços eram perfeitos; e nas pestanas, quando as baixava, parecia pender um romance triste. Deu-me assim a impressão, ao começo, de ser uma elegíaca do tempo Chateaubriand. Nos olhos, porém, surpreendi-lhe depois uma faísca de vivacidade sensível—que a datava do século XVIII. Dirá a minha madrinha:—«como pude eu abranger tanto, ao passar, com Libuska ao lado fiscalizando?» É que voltei. Voltei, e da ombreira da porta readmirei os ombros dolentes de virgem do século XIII; a massa de cabelos que o molho de velas por trás, entre as orquídeas, nimbava de ouro; e sobretudo o subtil encanto dos olhos—dos olhos finos e lânguidos... Olhos finos e lânguidos. É a primeira expressão em que hoje apanho decentemente a realidade. Por que é que não me adiantei, e não pedi uma «apresentação?» Não sei. Talvez o requinte em retardar, que fazia com que La Fontaine, dirigindo-se mesmo para a felicidade, tomasse sempre o caminho mais longo. Sabe o que dava tanta sedução ao palácio das Fadas, nos tempos do rei Artur? Não sabe. Resultados de não ler Tennyson... Pois era a imensidade de anos que levava a chegar lá, através de jardins encantados, onde cada recanto de bosque oferecia a emoção inesperada dum flirt, duma batalha, ou dum banquete... (Com que mórbida propensão acordei hoje para o estilo asiático!) O fato é que, depois da contemplação junto à ombreira, voltei a cear ao pé da minha radiante tirana. Mas por entre o banal sandwich de foie-gras, e um copo de Tokay em nada parecido com aquele Tokay que Voltaire, já velho, se recordava de ter bebido em casa de Madame de Etioles (os vinhos dos Tressans descendem em linha varonil dos venenos da Brinvilliers), vi, constantemente vi, os olhos finos e lângidos. Não há senão o homem, entre os animais, para misturar a languidez de um olhar fino a fatias de foie-gras. Não o faria decerto um cão de boa raça. Mas seriamos nós desejados pelo «efêmero feminino», se não fosse esta providencial brutalidade? Só a porção de Matéria que há no homem, faz com que as mulheres se resignem à incorrigível porção de Ideal, que nele há também —para eterna perturbação do Mundo. O que mais prejudicou Petrarca aos olhos de Laura—foram os Sonetos. E quando Romeu, já com um pé na escada de seda, se demorava, exalando o seu êxtase em invocações à Noite e à Lua—Julieta batia os dedos impacientes no rebordo do balcão, e pensava: «Ai, que palrador que és, filho dos Montaigus!» Este detalhe não vem em Shakespeare—mas é comprovado por toda a Renascença. Não me amaldiçoe por esta sinceridade de meridional céptico, e mande-me dizer que nome tem, a sua paróquia, a loira castelã do Anju. A propósito de castelos: cartas de Portugal anunciam-me que o quiosque, por mim mandado erguer em Sintra, na minha quintarola, e que lhe destinava como «seu pensadouro e retiro nas horas de sesta»—abateu. Três mil e oitocentos francos achatados em entulho. Tudo tende à ruína num país de ruínas. O arquiteto que o construiu é deputado, e escreve no Jornal da Tarde estudos melancólicos sobre as Finanças! O meu procurador em Sintra aconselha agora, para reedificar o quiosque, um estimável rapaz, de boa família, que entende de construções e que é empregado na Procuradoria-Geral da Coroa! Talvez se eu necessitasse um jurisconsulto, me propusessem um trolha. É com estes elementos alegres, que nós procuramos restaurar o nosso império de África! Servo humilde e devoto.—FRADIQUE.
III
A OLIVEIRA MARTINS
Paris, Maio
Querido Amigo.—Cumpro enfim a promessa feita na sua erudita ermida das Águas Férreas, naquela manhã de Março em que conversávamos ao sol sobre o caráter dos Antigos, —e remeto, como documento, a fotografia da múmia de Rameses II (que o francês banal, continuador do grego banal, teima em chamar Sesóstris), recentemente descoberta nos sarcófagos reais de Medinet-Abou pelo professor Maspero.
Caro Oliveira Martins, não acha V. picarescamente sugestivo este fato—Ramsés fotografado?... Mas aí está justificada a mumificação dos cadáveres, feita pelos bons Egípcios com tanta fadiga e tanta despesa, para que os homens gozassem na sua forma terrena, segundo diz o Escriba, «as vantagens da Eternidade!» Rameses, como ele acreditava e lhe afirmavam os metafísicos de Tebas, ressurge efetivamente «com todos os seus ossos e a pele que era sua», neste ano da Graça de 1886. Ora 188ó, para um Faraó da décima-nona dinastia, mil e quatrocentos anos anterior a Cristo, representa muito decentemente a Eternidade e a Vida Fut ura. E eis-nos agora, podendo contemplar as «próprias feições» do maior dos Ramesidas, tão realmente como Hokem seu Eunuco-Mor, ou Pentaour seu Cronista-Mor, ou aqueles que outrora em dias de triunfos corriam a juncar-lhe o caminho de flores, trazendo «os seus chinós de festa e a cútis envernizada com óleos de Segabai». Aí o tem V. agora diante de si, em fotografia, com as pálpebras baixas e sorrindo. E que me diz a essa face real? Que humilhantes reflexões não provoca ela sobre a irremediável degeneração do homem! Onde há aí hoje um, entre os que governam povos, que tenha essa soberana fronte de calmo e incomensurável orgulho; esse superior sorriso de onipotente benevolência, duma inefável benevolência que cobre o Mundo; esse ar de imperturbada e indomável força; todo esse esplendor viril que a treva de um hipogeu, durante três mil anos, não conseguiu apagar? Eis aí verdadeiramente um Dono de homens! Compare esse semblante augusto com o perfil sorno, oblíquo e bigodoso dum Napoleão III; com o focinho de buldogue acorrentado dum Bismarque; ou com o carão do Czar russo, um carão parado e afável que podia ser o do seu Copeiro-Mor. Que chateza, que fealdade tacanha destes rostos de poderosos!
Donde provém isto? De que a alma modela a face, como o sopro do antigo oleiro modelava o vaso fino:—e hoje, nas nossas civilizações, não há lugar para que uma alma se afirme e se produza na absoluta expansão da sua força. Outrora um simples homem, um feixe de músculos sobre um feixe de ossos, podia erguer-se e operar como um elemento da Natureza. Bastava ter o ilimitado querer—para dele tirar o ilimitado poder. Eis aí em Rameses um ser que tudo quer e tudo pode, e a quem Ftás, o Deus sagaz, diz com espanto: «a tua vontade dá a vida e a tua vontade dá a morte!» Ele impele a seu bel-prazer as raças para Norte, para Sul ou para Leste; ele altera e arrasa, como muros num campo, as fronteiras dos reinos; as cidades novas surgem das suas pegadas; para ele nascem todos os frutos da terra, e para ele se volta toda a esperança dos homens; o lugar para onde volve os seus olhos é bendito e prospera, e o lugar que não recebe essa luz benéfica jaz como «o terrão que o Nilo não beijou»os deuses dependem dele, e Amnon estremece inquieto quando, diante dos pilones do seu templo Rameses faz estalar as três cordas entrançadas do seu látego de guerra! Eis um homens—e que seguramente pode afirmar no seu canto triunfal: —«Tudo vergou sob a minha força: eu vou e venho com as passadas largas dum leão; o rei dos deuses está à minha direita e também à minha esquerda; quando eu falo o Céu escuta; as coisas da Terra estendem-se a meus pés, para eu as colher com mão livre; e para sempre estou erguido sobre o trono do mundo!»
«O mundo», está claro, era aquela região, pela maior parte arenosa, que vai da cordilheira Líbica à Mesopotâmia: e nunca houve mais petulante ênfase do que nas Panegíricas dos Escribas. Mas o homem é, ou supõe ser, inigualavelmente grande. E esta consciência da grandeza, do incircunscrito poder vem necessariamente resplandecer na fisionomia e dar essa altiva majestade, repassada de risonha serenidade, que Rameses conserva mesmo além da vida, ressequido, mumificado, recheado de betume da Judeia.Veja V., por outro lado, as condições que cercam hoje um poderoso do tipo Bismarque. Um desgraçado desses não está acima de nada e depende de tudo. Cada impulso da sua vontade esbarra com a resistência dum obstáculo. A sua ação, no Mundo, é um perpétuo bater de crânio contra espessuras de portas bem defendidas. Toda a sorte de convenções, de tradições, de direitos, de preceitos, de interesses, de princípios, se lhe levanta a cada instante diante dos passos, como marcos sagrados. Um artigo de jornal fá-lo estacar, hesitante. A rabulice dum legista obriga-o a encolher, precipitadamente, a garra que já ia estendendo. Dez burgueses nédios e dez professores guedelhudos, votando dentro duma sala, estatelam por terra o alto andaime dos seus planos. Alguns florins dentro dum saco, tornam-se o tormento das suas noites. É-lhe tão impossível dispor dum cidadão como dum astro. Nunca pode avançar duma arrancada, ereto e seguro tem de ser ondeante e rastejante. A vigilância ambiente impõe-lhe a necessidade vil de falar baixo e aos cantos. Em vez de «recolher as coisas da terra, com mão livre»—surripiaas às migalhas, depois de escuras intrigas. As irresistíveis correntes de ideias, de sentimentos, de interesses, trabalham por baixo dele, em torno dele: e parecendo dirigi-las, pelo muito que braceja e ronca de alto, é na realidade por elas arrastado. Assim um onipotente, do tipo Bismarque, vai por vezes em aparência no cimo das grandes coisas;—mas como a boia solta, vai no cimo da torrente.
Miserável omnipotência! E o sentimento desta miséria não pode deixar de influenciar a fisionomia dos nossos poderosos, dando-lhe esse feitio contrafeito, crispado, torturado, azedado e sobretudo amolgado que se nota na cara de Napoleão, do Czar, de Bismarque, de todos os que reúnem a maior soma de poder contemporâneo—o feitio amolgado duma coisa que rola aos encontrões, batendo contra muralhas.
Em conclusão:—a múmia de Rameses II (única face autêntica do homem antigo que conhecemos) prova que, tendo-se tornado impossível uma vida humana, vivida na sua máxima liberdade e na sua máxima força, sem outros limites que os do próprio querer—resultou perder-se para sempre, no tipo físico do homem, a suma e perfeita expressão da grandeza. Já não há uma face sublime: há carantonhas mesquinhas, onde a bílis cava rugas por entre os recortes do pêlo. As únicas fisionomias nobres são as das feras, genuínos Rameses no seu deserto, que nada perderam da sua força, nem da sua liberdade. O homem moderno, esse, mesmo nas alturas sociais, é um pobre Adão achatado entre as duas páginas dum código.
Se V. acha tudo isto excessivo e fantasista, atribua-o a que jantei ontem, e conversei inevitavelmente, com o seu correligionário P., conselheiro de Estado, e murchas cosas más. Más em espanhol; e más também em português no sentido de péssimas. Esta carta é a reação violenta da conversa conselheiral e conselheirífera. Ah, meu amigo, desditoso amigo, que faz V. depois de receber o fluxo labial dum conselheiro? Eu tomo um banho por dentro—um banho lustral, imenso banho de fantasia, onde despejo, como perfume idôneo, um frasco de Shelley ou de Musset. Amigo certo et nunc et semper.—Fradique Mendes.
IV
A MADAME S.
Paris, Fevereiro.
Minha Cara Amiga.—O espanhol chama-se Dom Ramon Covarubia, mora na Passage Saulnier, 12, e como é aragonês, e portanto sóbrio, creio que com dez francos por lição se contentará amplamente. Mas se seu filho já sabe o castelhano necessário para entender os Romanceros, o D. Quixote, alguns dos «Picaresco s», vinte páginas de Quevedo, duas comédias de Lope de Vega, um ou outro romance de Galdós, que é tudo quanto basta ler na literatura de Espanha,—para que deseja a minha sensata amiga que ele pronuncie esse castelhano que sabe com o acento, o sabor, e o sal dum madrileno nascido nas veras pedras da Calle-Mayor? Vai assim o doce Raul desperdiçar o tempo, que a Sociedade lhe marcou para adquirir ideias e noções (e a Sociedade a um rapaz da sua fortuna, do seu nome e da sua beleza, apenas concede, para esse abastecimento intelectual, sete anos, dos onze aos dezoito)—em quê? No luxo de apurar até a um requinte superfino, e supérfluo, o mero instrumento de adquirir noções e ideias. Porque as línguas, minha boa amiga, são apenas instrumentos do saber—como instrumentos de lavoura. Consumir energia e vida na aprendizagem de as pronunciar tão genuína e puramente, que pareça que se nasceu dentro de cada uma delas, e que, por meio de cada uma, se pediu o primeiro pão e água da vida—é fazer como o lavrador, que em vez de se contentar, para cavar a terra, com um ferro simples encabado num pau simples, se aplicasse, durante os meses em que a horta tem de ser trabalhada, a embutir emblemas no ferro e esculpir flores e folhagens ao comprido do Pau. Com um hortelão assim, tão miudamente ocupado em alindar e requintar a enxada, como estariam agora, minha senhora, os seus pomares da Touraine?
Um homem só deve falar, com impecável segurança e pureza, a língua da sua terra:—todas as outras as deve falar mal, orgulhosamente mal, com aquele acento chato e falso que denuncia logo o estrangeiro. Na língua verdadeiramente reside a nacionalidade;—e quem for possuindo com crescente perfeição os idiomas da Europa, vai gradualmente sofrendo uma desnacionalização. Não há já para ele o especial e exclusivo encanto da fala materna, com as suas influências afetivas, que o envolvem, o isolam das outras raças; e o cosmopolitismo do Verbo irremediavelmente lhe dá o cosmopolitismo do caráter. Por isso o poliglota nunca é patriota. Com cada idioma alheio que assimila, introduzem-se-lhe no organismo moral modos alheios de pensar, modos alheios de sentir. O seu patriotismo desaparece, diluído em estrangeirismo. Rue de Rivoli, Calle d’Alcalá, Regent Street, Willelm Strasse—que lhe importa? Todas são ruas, de pedra ou de macadame. Em todas a fala ambiente lhe oferece um elemento natural e congênere, onde o seu espírito se move livremente, espontaneamente, sem hesitações, sem atritos. E como pelo Verbo, que é o instrumento essencial da fusão humana, se pode fundir com todas—em todas sente e aceita uma Pátria.
Por outro lado, o esforço contínuo de um homem para se exprimir, com genuína e exata propriedade de construção e de acento, em idiomas estranhos—isto é, o esforço para se confundir com gentes estranhas no que elas têm de essencialmente característico, o Verbo—apaga nele toda a individualidade nativa. Ao fim de anos esse habilidoso, que chegou a falar absolutamente bem outras línguas além da sua, perdeu toda a originalidade de espírito—porque as suas ideias, forçosamente, devem ter a natureza, incaracterística e neutra, que lhes permita serem indiferentemente adaptadas às línguas mais opostas em caráter e gênio. Devem, de fato, ser como aqueles «corpos de pobre» de que tão tristemente fala o povo—«que cabem bem na roupa de toda a gente».
Além disso, o propósito de pronunciar com perfeição línguas estrangeiras, constitui uma lamentável sabujice para com o estrangeiro. Há ai, diante dele, como o desejo servil de não sermos nós mesmos, de nos fundirmos nele, no que ele tem de mais seu, de mais próprio, o Vocábulo. Ora isto é uma abdicação de dignidade nacional. Não, minha senhora! Falemos nobremente mal, patrioticamente mal, as línguas dos outros! Mesmo porque aos estrangeiros o poliglota só inspira desconfiança, como ser que não tem raízes, nem lar estável—ser que rola através das nacionalidades alheias, sucessivamente se disfarça nelas, e tenta uma instalação de vida em todas, porque não é tolerado por nenhuma. Com efeito, se a minha amiga percorrer a Gazeta dos Tribunais, verá que o perfeito poliglotismo é um instrumento de alta escroquerie.
E aqui está como, levado pelo diletantismo das ideias, em vez dum endereço eu lhe forneço um tratado!... Que a minha garrulice ao menos a faça sorrir, pensar, e poupar ao nosso Raul o trabalho medonho de pronunciar Viva la Gracia! e Benditos sean tus ojos! exatissimamente como se vivesse a uma esquina da Puerta del Sol, com uma capa de bandas de veludo, chupando o cigarro de Lazarillo. Isto todavia não impede que se utilizem os serviços de D. Ramon. Ele, além de Zorrilista, é guitarrista; e pode substituir as lições na língua de Quevedo, por lições na guitarra de Alma viva. O seu lindo Raul ganhará ainda assim uma nova faculdade de exprimir—a faculdade de exprimir emoções por meio de cordas de arame. E este dom é excelente! Convém mais na mocidade, e mesmo na velhice, saber, por meio das quatro cordas duma viola, desafogar a alma das coisas confusas e sem nome que nela tumultuam, do que poder, através das estalagens do Alundo, reclamar com perfeição o pão e o queijo—em sueco, holandês, grego, búlgaro e polaco.
E será realmente indispensável mesmo para prover, através do Mundo , estas necessidades vitais de estômago e alma—o trilhar, durante anos, pela mão dura dos mestres, «os descampados e atoleiros das gramáticas e pronúncias», como dizia o velho Milton? Eu tive uma admirável tia que falava unicamente o português (ou antes o minhoto) e que percorreu toda a Europa com desafogo e conforto. Essa senhora, risonha mas dispéptica, comia simplesmente ovos—que só conhecia e só compreendia sob o seu nome nacional e vernáculo de ovos. Para ela huevos, oeufs, eggs, darei, eram sons da Natureza bruta, pouco diferençáveis do coaxar das rãs, ou dum estalar de madeira. Pois quando em Londres, em Berlim, em Paris, em Moscou, desejava os seus ovos— esta expedita senhora reclamava o fâmulo do Hotel, cravava nele os olhos agudos e bem explicados, agachava-se gravemente sobre o tapete, imitava com o rebolar lento das saias tufadas uma galinha no choco, e gritava qui-qui-ri-qui! có-có-ri-qui! có-ró-có-có. Nunca, em cidade ou religião inteligente do Universo, minha tia deixou de comer os seus ovos—e superiormente frescos!
Beijo as suas mãos, benévola amiga.—FRADIQUE.
V
A GUERRA JUNQUEIRO
Paris, Maio.
Meu Caro Amigo.—A sua carta transborda de ilusão poética. Supor, como V. candidamente supõe, que traspassando com versos (ainda mesmo seus, e mais rutilantes que as flechas de Apolo) a Igreja, o Padre, a Liturgia, as Sacristias, o jejum da sexta-feira e os ossos dos Mártires, se pode «desentulhar Deus da aluvião sacerdotal», e elevar o Povo (no Povo V. decerto inclui os conselheiros de Estado) a uma compreensão toda pura e abstrata da Religiã o—a uma religião que consista apenas numa Moral apoiada numa Fé—é ter da Religião, da sua essência e do seu objeto, uma sonhadora ideia de sonhador teimoso em sonhos!
Meu bom amigo, uma Religião a que se elimine o Ritual desaparece—porque as Religiões para os homens (com excepção dos raros Metafísicos, Moralistas e Místicos) não passa dum conjunto de Ritos, através dos quais cada povo procura estabelecer uma comunicação íntima com o seu Deus e obter dele favores. Este, só este, tem sido o fim de todos os cultos, desde o mais primitivo, do culto de Indra, até ao culto recente do coração de Maria, que tanto o escandaliza na sua paróquia—oh incorrigível beato do idealismo! Se V. o quer verificar historicamente, deixe Viana do Castelo, tome um bordão, e suba comigo por essa antiguidade fora até um sítio bem cultivado e bem regado que fica entre o rio Indo, as escarpas do Himalaia, e as areias dum grande deserto . Estamos aqui em Septa-Sindhou, no país das Sete Águas, no Vale Feliz, na terra dos Árias. No primeiro povoado em que pararmos, V. vê, sobre um outeiro, um altar de pedra coberto de musgo fresco: em cima brilha palidamente um fogo lento: e em torno perpassam homens, vestidos de linho, com os longos cabelos presos por um aro de ouro fino. São padres, meu amigo! São os primeiros capelães da Humanidade,—e cada um deles está, por esta quente alvorada de Maio, celebrando um rito da missa Ariana. Um limpa e desbasta a lenha que há de nutrir o lume sagrado; outro pisa dentro dum almofariz, com pancadas que devem ressoar «como tambor de vitória», as ervas aromáticas que dão o Sômma; este, como um semeador, espalha grãos de aveia em volta da Ara; aquele, ao lado, espalmando as mãos ao Céu, entoa um cântico austero. Estes homens, meu amigo, estão executando um Rito que encerra em si toda a Religião dos Árias, e que tem por objeto propiciar Indra—Indra, o Sol, o Fogo, a potência divina que pode encher de ruína e dor o coração do Ária, sorvendo a água das regas, queimando os pastos, desprendendo a pestilência das lagoas, tornando Septa-Sindhou mais estéril que o «coração do mau»; ou pode, derretendo as neves do Himalaia, e soltando com um golpe de fogo «a chuva que jaz no ventre das nuvens», restituir a água aos rios, a verdura aos prados, a salubridade às lagoas, a alegria e abundância à morada do Ária. Trata-se pois simplesmente de convencer Indra a que, sempre propício, derrame sobre Septa-Sindhou todos os favores que pode apetecer um povo rural e pastoral.
Não há aqui Metafísica, nem Ética—nem explicações sobre a natureza dos deuses, nem regras para a conduta dos homens. Há meramente uma Liturgia, uma totalidade de Ritos, que o Ária necessita observar para que Indra o atenda —uma vez que, pela experiência de gerações, se comprovou que Indra só o escutará, só concederá os benefícios rogados, quando em torno ao seu altar certos velhos, de certa casta, vestidos de linho cândido, lhe erguerem cânticos doces, lhe ofertarem libações, lhe amontoarem dons de fruta, mel e carne de anho. Sem dons, sem libações, sem cânticos, sem anho, Indra, amuado e sumido no fundo do Invisível e do Intangível, não descerá à Terra a derramar-se na sua bondade. E se vier de Viana do Castelo um Poeta tirar ao Ária o seu altar de musgo, o seu pau sacrossanto, o almofariz, o crivo e o vaso do Soma, o Ária ficará sem meios de propiciar o seu Deus, desatendido do seu Deus—e será na Terra como a criancinha que ninguém nutre e a que ninguém ampara os passos.
Esta religião primordial é o tipo absoluto e inalterável das Religiões, que todas por instinto repetem—e em que todas (apesar dos elementos estranhos de Teologia, de Metafísica, de Ética que lhe introduzem os espíritos superiores) terminam por se resumir com reverência. Em todos os climas, em todas as raças, ou divinizando as forças da Natureza, ou divinizando a Alma dos mortos, as Religiões, amigo meu, consistiram sempre praticamente num conjunto de práticas, pelas quais o homem simples procura alcançar da amizade de Deus os bens supremos da saúde, da força, da paz, da riqueza. E mesmo quando, já mais crente no esforço próprio, pede esses bens à higiene, à ordem, à lei e ao trabalho, ainda persiste nos ritos propiciadores para que Deus ajude o seu esforço.
O que V. observou em Septa-Sindhou poderá verificar igualmente, parando (antes de recolhermos a Viana, a beber esse vinho verde de Monção, que V. ditirambiza) na Antiguidade Clássica, em Atenas ou Roma, onde quiser, no momento de maior esplendor e cultura das civilizações greco-latinas. Se V. aí perguntar a um antigo, seja um oleiro de Suburra, seja o próprio Flamen Dialis, qual é o corpo de doutrinas e de conceitos morais que compõe a Religião,—ele sorrirá, sem o compreender. E responderá que a Religião consiste em paces deorum quaerere, em apaziguar os Deuses, em segurar a benevolência dos Deuses. Na ideia do antigo isso significa cumprir os ritos, as práticas, as fórmulas, que uma longa tradição demonstrou serem as únicas que conseguem fixar a atenção dos Deuses e exercer sobre eles persuasão ou sedução. E, nesse cerimonial, era indispensável não alterar nem o valor duma silaba na Prece, nem o valor dum gesto no sacrifício, porque doutro modo o Deus, não reconhecendo o Sacrifício da sua dileção e a Prece do seu agrado, permanecia desatento e alheio; e a Religião falseava o seu fim supremo—influenciar o Deus. Pior ainda! Passava a ser a irreligião: e o Deus, vendo nessa omissão de liturgia uma falta de reverência, despedia logo das Alturas os dardos da sua cólera. A obliquidade das pregas na túnica do Sacrificador, um passo lançado à direita ou movido à esquerda, o cair lento das gotas da libação, o tamanho das achas do lume votivo, todos esses detalhes estavam prescritos imutavelmente pelos Rituais, e a sua exclusão ou a sua alteração constituíam impiedades. Constituíam verdadeiros crimes contra a pátria—porque atraíam sobre ela a indignação dos deuses. Quantas Legiões vencidas, quantas cidadelas derrubadas, porque o Pontífice deixara perder um grão de cinza da ara—ou porque Auruspice não arrancou lã bastante da cabeça do anho! Por isso Atenas castigava o Sacerdote que alterasse o cerimonial; e o senado depunha os Cônsules que cometiam um erro no sacrifício—fosse ele tão ligeiro como reter a ponta da toga sobre a cabeça, quando ela devia escorregar sobre o ombro. De sorte que V., em Roma, lançando ironias de ouro à Divindade, era talvez um grande e admirado Poeta Cômico: mas satirizando, como na Velhice do Padre Eterno a Liturgia e o Cerimonial, era um inimigo público, um traidor ao Estado, votado às masmorras do Tuliano.
E se, já farto destes tempos antigos, V. quiser volver aos nossos filosóficos dias, encontrará nas duas grandes Religiões do Ocidente e do Oriente, no Catolicismo e no Budismo, uma comprovação ainda mais saliente e mais viva de que a Religião consiste intrinsecamente de práticas, sobre as quais a Teologia e a Moral se sobrepuseram, sem as penetrarem, como um luxo intelectual, acessório e transitório—flores pregadas no altar pela imaginação ou pela virtude idealista. O Catolicismo (ninguém mais furiosamente o sabe do que V.) está hoje resumido a uma curta série de observâncias materiais:—e, todavia, nunca houve Religião dentro da qual a Inteligência erguesse mais vasta e alta estrutura de conceitos teológicos e morais. Esses conceitos, porém, obra de doutores e de místicos, nunca propriamente saíram das escolas e dos mosteiros—onde eram preciosa matéria de dialética ou de poesia; nunca penetraram nas multidões, para metodicamente governar os juízos ou conscientemente governar as ações. Reduzido a catecismos, a cartilhas, esse corpo de conceitos foi decorado pelo povo:— mas nunca o povo se persuadiu que tinha Religião, e que portanto agradava a Deus, servia a Deus, só por cumprir os dez mandamentos, fora de toda a prática e de toda a observância ritual E só decorou mesmo esses Dez Mandamentos, e as Obras de Misericórdia, e os outros preceitos morais do Catecismo, pela ideia de que esses versículos, recitados com os lábios, tinham, por uma virtude maravilhosa, o poder de atrair a atenção, a bem-querença e os favores do Senhor. Para servir a Deus, que é o meio de agradar a Deus, o essencial foi sempre ouvir missa, esfiar o rosário, jejuar, comungar, fazer promessas, dar túnicas aos santos, etc. Só por estes ritos, e não pelo cumprimento moral da lei moral, se propicia a Deus,— isto é, se alcançam dele os dons inestimáveis da saúde, da felicidade, da riqueza, da paz. O mesmo Céu e Inferno, sanção extraterrestre da lei, nunca, na ideia do povo, se ganhava ou se evitava pela pontual obediência à lei. E talvez com razão, por isso mesmo que no Catolicismo o prêmio e o castigo não são manifestações da justiça de Deus, mas da graça de Deus. Ora a Graça, no pensar dos simples, só se obtém pela constante e incansável prática dos preceitos—a missa, o jejum, a penitência, a comunhão, o rosário, a novena, a oferta, a promessa. De sorte que no catolicismo do Minhoto como na religião do Ária, em Septa-Sindhou como em Carrazeda de Ansiães, tudo se resume em propiciar Deus por meio de práticas que o cativem. Não há aqui Teologia, nem Moral. Há o ato do infinitamente fraco, querendo agradar ao infinitamente forte. E se V., para purificar este Catolicismo, eliminar o Padre, a estola, as galhetas e a água benta, todo o Rito e toda a Liturgia—o católico imediatamente abandonará uma Religião que não tem Igreja visível, e que não lhe oferece os meios simples e tangíveis de comunicar com Deus, de obter dele os bens transcendentes para a alma e os bens sensíveis para o corpo. O Catolicismo nesse instante terá acabado, milhões de seres terão perdido o seu Deus. A Igreja é o vaso de que Deus é o perfume. Igreja partida —Deus volatilizado.
Se tivéssemos tempo de ir à China ou a Ceilão, V. toparia com o mesmo fenômeno no Budismo. Dentro dessa Religião foi elaborada a mais alta das Metafísicas, a mais nobre das Morais: mas em todas as raças em que ele penetrou, nas bárbaras ou nas cultas, nas hordas do Nepal ou no mandarinato chinês, ele consistiu sempre para as multidões em ritos, cerimônias, práticas—a mais conhecida das quais é o moinho de rezar. V. nunca lidou com este moinho? É lamentavelmente parecido com o moinho de café em todos os países budistas V. o verá colocado nas ruas das cidades, nas encruzilhadas do campo, para que o devoto ao passar, dando duas voltas à manivela, possa fazer chocalhar dentro as orações escritas e comunicar com o Buda, que por esse ato de cortesia transcendente «lhe ficará grato e lhe aumentará os seus bens».
Nem o Catolicismo, nem o Budismo, vão por este fato em decadência. Ao contrário! Estão no seu estado natural e normal de Religião. Uma Religião, quanto mais se materializa, mais se populariza—e portanto mais se diviniza. Não se espante! Quero dizer que, quanto mais se desembaraça dos seus elementos intelectuais de Teologia, de Moral, de Humanitarismo, etc., repelindo-os para as suas regiões naturais que são a Filosofia, a Ética e a Poesia, tanto mais coloca o povo face a face com o seu Deus, numa união direta e simples, tão fácil de realizar que, por um mero dobrar de joelhos, um mero balbuciar de Padre-Nossos, o homem absoluto que está no Céu vem ao encontro do homem transitório que está na Terra. Ora este encontro é o fato essencialmente divino da Religião. E quanto mais ele se materializa—mais ela na realidade se diviniza. V. porém dirá (e de fato o diz): «Tornemos essa comunicação puramente espiritual, e que, despida de toda a exterioridade litúrgica, ela seja apenas como o espírito humano, falando ao espírito divino». Mas para isso é necessário que venha o Milênio—em que cada cavador de enxada seja um filósofo, um pensador. E quando esse Milênio detestável chegar, e cada tipoia de praça for governada por um Mallebranche, terá V. ainda de ajuntar a esta perfeita humanidade masculina, uma nova humanidade feminina, fisiologicamente diferente da que hoje embeleza a Terra. Porque enquanto houver uma mulher constituída física, intelectual e moralmente como a que Jeová, com uma tão grande inspiração de artista, fez da costela de Adão,—haverá sempre ao lado dela, para uso da sua fraqueza, um altar, uma imagem e um padre.
Essa comunhão mística do Homem e de Deus, que V. quer, nunca poderá ser senão o privilégio duma elite espiritual, deploravelmente limitada. Para a vasta massa humana, em todos os tempos, pagã, budista, cristã, maometana, selvagem ou culta, a Religião terá sempre por fim, na sua essência, a súplica dos favores divinos e o afastamento da cólera divina; e, como instrumentação material para realizar estes objetos, o templo, o padre, o altar, os ofícios, a vestimenta, a imagem. Pergunte a qualquer mediano homem saído da turba, que não seja um filósofo, ou um moralista, ou um místico, o que é Religião. O inglês dirá:—«É ir ao serviço ao domingo, bem vestido, cantar hinos». O hindu dirá:—«É fazer poojah todos os dias e dar o tributo ao Mahadeo». O africano dirá:—«É oferecer ao Mulungu, a sua ração de farinha e óleo». O minhoto dirá: —«É ouvir missa, rezar as contas, jejuar a sexta-feira, comungar pela Páscoa». E todos terão razão, grandemente! Porque o seu objeto, como seres religiosos, está todo em comunicar com Deus, e esses são os meios de comunicação que os seus respectivos estados de civilização e as respectivas liturgias que deles saíram, lhes fornecem. Voilà! Para V., está claro, e para outros espíritos de eleição, a Religião é outra coisa—como já era outra coisa em Atenas para Sócrates e em Roma para Séneca. Mas as multidões humanas não são compostas de Sócrates e de Sénecas—bem felizmente para elas, e para os que as governam, incluindo V. que as pretende governar!
De resto, não se desconsole, amigo! Mesmo entre os simples há modos de ser religiosos, inteiramente despidos de Liturgia e de exterioridades rituais. Um presenciei eu, deliciosamente puro e íntimo. Foi nas margens do Zambeze. Um chefe negro, por nome Lubenga, queria, nas vésperas de entrar em guerra com um chefe vizinho, comunicar com o seu Deus, com o seu Mulungu (que era, como sempre, um seu avô divinizado) . O recado ou pedido, porém, que desejava mandar à sua Divindade, não se podia transmitir através dos Feiticeiros e do seu cerimonial, tão graves e confidenciais matérias continha... Que faz Lubenga? Grita por um escravo: dá-lhe o recado, pausadamente, lentamente, ao ouvido: verifica bem que o escravo tudo compreendera, tudo retivera: e imediatamente arrebata um machado, decepa a cabeça do escravo, e brada tranquilamente— «parte»! A alma do escravo lá foi, como uma carta lacrada e selada, direita para o Céu, ao Mulungu. Mas daí a instantes o chefe, bate uma palmada aflita na testa, chama à pressa outro escravo, diz-lhe ao ouvido rápidas palavras, agarra o machado, separa-lhe a cabeça, e berra:— «Vai!»
Esquecera-lhe algum detalhe no seu pedido ao Mulungu... O segundo escravo era um pós-escrito...
Esta maneira simples de comunicar com Deus deve regozijar o seu coração. Amigo do dito.— FRADIQUE.
VI
A RAMALHO ORTIGÃO
Paris, Abril.
Querido Ramalho.—No sábado à tarde, na Rue Cambon, avisto dentro dum fiacre o nosso Eduardo, que se arremessa pela portinhola para me gritar: «Ramalho, esta noite! de passagem para a Holanda! às dez! no café da Paz!»
Fico docemente alvoroçado; e às nove e meia, apesar da minha justa repugnância pela esquina do café da Paz, Centro catita do Snobismo internacional, lá me instalo, com um bock, esperando a cada instante que surja, por entre a turba baça e mole do boulevard, o esplendor da Ramalhal figura. Às dez salta dum fiacre com ansiedade o vivaz Carmonde, que abandonara à pressa uma sobremesa alegre pour voir ce grand Ortigan! Começa uma espera a dois, com bock a dois. Nada de Ramalho, nem do seu viço. Às onze aparece Eduardo, esbaforido. E Ramalho? Inédito ainda! Espera a três, impaciência a três, bock a três. E assim até que o bronze nos soou o fim do dia.
Em compensação um caso, e profundo. Carmonde, Eduardo e eu sorvíamos as derradeiras fezes do bock, já desiludidos de Ramalho e das suas pompas, quando roça pela nossa mesa um sujeito escurinho, chupadinho, esticadinho, que traz na mão com respeito, quase com religião, um soberbo ramo de cravos amarelos. É um homem de além dos mares, da República Argentina ou Peruana, e amigo de Eduardo—que o retém e apresenta «o sr. Mendibal». Mendibal aceita um bock: e eu começo a contemplar mudamente aquela facezinha toda em perfil, como recortada numa lâmina de machado, duma cor acobreada de chapéu-coco inglês, onde a barbita rala, hesitante, denunciando uma virilidade frouxa, parece cotão, um cotão negro, pouco mais negro que a tez. A testa escanteada recua, foge toda para trás, assustada. O caroço da garganta esganiçada, ao contrário, avança como o esporão duma galera, por entre as pontas quebradas do colarinho muito alto e mais brilhante que esmalte. Na gravata, grossa pérola.
Eu contemplo, e Mendibal fala. Fala arrastadamente, quase dolentemente, com finais que desfalecem, se esvaem em gemido. A voz é toda de desconsolo:—mas, no que diz, revela a mais forte, segura e insolente satisfação de viver. O animal tem tudo: imensas propriedades além do mar, a consideração dos seus fornecedores, uma casa no Parc-Monceau, e «uma esposa adorável». Como deslizou ele ,a mencionar essa dama que lhe embeleza o lar? Não sei. Houve um momento em que me ergui, chamado por um velho Inglês meu amigo, que passava, recolhendo da Ópera, e que me queria simplesmente segredar, com uma convicção forte, que «a noite estava esplêndida!» Quando voltei à mesa e ao bock, o Argentino encetara em monólogo a glorificação da «sua senhora». Carmonde devorava o homenzinho com olhos que riam e que saboreavam, deliciosamente divertido. Eduardo, esse, escutava coma compostura pesada de um português antigo. E Mendibal, tendo posto ao lado sobre uma cadeira, com cuidados devotos, o ramo de cravos, desfiava as virtudes e os encantos de Madame. Sentia-se ali uma dessas admirações efervescentes, borbulhantes, que se não podem retrair, que trasbordam por toda a parte, mesmo por sobre as mesas dos cafés: onde quer que passasse, aquele homem iria deixando escorrer a sua adoração pela mulher, como um guarda-chuva encharcado vai fatalmente pingando água. Compreendi, desde que ele, com um prazer que lhe repuxava mais para fora o caroço da garganta, revelou que Madame Mendibal era francesa. Tínhamos ali, portanto, um fanatismo de preto pela graça loura duma parisiensezinha, picante em sedução e finura. Desde que compreendi, simpatizei. E o Argentino farejou em mim esta benevolência critica—porque foi para mim que se voltou, lançando o derradeiro traço, o mais decisivo, sobre as excelências de Madame: «Sim, positivamente, não havia outra em Paris! Por exemplo, o carinho com que ela cuidava da mamã (da mamã dele), senhora de grande idade, cheia de achaques! Pois era uma paciência, uma delicadeza, uma sujeição... De cair de joelhos! Então nos últimos dias a mamã andara tão rabugenta!... Madame Mendibal até emagrecera. De sorte que ele próprio, nesse domingo, lhe pedira que se fosse distrair, passar o dia a Versalhes, onde a mãe dela, Madame Jouffroy, habitava por economia. E agora viera de a esperar na gare Saint-Lazare. Pois, senhores, todo o dia em Versalhes, a santa criatura estivera com cuidado na sogra, cheia de saudades da casa, numa ânsia de recolher. Nem lhe soubera bem a visita à mamã! A maior parte da tarde, e uma tarde tão linda, gastara-a a reunir aquele esplêndido ramo de cravos amarelos para lhe trazer, a ele!»
—É verdade! Veja o senhor! Este ramo de cravos! Até consola. Olhe que para estas lembrancinhas, para estes carinhos, não há senão uma francesa Graças a Deus, posso dizer que acertei! E se tivesse filhos, um só que fosse, um rapaz, não me trocava pelo Príncipe de Gales. Eu não sei se o senhor é casado. Perdoe a confiança. Mas se não é, sempre lhe direi, como digo a todo o mundo:—Case com uma francesa, case com uma francesa!...
Não podia haver nada mais sinceramente grotesco e tocante. Como V. não vinha, fugidio Ramalho, dispersamos. Mendibal trepou para um fiacre com o seu amoroso molho de cravos. Eu arrastei os passos, no calor da noite, até ao clube. No clube encontro Chambray, que V. conhece—o «formoso Chambray». Encontro Chambray no fundo duma poltrona, derreado e radiante. Pergunto a Chambray como lhe vai a Vida, que opinião tem nesse dia da Vida. Chambray declara a Vida uma delícia. E, imediatamente, sem se conter, faz a confidência que lhe bailava impacientemente no sorriso e no olho umedecido.
Fora a Versalhes, com tenção de visitar os Fouquiers. No mesmo compartimento com ele ia uma mulher, une grande et belle femme. Corpo soberbo de Diana num vestido colante do Redfern. Cabelos apartados ao meio, grossos e apaixonados, ondeando sobre a testa curta. Olhos graves. Dois solitários nas orelhas. Ser substancial, sólido, sem chumaços e sem blagues, bem alimentado, envolto em consideração, superiormente instalado na vida.
E, no meio desta respeitabilidade física e social, um jeito guloso de molhar os beiços a cada instante, vivamente, com a ponta da língua... Chambray pensa consigo:—«burguesa, trinta anos, sessenta mil francos de renda, temperamento forte, desapontamentos de alcova». E apenas o comboio larga, toma o seu «grande ar Chambray», e dardeja à dama um desses olhares que eram outrora simbolizados pelas flechas de Cupido. Madame impassível. Mas, momentos depois, vem dentre as pálpebras um pouco pesadas, direito a Chambray (que vigiava de lado, por trás do Fígaro aberto), um desses raios de luz indagadora que, como os da lanterna de Diógenes, procuram um homem que seja um homem. Ao chegar a Courbevoie, a pretexto de baixar o vidro por causa da poeira, Chambray arrisca uma palavra, atrevidamente tímida, sobre e calor de Paris. Ela concede outra, ainda hesitante e vaga, sobre a frescura do campo. Está travada a Écloga. Em Suresnes, Chambray já se senta na banqueta ao lado dela, fumando. Em Sevres, mão de Madame arrebatada por Chambray, mão de Chambray repelida por Madame:— e ambas insensivelmente se entrelaçam. Em Viroflay, proposta brusca de Chambray para darem um passeio por um sítio de Viroflay que só ele conhece, recanto bucólico, de incomparável doçura, inacessível ao burguês. Depois, às duas horas tomariam o outro trem para Versalhes. E nem a deixa hesitar—arrebata-a moralmente, ou antes fisiologicamente, pela simples força da voz quente, dos olhos alegres, de toda a sua pessoa franca e máscula.
Ei-los no campo, com um aroma da seiva em redor, e a Primavera e Satanás conspirando e soprando sobre Madame os seus bafos quentes. Chambray conhece à orla do bosque, junto de água, uma tavernola que tem as janelas encaixilhadas em madressilva. Por que não irão lá almoçar uma caldeirada, regada com vinho branco de Suresnes? Madame na verdade sente uma fomezinha alegre de ave solta no prado: e Satanás, dando ao rabo, corre adiante, a propiciar as coisas na tavernola. Acham lá, com efeito, uma instalação magistral: quarto fresco e silencioso, mesa posta, cortina de cassa ao fundo escondendo e traindo a alcova. «Em todo o caso que o almoço suba depressa» porque eles têm de partir pelo trem das duas horas»—tal é o brado sincero de Chambray!
Quando chega a caldeirada, Chambray tem uma inspiração genial—despe o casaco, abanca em mangas de camisa. É um rasgo de boêmia e de liberdade, que a encanta, a excita, faz surgir a garota que há quase sempre no fundo da matrona. Atira também o chapéu, um chapéu de duzentos francos, para o fundo do quarto, alarga os braços, e tem este grito de alma:
—Ah oui, que c’est bon, de se desembêter!
E depois, como dizem os Espanhóis—la mar. O Sol, ao despedir-se da Terra por esse dia, deixou-os ainda em Viroflay; ainda na tavernola; ainda no quarto;—e outra vez à mesa, diante dum beefsteak reconfortante, como os acontecimentos pediam com urgência e lógica.
Versalhes, esquecido! Tratava-se de voltar à estação para tomar o trem de Paris. Ela aperta devagar as fitas do chapéu, apanha uma das flores da janela que mete no corpete, fixa um olhar lento em redor pelo quarto e pela alcova, para tudo decorar e reter—e partem. Na estação, ao saltar para um compartimento diferente (por causa da chegada a Paris), Chambray num aperto de mão, já apressado e frouxo, suplica-lhe que ao menos lhe diga como se chama. Ela murmura—Lucie.
— E é tudo o que sei dela—conclui Chambray, acendendo o charuto.—E sei também que é casada porque na gare Saint-Lazare, à espera dela, e acompanhado por um trintanário sério, de casa burguesa, estava o marido... É um rastacuero cor de chocolate, com uma barbita rala, enorme pérola na gravata... Coitado, ficou encantado quando ela lhe deu um grande ramo de cravos amarelos, que eu lhe mandara arranjar em Viroflay... Mulher deliciosa. Não há senão as francesas!
Que diz V. a estas coisas consideráveis, meu bom Ramalho? Eu digo que, em resumo, este nosso Mundo é perfeito e não há nos espaços outro mais bem organizado. Porque note V. como, ao fim deste domingo de Maio, todas estas três excelentes criaturas, com uma simples jornada a Versalhes, obtiveram um ganho positivo na vida. Chambray passou por um imenso prazer e uma imensa vaidade—os dois únicos resultados que ele conta na existência como proventos sólidos, e valendo o trabalho de existir. Madame experimentou uma sensação nova ou diferente, que a desenervou, a desafogou, lhe permitiu reentrar mais acalmada na monotonia do seu lar, e ser útil aos seus com rediviva aplicação. E o Argentino adquiriu outra inesperada e triunfal certeza, de quanto era amado e feliz na sua escolha. Três ditosos, ao fim desse dia de Primavera e de campo. E se daqui resultar um filho (o filho que o Argentino apetece), que herde as qualidades fortes e brilhantemente gaulesas de Chambray, acresce, ao contentamento individual dos três, um lucro efetivo para a sociedade. Este mundo, portanto, está superiormente organizado.
Amigo fiel, que fielmente o espera à volta da Holanda.—FRADIQUE.
VII
A «MADAME» DE JOUARRE
(Trad.).
Lisboa, Março.
Minha Querida Madrinha.—Foi ontem, por noite morta, no comboio, ao chegar a Lisboa (vindo do Norte e do Porto), que de repente me acudiu, à memória estremunhada, o juramento que lhe fiz no sábado de Páscoa em Paris, com as mãos piamente estendidas sobre a sua maravilhosa edição dos Deveres de Cícero. Juramento bem estouvado, este, de lhe mandar todas as semanas, pelo correio, Portugal em «descrições, notas, reflexões e panoramas», como se lê no subtítulo da Viagem à Suíça do seu amigo o Barão de Fernay, comendador de Carlos III e membro da Academia de Tolosa. Pois com t anta fidelidade cumpro eu os meus juramentos (quando feitos sobre a Moral de Cícero, e para regalo de quem reina na minha Vontade) que, apenas o recordei, abri logo escancaradamente ambos os olhos para recolher «descrições, notas, reflexões e panoramas» desta terra que é minha e que está a la disposicion de usted... Chegáramos a uma estação que chamam de Sacavém—e tudo o que os meus olhos arregalados viram do meu pais, através dos vidros úmidos do vagão, foi uma densa treva, de onde mortiçamente surgiam aqui e além luzinhas remotas e vagas. Eram lanternas de faluas, dormindo no rio:—e simbolizavam, dum modo bem humilhante, essas escassas e desmaiadas parcelas de verdade positiva que ao homem é dado descobrir, no universal mistério do Ser. De sorte que tornei a cerrar resignadamente os olhos—até que, à portinhola, um homem de boné de galão, com o casaco encharcado de água, reclamou o meu bilhete, dizendo Vossa Excelência! Em Portugal, boa madrinha, todos somos nobres, todos fazemos parte do Estado, e todos nos tratamos por Excelência.
Era Lisboa e chovia. Vínhamos poucos no comboio, uns trinta talvez—gente simples, de maletas ligeiras e sacos de chita, que bem depressa atravessou a busca paternal e sonolenta da Alfândega, e logo se sumiu para a cidade sob a molhada noite de Março.
No casarão soturno, à espera das bagagens sérias, fiquei eu, o Smith[2] e uma senhora esgrouviada, de óculos no bico, envolta numa velha capa de peles. Deviam ser duas horas da madrugada. O asfalto sujo do casarão regelava os pés.
Não sei quantos séculos assim esperamos, Smith imóvel, a dama e eu marchando desencontradamente e rapidamente para aquecer ao comprido do balcão de madeira, onde dois guardas de Alfândega, escuros como azeitonas, bocejavam com dignidade. Da porta do fundo, uma carreta, em que oscilava o montão da nossa bagagem, veio por fim rolando com pachorra. A dama de nariz de cegonha reconheceu logo a sua caixa de folha de Flandres, cuja tampa, caindo para trás, revelou aos meus olhos que observavam em seu serviço, exigente madrinha!) um penteador sujo, uma boceta de doce, um livro de missa e dois ferros de frisar. O guarda enterrou o braço através destas coisas íntimas, e com um gesto clemente declarou a Alfândega satisfeita. A dama abalou.
Ficamos sós, Smith e eu. Smith já arrebanhara a custo a minha bagagem. Mal faltava inexplicavelmente um saco de couro; e em silêncio, com a guia na mão, um carregador dava uma busca vagarosa através dos fardos, barricas, pacotes, velhos baús, armazenados ao fundo, contra a parede enxovalhada. Vi este digno homem hesitando pensativamente diante dum embrulho de lona, diante duma arca de pinho. Seria qualquer desses o saco de couro? Depois, descoroçoado, declarou que, positivamente, nas nossas bagagens não havia nem couro nem saco. Smith protestava, já irritado. Então o capataz arrancou a guia das mãos inábeis do carregador, e recomeçou ele, com a sua inteligência superior de chefe, uma rebusca através das «arrumações», esquadrinhando zelosamente caixotes, vasilhas, pipos, chapeleiras, canastras, latas e garrafões... Por fim sacudiu os ombros, com indizível tédio, e desapareceu para dentro, para a escuridão das plataformas interiores. Passados instantes voltou, coçando a cabeça por baixo do boné, cravando os olhos em roda, pelo chão vazio, à espera que o saco rompesse das entranhas deste globo desconsolador. Nada! Impaciente, encetei eu próprio uma pesquisa sôfrega através do casarão. O guarda da Alfândega, de cigarro colado ao beiço (bondoso homem!), deitava também aqui e além um olhar auxiliador e magistral. Nada! Repentinamente, porém, uma mulher de lenço vermelho na cabeça, que ali vadiava, naquela madrugada agreste, apontou para a porta da estação:
—Será aquilo, meu senhor?
Era! Era o meu saco, fora, no passeio, sob a chuvinha miúda. Não indaguei como ele se encontrava ali, sozinho, separado da bagagem a que estritamente a prendia o número de ordem estampado na guia em letras grossas—e reclamei uma tipoia. O carregador atirou a jaleca para cima da cabeça, saiu ao largo, e recolheu logo anunciando com melancolia que não havia tipoias.
—Não há! Essa é curiosa! Então como saem daqui os passageiros?
O homem encolheu os ombros. «As vezes havia, outras vezes não havia, era conforme calhava a sorte...» Fiz reluzir uma placa de cinco tostões, e supliquei aquele benemérito que corresse as vizinhanças da estação, à cata dum veículo qualquer com rodas, coche ou carroça, que me levasse ao conchego dum caldo e dum lar. O homem largou, resmungando. E eu logo, como patriota descontente, censurei (voltado para o capataz e para o homem da Alfândega) a irregularidade daquele serviço. Em todas as estações do Mundo, mesmo em Tunes, mesmo na Romênia, havia, à chegada dos comboios, ônibus, carros, carretas, para transportar gente e bagagem... Por que não as havia em Lisboa? Eis aí um abominável serviço que desonrava a Nação!
O aduaneiro esboçou um movimento de desalento, como na plena consciência de que todos os serviços eram abomináveis, e a Pátria toda uma irreparável desordem. Depois, para se consolar, puxou com delicia o lume ao cigarro. Assim se arrastou um destes quartos de hora que fazem rugas na face humana.
Finalmente, o carregador voltou, sacudindo a chuva, afirmando que não havia uma tipoia em todo o bairro de Santa Apolônia.
— Mas que hei de eu fazer? Hei de ficar aqui?
O capataz aconselhou-me que deixasse a bagagem, e na manhã seguinte, com uma carruagem certa (contratada talvez por escritura), a viesse recolher «muito a meu contento». Essa separação porém não convinha ao meu conforto. Pois nesse caso ele não via solução, a não ser que por acaso alguma caleche, tresnoitada e tresmalhada, viesse a cruzar por aquelas paragens.
Então, à maneira de náufragos numa ilha deserta do Pacífico, todos nos apinhamos à porta da estação, esperando através da treva a vela— quero dizer a sege salvadora. Espera amarga, espera estéril! Nenhuma luz de lanterna, nenhum rumor de rodas, cortaram a mudez daqueles ermos.
Farto, inteiramente farto, o capataz declarou que «iam dar três horas, e ele queria fechar a estação!» E eu? Ia eu ficar ali na rua, amarrado, sob a noite agreste, a um montão de bagagens intransportável? Não! nas entranhas do digno capataz decerto havia melhor misericórdia. Comovido, o homem lembrou outra solução. E era que nós, eu e o Smith, ajudados por um carregador—atirássemos a bagagem para as costas, e marchássemos com ela para o Hotel. Com efeito, este parecia ser o único recurso aos nossos males. Todavia (tanto costas amolecidas, por longos e deleitosos anos de civilização, repugnam a carregar fardos, e tão tenaz é a esperança naqueles a quem a sorte se tem mostrado amorável) eu e o Smith ainda uma vez saímos ao largo, mudos, sondando a escuridão, com o ouvido inclinado ao lajedo, a escutar ansiosamente se ao longe, muito ao longe, não sentiríamos rolar para nós o calhambeque da Providência. Nada, desoladamente nada, na sombra avara!... A minha querida madrinha, seguindo estes lances, deve ter já lágrimas a bailar nas suas compassivas pestanas. Eu não chorei— mas tinha vergonha, uma imensa e pungente vergonha do Smith! Que pensaria aquele escocês da minha pátria—e de mim, seu amo, parcela dessa pátria desorganizada? Nada mais frágil que a reputação das nações. Uma simples tipoia que falta de noite, e eis, no espírito do Estrangeiro, desacreditada toda uma civilização secular!
No entanto o capataz fervia. Eram três horas (mesmo três e um quarto), e ele queria fechar a estação! Que fazer! Abandonamo-nos, suspirando, à decisão do desespero. Agarrei o estojo de viagem e o rolo de mantas: Smith deitou aos seus respeitáveis ombros, virgens de cargas, uma grossa maleta de couro: o carregador gemeu sob a enorme mala de cantoeiras de aço. E (deixando ainda dois volumes para ser recolhidos de dia), começamos, sombrios e em fila, a trilhar à pata a distância que vai de Santa Apolônia ao Hotel de Braganza! Poucos passos adiante, como o estojo de viagem me derreava o braço, atirei-o para as costas... E todos três, de cabeça baixa, o dorso esmagado sob dezenas de quilos, com um intenso azedume a estragar-nos o fígado, lá continuamos, devagar, numa fileira soturna, avançando para dentro da capital destes reinos! Eu viera a Lisboa com um fim de repouso e de luxo. Este era o luxo, este o repouso! Ali, sob a chuvinha impertinente, ofegando, suando, tropeçando no lajedo mal junto duma rua tenebrosa, a trabalhar de carrejão!...
Não sei quantas eternidades gastamos nesta via dolorosa. Sei que de repente (como se a trouxesse, à rédea, o anjo da nossa guarda) uma caleche, uma positiva caleche, rompeu a passo do negrume duma viela. Três gritos, sôfregos e desesperados, estacaram a parelha. E, à uma, todas as malas rolaram em catadupa sobre o calhambeque, aos pés do cocheiro, que, tomado de assalto e de assombro, ergueu o chicote, praguejando com furor. Mas serenou, compreendendo a sua espantosa omnipotência—e declarou que ao Hotel de Braganza (uma distância pouco maior que toda a Avenida dos Campos Elísios), não me podia levar por menos de três mil-réis. Sim, minha madrinha, dezoito francos! Dezoito francos em metal, prata ou ouro, por uma corrida, nesta Idade democrática e industrial, depois de todo o penoso trabalho das Ciências e das Revoluções, para igualizarem e embaratecerem os confortos sociais. Trêmulo de cólera, mas submisso como quem cede à exigência dum trabuco, enfiei para a tipoia—depois de me ter despedido com grande afeto do carregador, camarada fiel da nossa trabalhosa noite. Partimos, enfim, num galope desesperado. Daí a momentos estávamos assaltando a porta adormecida do Hotel de Braganza, com repiques, clamores, punhadas, cócegas, injúrias, gemidos, todas as violências e todas as seduções. Debalde! Não foi mais resistente ao belo cavaleiro Percival, o portão de ouro do palácio da Ventura! Finalmente o cocheiro atirou-se a ela aos coices. E, decerto por compreender melhor esta linguagem, a porta, lenta e estremunhada, rolou nos seus gonzos! Graças te sejam, meu Deus, Pai inefável! Estamos enfim sob um tecto, no meio dos tapetes e estuques do Progresso, ao cabo de tão bárbara jornada. Restava pagar o batedor. Vim para ele com acerba ironia:
—Então, são três mil-réis?
À luz do vestíbulo, que me batia a face, o homem sorria. E que há de ele responder, o malandro sem par?
—Aquilo era por dizer... Eu não tinha conhecido o Sr. D. Fradique... Lá para o Sr. D. Fradique é o que quiser.
Humilhação incomparável! Senti logo não sei que torpe enternecimento, que me amolecia o coração. Era a bonacheirice, a relassa fraqueza que nos enlaça a todos nós Portugueses, nos enche de culpada indulgência uns para os outros, e irremediavelmente estraga entre nós toda a Disciplina e toda a Ordem. Sim, minha cara madrinha... Aquele bandido conhecia o Sr. D. Fradique. Tinha um sorriso brejeiro e serviçal. Ambos éramos portugueses. Dei uma libra àquele bandido!
E aqui está, para seu ensino, a verídica maneira por que se entra, no último quartel do século XIX, na grande cidade de Portugal. Todo seu, aquele que de longe de si sempre pena.—FRADIQUE.
VIII
AO SR. E. MOLLINET
Diretor da Revista de Biografia e de História
Paris, Setembro.
Meu Caro Sr. Mollinet.—Encontrei ontem à noite, ao voltar de Fontainebleau, a carta em que o meu douto amigo, em nome e no interesse da Revista de Biografia e de História, me pergunta quem é este meu compatriota Pacheco (José Joaquim Alves Pacheco), cuja morte está sendo tão vasta e amargamente carpida nos jornais de Portugal. E deseja ainda o meu amigo saber que obras, ou que fundações, ou que livros, ou que ideias, ou que acréscimo na civilização portuguesa deixou esse Pacheco, seguido ao túmulo por tão sonoras, reverentes lágr imas.
Eu casualmente conheci Pacheco. Tenho presente, como num resumo, a sua figura e a sua vida. Pacheco não deu ao seu País nem uma obra, nem uma fundação, nem um livro, nem uma ideia. Pacheco era entre nós superior e ilustre unicamente porque tinha um imenso talento. Todavia, meu caro Sr. Mollinet, este talento, que duas gerações tão soberbamente aclamaram, nunca deu, da sua força, uma manifestação positiva, expressa, visível! O talento imenso de Pacheco ficou sempre calado, recolhido, nas profundidades de Pacheco! Constantemente ele atravessou a vida por sobre eminências sociais: Deputado, Director-geral, Ministro, Governador de bancos, Conselheiro de Estado, Par, Presidente do Conselho—Pacheco tudo foi, tudo teve, neste País que, de longe e a seus pés, o contemplava, assombrado do seu imenso talento. Mas nunca, nestas situações, por proveito seu ou urgência do Estado, Pacheco teve necessidade de deixar sair, para se afirmar e operar fora, aquele imenso talento que lá dentro o sufocava. Quando os amigos, os partidos, os jornais, as repartições, os corpos coletivos, a massa compacta da Nação murmurando em redor de Pacheco «que imenso talento!» o convidavam a alargar o seu domínio e a sua fortuna—Pacheco sorria, baixando os olhos sérios por trás dos óculos dourados, e seguia, sempre para cima, sempre para mais alto, através das instituições, com o seu imenso talento aferrolhado dentro do crânio, como no cofre dum avaro. E esta reserva, este sorrir, este lampejar dos óculos, bastavam ao País, que neles sentia e saboreava a resplandecente evidência do talento de Pacheco.
Este talento nasceu em Coimbra, na aula de direito natural, na manhã em que Pacheco, desdenhando a Sebenta, assegurou que «o século XIX era um século de progresso e de luz». O curso começou logo a pressentir e a afirmar, nos cafés da Feira, que havia muito talento em Pacheco: e esta admiração cada dia crescente do curso, comunicando-se, como todos os movimentos religiosos, das multidões impressionáveis às classes raciocinadoras, dos rapazes aos lentes, levou facilmente Pacheco a um prêmio no fim do ano. A fama desse talento alastrou então por toda a Academia —que, vendo Pacheco sempre pensabundo, já de óculos, austero nos seus passos, com praxistas gordos debaixo do braço, percebia ali um grande espírito que se concentra e se retesa todo em força íntima. Esta geração acadêmica, ao dispersar, levou pelo País, até os mais sertanejos burgos, a notícia do imenso talento de Pacheco. E lá em escuras boticas de Trás-os-Montes, em lojas palreiras de barbeiros do Algarve, se dizia, com respeito, com esperança:—«Parece que há agora aí um rapaz de imenso talento que se formou, o Pacheco!»
Pacheco estava maduro para a representação nacional. Veio ao seu seio—trazido por um Governo (não recordo qual) que conseguira, com dispêndios e manhas, apoderar-se do precioso talento de Pacheco. Logo na estrelada noite de Dezembro em que ele, em Lisboa, foi ao Martinho tomar chá e torradas, se sussurrou pelas mesas, com curiosidade:—«É o Pacheco, rapaz de imenso talento!» E desde que as Câmaras se constituíram, todos os olhares, os do governo e os da oposição, se começaram a voltar com insistência, quase com ansiedade, para Pacheco, que, na ponta duma bancada, conservava a sua atitude de pensador recluso, os braços cruzados sobre o colete de veludo, a fronte vergada para o lado como sobo peso das riquezas interiores, e os óculos a faiscar... Finalmente uma tarde, na discussão da resposta ao discurso da Coroa, Pacheco teve um movimento como para atalhar um padre zarolho que arengava sobre a «liberdade». O sacerdote imediatamente estacou com deferência; os taquígrafos apuravam vorazmente a orelha: e toda a câmara cessou o seu desafogado sussurro, para que, num silêncio condignamente majestoso, se pudesse pela vez primeira produzir o imenso talento de Pacheco. No entanto Pacheco não prodigalizou desde logo os seus tesouros. De pé, com o dedo espetado (jeito que foi sempre muito seu) , Pacheco afirmou num tom que traia a segurança do pensar e do saber íntimo:—«que ao lado da liberdade devia sempre coexistir a autoridade!» Era pouco, decerto:—mas a câmara compreendeu bem que, sob aquele curto resumo, havia um mundo, todo um formidável mundo, de ideias sólidas. Não volveu a falar durante meses—mas o seu talento inspirava tanto mais respeito, quanto mais invisível e inacessível se conservava lá dentro, no fundo, no rico e povoado fundo do seu ser. O único recurso que restou então aos devotos desse imenso talento (que já os tinha, incontáveis), foi contemplar a testa de Pacheco—como se olha para o céu pela certeza que Deus está por trás, dispondo. A testa de Pacheco oferecia uma superfície escanteada, larga e lustrosa. E muitas vezes, junto dele, Conselheiros e Diretores gerais balbuciavam maravilhados:—«Nem é necessário mais! Basta ver aquela testa!»
Pacheco pertenceu logo as principais comissões parlamentares. Nunca porém acedeu a relatar um projeto, desdenhoso das especialidades. Apenas às vezes, em silêncio, tomava uma nota lenta. E quando emergia da sua concentração, espetando o dedo, era para lançar alguma ideia geral sobre a Ordem, o Progresso, o Fomento, a Economia. Havia aqui a evidente atitude dum imenso talento que (como segredavam os seus amigos, piscando o olho com finura) «está à espera, lá em cima, a pairar». Pacheco mesmo, de resto, ensinava (esboçando, com a mão gorda, o voar superior duma asa por sobre o arvoredo copado) que o «talento verdadeiro só devia conhecer as coisas pela rama». Este imenso talento não podia deixar de socorrer os conselhos da Coroa. Pacheco, numa recomposição ministerial (provocada por uma roubalheira) foi Ministro: e imediatamente se percebeu que maciça consolidação viera dar ao Poder o imenso talento de Pacheco. Na sua pasta (que era a da Marinha), Pacheco não fez durante os longos meses de gerência «absolutamente nada», como insinuaram três ou quatro espíritos amargos e estreitamente positivos. Mas pela primeira vez, dentro deste regime, a Nação deixou de curtir inquietações e dúvidas sobre o nosso Império Colonial. Por quê? Porque sentia que, finalmente, os interesses supremos desse Império estavam confiados a um imenso talento, ao talento imenso de Pacheco.
Nas cadeiras do governo, Pacheco rarissimamente surdia do seu silêncio repleto e fecundo. Às vezes, porém, quando a oposição se tornava clamorosa, Pacheco descerrava o braço, tomava com lentidão uma nota a lápis:—e esta nota, traçada com saber e maduríssimo pensar, bastava para perturbar, acuar a oposição. É que o imenso talento de Pacheco terminara por inspirar, nas câmaras, nas comissões, nos centros, um terror disciplinar! Ai desse sobre quem viesse a desabar, com cólera, aquele talento imenso! Certa lhe seria a humilhação irresgatável! Assim dolorosissimamente o experimentou o pedagogista, que um dia se arrojou a acusar o Sr. Ministro do Reino (Pacheco dirigia então o Reino) de descurar a Instrução do País! Nenhuma incriminação podia ser mais sensível àquele imenso espírito que, na sua frase lapidária e suculenta, ensinara que «um povo sem o curso dos liceus é um povo incompleto». Espetando o dedo (jeito sempre tão seu) Pacheco esborrachou o homem temerário com esta coisa tremenda:—«Ao ilustre deputado que me censura só tenho a dizer que enquanto, sobre questões de Instrução Pública, S. Ex.a, aí nessas bancadas, faz berreiro, eu, aqui nesta cadeira, faço luz!» —Eu estava lá, nesse esplêndido momento, na galeria. E não me recordo de ter jamais ouvido, numa assembleia humana, uma tão apaixonada e fervente rajada de aclamações! Creio que foi daí a dias que Pacheco recebeu a grã-cruz da Ordem de Sant’Iago.
O imenso talento de Pacheco pouco a pouco se tornava um credo nacional. Vendo que inabalável apoio esse imenso talento dava às instituições que servia, todas o apeteceram. Pacheco começou a ser um Diretor universal de Companhias e de Bancos. Cobiçado pela Coroa, penetrou no Conselho de Estado. O seu partido reclamou avidamente que Pacheco fosse seu Chefe. Mas os outros partidos cada dia se socorriam, com submissa reverência, do seu imenso talento. Em Pacheco pouco a pouco se concentrava a Nação.
À maneira que ele assim envelhecia, e crescia em influência e dignidades, a admiração pelo seu imenso talento chegou a tomar no País certas formas de expressão só próprias da religião e do amor. Quando ele foi Presidente do Conselho, havia devotos que espalmavam a mão no peito com unção, reviravam o branco do olho ao Céu, para murmurar piamente:—«Que talento!» E havia amorosos que, cerrando os olhos e repenicando um beijo nas pontas apinhadas dos dedos, balbuciavam com langor:—«Ai! que talento!» E, para que o esconder? Outros havia, a quem aquele imenso talento amargamente irritava, como um excessivo e desproporcional privilégio. A esses ouvi eu bradar com furor, atirando patadas ao chão: —«Irra, que é ter talento de mais!» Pacheco no entanto já não falava. Sorria apenas. A testa cada vez se lhe tornava mais vasta.
Não relembrarei a sua incomparável carreira. Basta que o meu caro Sr. Mollinet percorra os nossos anais. Em todas as instituições, reformas, fundações, obras, encontrará o cunho de Pacheco. Portugal todo, moral e socialmente, está repleto de Pacheco. Foi tudo, teve tudo. Decerto, o seu talento era imenso! Mas imenso se mostrou o reconhecimento da sua Pátria! Pacheco e Portugal, de resto, necessitavam insubstituivelmente um do outro, e ajustadissimamente se completavam. Sem Portugal—Pacheco não teria sido o que foi entre os homens: mas sem Pacheco—Portugal não seria o que é entre as nações!
A sua velhice ofereceu um caráter augusto. Perdera o cabelo radicalmente. Todo ele era testa. E mais que nunca revelava o seu imenso talento— mesmo nas mínimas coisas. Muito bem me lembro da noite (sendo ele Presidente do Conselho) em que, na sala da Condessa de Arrodes, alguém, com fervor, apeteceu conhecer o que S. Ex.a pensava de Canovas del Castillo. Silenciosamente, magistralmente, sorrindo apenas, S. Ex.a deu com a mão grave, de leve, um corte horizontal no ar. E foi em torno um murmúrio de admiração, lento e maravilhado. Naquele gesto quantas coisas subtis, fundamente pensadas! Eu por mim, depois de muito esgaravatar, interpretei-o deste modo: —«medíocre, meia-altura, o Sr. Canovas!» Porque, note o meu caro Sr. Mollinet como aquele talento, sendo tão vasto—era ao mesmo tempo tão fino!
Rebentou;—quero dizer, S. Ex.a morreu, quase repentinamente, sem sofrimento, no começo deste duro Inverno. Ia ser justamente criado Marquês de Pacheco. Toda a Nação o chorou com infinita dor. Jaz no alto de S. João, sob um mausoléu, onde por sugestão do Sr. conselheiro Acácio (em carta ao Diário de Notícias) foi esculpida uma figura de Portugal chorando o Gênio.
Meses depois da morte de Pacheco, encontrei a sua viúva, em Sintra, na casa do Dr. Videira. É uma mulher (asseguram amigos meus) de excelente inteligência e bondade. Cumprindo um dever de português, lamentei, diante da ilustre e afável senhora, a perda irreparável que era sua e da Pátria. Mas quando, comovido, aludi ao imenso talento de Pacheco, a viúva de Pacheco ergueu, num brusco espanto, os olhos que conservara baixos—e um fugidio, triste, quase apiedado sorriso arregaçou-lhe os cantos da boca pálida... Eterno desacordo dos destinos humanos! Aquela mediana senhora nunca compreendera aquele imenso talento! Creia-me, meu caro Sr. Mollinet, seu dedicado.—FRADIQUE.
IX
A CLARA...
(Trad.).
Paris, Junho.
Minha Adorada Amiga.—Não, não foi na Exposição dos Aquarelistas, em Março, que eu tive consigo o meu primeiro encontro, por mandado dos Fados. Foi no Inverno, minha adorada amiga, no baile dos Tressans. Foi aí que a vi, conversando com Madame de Jouarre, diante duma consola, cujas luzes, entre os molhos de orquídeas, punham nos seus cabelos aquele nimbo de ouro que tão justamente lhe pertence como «rainha de graça entre as mulheres». Lembro ainda, bem religiosamente, o seu sorrir cansado, o vestido preto com relevos cor de botão de ouro, o leque antigo que tinha fechado no regaço. Passei; mas logo tudo em redor me pareceu irreparavelmente enfadonho e feio; e voltei a readmirar , a meditar em silêncio a sua beleza, que me prendia pelo esplendor patente e compreensível, e ainda por não sei quê de fino, de espiritual, de dolente e de meigo que brilhava através e vinha da alma. E tão intensamente me embebi nessa contemplação, que levei comigo a sua imagem, decorada e inteira, sem esquecer um fio dos seus cabelos ou uma ondulação da seda que a cobria, e corri a encerrar-me com ela, alvoroçado, como um artista que nalgum escuro armazém, entre poeira e cacos, descobrisse a Obra sublime dum Mestre perfeito. E, por que o não confessarei? Essa imagem foi para mim, ao princípio, meramente um Quadro, pendurado no fundo da minha alma, que eu a cada doce momento olhava—mas para lhe louvar apenas, com crescente surpresa, os encantos diversos de Linha e de Cor. Era somente uma rara tela, posta em sacrário, imóvel e muda no seu brilho, sem outra influência mais sobre mim que a duma forma muito bela que cativa um gosto muito educado. O meu ser continuava livre, atento às curiosidades que até aí o seduziam, aberto aos sentimentos que até aí o solicitavam;—e só quando sentia a fadiga das coisas imperfeitas ou o desejo novo duma ocupação mais pura, regressava à Imagem que em mim guardava, como um Frade Angélico, no seu claustro, pousando os pincéis ao fim do dia. e ajoelhando ante a Madona a implorar dela repouso e inspiração superior.
Pouco a pouco, porém, tudo o que não foi esta contemplação, perdeu para mim valor e encanto. Comecei a viver cada dia mais retirado no fundo da minha alma, perdido na admiração da Imagem que lá rebrilhava—até que só essa ocupação me pareceu digna da vida, no mundo todo não reconheci mais que uma aparência inconstante, e fui como um monge na sua cela, alheio às coisas mais reais, de joelhos e hirto no seu sonho, que é para ele a única realidade.
Mas não era, minha adorada amiga, um pálido e passivo êxtase diante da sua Imagem Não! era antes um ansioso e forte estudo dela, com que eu procurava conhecer através da Forma a Essência, e (pois que a Beleza é o esplendor da Verdade) deduzir das perfeições do seu Corpo as superioridades da sua alma. E foi assim que lentamente surpreendi o segredo da sua natureza; a sua clara testa que o cabelo descobre, tão clara e lisa, logo me contou a retidão do seu pensar: o seu sorriso, duma nobreza tão intelectual, facilmente me revelou o seu desdém do mundanal e do efêmero, a sua incansável aspiração para um viver de verdade e de beleza: cada graça de seus movimentos me traiu uma delicadeza do seu gosto: e nos seus olhos diferencei o que neles tão adoravelmente se confunde, luz de razão, calor de coração, luz que melhor aquece, calor que melhor alumia... Já a certeza de tantas perfeições bastaria a fazer dobrar, numa adoração perpétua, os joelhos mais rebeldes. Mas sucedeu ainda que, ao passo que a compreendia e que a sua Essência se me manifestava, assim visível e quase tangível, uma influência descia dela sobre mim—uma influência estranha, diferente de todas as influências humanas, e que me dominava com transcendente omnipotência. Como lhe poderei dizer? Monge, fechado na minha cela, comecei a aspirar à santidade, para me harmonizar e merecer a convivência com a Santa Clara a que me votara. Fiz então sobre mim um áspero exame de consciência. Investiguei com inquietação se o meu pensar era condigno da pureza do seu pensar; se no meu gosto não haveria desconcertos que pudessem ferir a disciplina do seu gosto; se a minha ideia da vida era tão alta e séria como aquela que eu pressentira na espiritualidade do seu olhar, do seu sorrir; e se o meu coração não se dispersara e enfraquecera de mais, para poder palpitar com paralelo vigor junto do seu coração. E tem sido em mim agora um arquejante esforço, para subir a uma perfeição idêntica aquela que, em si, tão submissamente adoro.
De sorte que a minha querida amiga, sem saber, se tornou a minha educadora. E tão dependente fiquei logo desta direção, que já não posso conceber os movimentos do meu ser senão governados por ela e por ela enobrecidos. Perfeitamente sei que tudo o que hoje surge em mim de algum valor, ideia ou sentimento, é obra dessa educação que a sua alma dá à minha, de longe, só com existir de ser compreendida. Se hoje me abandonasse a sua influência—devia antes dizer, como um asceta, a sua Graça—todo eu rolaria para uma inferioridade sem remição. Veja pois como se me tornou necessária e preciosa... E considere que, para exercer esta supremacia salvadora, as suas mãos não tiveram de se impor sobre as minhas—bastou que eu a avistasse de longe, numa festa, resplandecendo. Assim um arbusto silvestre floresce à borda dum fosso, porque lá em cima, nos remotos céus, fulge um grande sol que não o vê, não o conhece, e magnanimamente o faz crescer, desabrochar, e dar o seu curto aroma... Por isso o meu amor atinge esse sentimento indescrito e sem nome que a Planta, se tivesse consciência, sentiria pela Luz.
E considere ainda que, necessitando de si como da luz, nada lhe rogo, nenhum bem imploro de quem tanto pode e é para mim dona de todo o bem. Só desejo que me deixe viver sob essa influência, que, emanando do simples brilho das suas perfeições, tão fácil e docemente opera o meu aperfeiçoamento. Só peço esta permissão caridosa. Veja pois quanto me conservo distante e vago, na esbatida humildade duma adoração que até receia que o seu murmúrio, um murmúrio de prece, roce o vestido da imagem divina...
Mas se a minha querida amiga por acaso, certa do meu renunciamento a toda a recompensa terrestre, me permitisse desenrolar junto de si, num dia de solidão, a agitada confidência do meu peito, decerto faria um ato de inefável misericórdia—como outrora a Virgem Maria quando animava os seus adoradores, ermitas e santos, descendo numa nuvem e concedendo-lhes um sorriso fugitivo, ou deixando-lhes cair entre as mãos erguidas uma rosa do Paraíso. Assim, amanhã, vou passar a tarde com Madame de Jouarre. Não há aí a santidade duma cela ou duma ermida, mas quase o seu isolamento: e se a minha querida amiga surgisse, em pleno resplendor, e eu recebesse de si, não direi uma rosa, mas um sorriso, ficaria então radiosamente seguro de que este meu amor, ou este meu sentimento indescrito e sem nome que vai além do amor, encontra ante seus olhos piedade e permissão para esperar.—FRADIQUE.
X
A «MADAME» DE JOUARRE
(Trad .).
Lisboa, Junho.
Minha Excelente Madrinha.—Eis o que tem «visto e feito», desde Maio, na formosíssima Lisboa, Ulissipo pulquérrima, o seu admirável afilhado. Descobri um patrício meu, das Ilhas, e meu parent e, que vive há três anos construindo um Sistema de Filosofia no terceiro andar duma casa de hóspedes, na Travessa da Palha. Espírito livre, empreendedor e destro, paladino das Ideias Gerais, o meu parente, que se chama Procópio, considerando que a mulher não vale o tormento que espalha, e que os oitocentos mil-réis de um olival bastam, e de sobra, a um espiritualista— votou a sua vida à Lógica e só se interessa e sofre pela Verdade. É um filósofo alegre; conversa sem berrar; tem uma aguardente de moscatel excelente,—e eu trepo com gosto duas ou três vezes por semana a sua oficina de Metafísica a saber se, conduzido pela alma doce de Maine de Biran, que é o seu cicerone nas viagens do Infinito, ele já entreviu enfim, disfarçada por trás dos seus derradeiros véus, a Causa das Causas. Nestas piedosas visitas vou, pouco a pouco, conhecendo alguns dos hóspedes que nesse terceiro andar da Travessa da Palha gozam uma boa vida de cidade, a doze tostões por dia, fora vinho e roupa lavada. Quase todas as profissões, em que se ocupa a classe média em Portugal, estão aqui representadas com fidelidade, e eu posso assim estudar, sem esforço, como num índice, as ideias e os sentimentos que no nosso Ano da Graça formam o fundo moral da Nação.
Esta casa de hóspedes oferece encantos. O quarto do meu primo Procópio tem uma esteira nova, um leito de ferro filosófico e virginal, cassa vistosa nas janelas, rosinhas e aves pela parede, —e é mantido em rígido asseio por uma destas criadas como só produz Portugal, bela moça de Trás-os-Montes, que, arrastando os seus chinelos com a indolência grave duma ninfa latina, varre esfrega e arruma todo o andar; serve nove almoços, nove jantares e nove chás; escarola as loiças; prega esses botões de calças e de ceroulas que os Portugueses estão constantemente a perder; engoma as saias da Madama; reza o terço da sua aldeia; e tem ainda vagares para amar desesperadamente um barbeiro vizinho, que está decidido a casar com ela quando for empregado na Alfândega. (E tudo isto por três mil-réis de soldada). Ao almoço há dois pratos, sãos e fartos, de ovos e bifes. O vinho vem do lavrador, vinhinho leve e precoce, feito pelos veneráveis preceitos das Geórgicas, e semelhante decerto ao vinho da Rethia—quo te carmine dicam, Rethica? A torrada, tratada pelo lume forte, é incomparável. E os quatro painéis que orlam a sala, um retrato de Fontes (estadista, já morto, que é tido pelos Portugueses em grande veneração), uma imagem de Pio IX sorrindo e abençoando, uma vista da várzea de Colares, e duas donzelas beijocando uma rola, inspiram as salutares ideias, tão necessárias, de Ordem Social, de Fé, de Paz campestre, e de Inocência.
A patroa, D. Paulina Soriana, é uma Madama de quarenta outonos, frescalhota e roliça, com um pescoço muito nédio, e toda ela mais branca que o chambre branco que usa por sobre uma saia de seda roxa. Parece uma excelente senhora, paciente e maternal, de bom juízo e de boa economia. Sem ser rigorosamente viúva—tem um filho, já gordo também, que rói as unhas e segue o curso dos liceus. Chama-se Joaquim, e, por ternura, Quinzinho; sofreu esta Primavera não sei que duro mal que o forçava a infindáveis orchatas e semicúpios; e está destinado por D Paulina à Burocracia que ela considera, e muito justamente, a carreira mais segura e a mais fácil.
—O essencial para um rapaz (afirmava há dias a apreciável senhora, depois do almoço, traçando a perna) é ter padrinhos e apanhar um emprego; fica logo arrumado; o trabalho é pouco e o ordenadozinho está certo ao fim do mês.
Mas D. Paulina está tranquila com a carreira do Quinzinho. Pela influência (que é toda-poderosa nestes Reinos) dum amigo certo, o sr. conselheiro Vaz Neto, há já no Ministério das Obras Públicas ou da Justiça uma cadeira de amanuense, reservada, marcada com lenço, à espera do Quinzinho. E mesmo, como o Quinzinho foi reprovado nos últimos exames, já o sr. conselheiro Vaz Neto lembrou que, visto ele se mostrar assim desmazelado, com pouco gosto pelas letras, o melhor era não teimar mais nos estudos e no Liceu, e entrar imediatamente para a repartição...
—Que ainda assim, (ajuntou a boa senhora, quando me honrou com estas confidências) gostava que o Quinzinho acabasse os estudos. Não era pela necessidade, e por causa do emprego, como V. Ex.a vê: era pelo gosto.
Quinzinho tem pois a sua prosperidade agradavelmente garantida. De resto suponho que D. Paulina junta um pecúlio prudente. Na casa, bem afreguesada, há agora sete hóspedes—e todos fiéis, sólidos, gastando, com os extras, de quarenta e cinco a cinquenta mil-réis por mês. O mais antigo, o mais respeitado (e aquele que eu precisamente já conheço) é o Pinho—o Pinho brasileiro, o comendador Pinho. É ele quem todas as manhãs anuncia a hora do almoço (o relógio do corredor ficou desarranjado desde o Natal), saindo do seu quarto às dez horas, pontualmente, com a sua garrafa de água de Vidago, e vindo ocupar à mesa, já posta, mas ainda deserta, a sua cadeira, uma cadeira especial de verga, com almofadinha de vento. Ninguém sabe deste Pinho nem a idade, nem a família, nem a terra de província em que nasceu, nem o trabalho que o ocupou no Brasil, nem as origens da sua comenda. Chegou uma tarde de Inverno num paquete da Mala Real; passou cinco dias no Lazareto; desembarcou com dois baús, a cadeira de verga, e cinquenta e seis latas de doce de tijolo; tomou o seu quarto nesta casa de hóspedes, com a janela para a travessa; e aqui engorda, pacífica e risonhamente, com os seis por cento das suas inscrições. É um sujeito atochado, baixote, de barba grisalha, a pele escura, toda em tons de tijolo e de café, sempre vestido de casimira preta, com uma luneta de ouro pendente duma fita de seda, que ele, na rua, a cada esquina, desemaranha do cordão de ouro do relógio, para ler com interesse e lentidão os cartazes dos teatros. A sua vida tem uma dessas prudentes regularidades, que tão admiravelmente concorrem para criar a ordem nos Estados. Depois de almoço calça as botas de cano, lustra o chapéu de seda, e vai muito devagar até à Rua dos Capelistas, ao escritório térreo do corretor Godinho, onde passa duas horas pousado num mocho, junto do balcão, com as mãos cabeludas encostadas ao cabo do guarda-sol. Depois entala o guarda-sol debaixo do braço, e pela Rua do Ouro, com uma pachorra saboreada, parando a contemplar alguma senhora de sedas mais tufadas, ou alguma vitória de librés mais lustrosas, alonga os passos para a tabacaria Sousa, ao Rossio, onde bebe um copo de água de Caneças, e repousa até que a tarde refresque. Segue então para a Avenida, a gozar o ar puro e o luxo da cidade, sentado num banco; ou dá a volta ao Rossio, sob as árvores, com a face erguida e dilatada em bem-estar. Às seis recolhe, despe e dobra a sobrecasaca, calça os chinelos de marroquim, enverga uma regalada quinzena de ganga, e janta, repetindo sempre a sopa. Depois do café dá um «higiênico» pela Baixa, com demoras pensativas, mas risonhas, diante das vitrinas de confeitarias e de modas; e em certos dias sobe o Chiado, dobra a esquina da Rua Nova da Trindade, e regateia, com placidez e firmeza, uma senha para o Ginásio. Todas as sextas-feiras entra no seu banco, que é o London Brazilian. Aos domingos, à noitinha, com recato, visita uma moça gorda e limpa que mora na Rua da Madalena. Cada semestre recebe o juro das suas inscrições.
Toda a sua existência é assim um pautado repouso. Nada o inquieta, nada o apaixona. O Universo, para o comendador Pinho, consta de duas únicas entidades—ele próprio, Pinho, e o Estado que lhe dá os seis por cento: portanto o Universo todo está perfeito, e a vida perfeita, desde que Pinho, graças às águas de Vidago, conserve apetite e saúde, e que o Estado continue a pagar fielmente o cupão. De resto, pouco lhe basta para contentar a porção de Alma e Corpo de que aparentemente se compõe. A necessidade que todo o ser vivo (mesmo as ostras, segundo afirmam os Naturalistas) tem de comunicar com os seus semelhantes por meio de gestos ou sons, é em Pinho pouco exigente. Pelos meados de Abril, sorri e diz, desdobrando o guardanapo—«temos o Verão conosco»: todos concordam e Pinho goza. Por meados de Outubro, corre os dedos pela barba e murmura—«temos conosco o Inverno» se outro hóspede discorda, Pinho emudece, porque teme controvérsias. E esta honesta permutação de ideias lhe basta. À mesa, contanto que lhe sirvam uma sopa suculenta, num prato fundo, que ele possa encher duas vezes—fica consolado e disposto a dar graças a Deus. O Diário de Pernambuco, o Diário de Notícias, alguma comédia do Ginásio, ou uma Mágica, satisfazem e de sobra essas outras necessidades de inteligência e de imaginação, que Humboldt encontrou mesmo entre os Botecudos. Nas funções do sentimento, Pinho só pretende modestamente (como revelou um dia ao meu primo) «não apanhar uma doença». Com as coisas públicas está sempre agradado, governe este ou governe aquele, contanto que a polícia mantenha a ordem, e que não se produzam nos princípios e nas ruas distúrbios nocivos ao pagamento do cupão. E enquanto ao destino ulterior da sua alma, Pinho (como ele a mim próprio me assegurou)—«só deseja depois de morto que o não enterrem vivo». Mesmo acerca dum ponto tão importante, como é para um comendador o seu mausoléu, Pinho pouco requer:—apenas uma pedra lisa e decente, com o seu nome, e um singelo orai por ele.
Erraríamos, porém, minha querida madrinha, em supor que Pinho seja alheio a tudo quanto seja humano Não! Estou certo que Pinho respeita e ama a Humanidade. Somente a Humanidade, para ele, tornou-se, no decurso da sua vida, excessivamente restrita. Homens, homens sérios, verdadeiramente merecedores desse nobre nome, e dignos de que por eles se mostre reverência, afeto, e se arrisque um passo que não canse muito—para Pinho só há os prestamistas do Estado. Assim, meu primo Procópio, com uma malícia bem inesperada num espiritualista, contou-lhe há tempos em confidência, arregalando os olhos, que eu possuía muitos papéis! muitas apólices! muitas inscrições!... Pois na primeira manhã que voltei, depois dessa revelação, à casa de hóspedes, Pinho, ligeiramente corado, quase comovido, ofereceu-me uma boceta de doce de tijolo embrulhada num guardanapo. Ato tocante, que explica aquela alma! Pinho não é um egoísta, um Diógenes de rabona preta, secamente retraído dentro da pipa da sua inutilidade. Não. Há nele toda a humana vontade de amar os homens seus semelhantes, e de os beneficiar. Somente quem são, para Pinho, os seus genuínos «semelhantes»? Os prestamistas do Estado. E em que consiste para Pinho o ato de benefício? Na cessão aos outros daquilo que a ele lhe é inútil. Ora Pinho não se dá bem com o uso da goiabada—e logo que soube que eu era um possuidor de inscrições, um seu semelhante, capitalista como ele, não hesitou, não se retraiu mais ao seu dever humano, praticou logo o ato de benefício, e lá veio, ruborizado e feliz, trazendo o seu doce dentro dum guardanapo.
É o comendador Pinho um cidadão inútil? Não, certamente! Até para manter em estabilidade e solidez, a ordem duma nação, não há mais prestadio cidadão do que este Pinho, com a sua placidez de hábitos, o seu fácil assentimento a todos os feitios da coisa pública, a sua conta do banco verificada às sextas-feiras, os seus prazeres colhidos em higiênico recato, a sua reticência, a sua inércia. Dum Pinho nunca pode sair ideia ou ato, afirmação ou negação, que desmanche a paz do Estado. Assim gordo e quieto, colado sobre o organismo social, não concorrendo para o seu movimento, mas não o contrariando também, Pinho apresenta todos os caracteres duma excrescência sebácea. Socialmente, Pinho é um lobinho. Ora nada mais inofensivo que um lobinho: e nos nossos tempos, em que o Estado está cheio de elementos mórbidos, que o parasitam, o sugam, o infeccionam e o sobreexcitam, esta inofensibilidade de Pinho pode mesmo (em relação aos interesses da ordem) ser considerada como qualidade meritória. Por isso o Estado, segundo corre, o vai criar barão. E barão dum título que os honra a ambos, ao Estado e a Pinho, porque é nele simultaneamente prestada uma homenagem graciosa e discreta à Família e à Religião. O pai de Pinho chamava-se Francisco—Francisco José Pinho. E o nosso amigo vai ser feito barão de S. Francisco.
Adeus, minha querida madrinha! Vamos no nosso décimo-oitavo dia de chuva! Desde o começo de Junho e das rosas, que neste país de sol sobre azul, na terra trigueira da oliveira e do louro, queridos a Febo, está chovendo, chovendo em fios de água cerrados, contínuos, imperturbados, sem sopro de vento que os ondule, nem raio de luz que os diamantize, formando das nuvens às ruas uma trama mole de umidade e tristeza, onde a alma se debate e definha, como uma borboleta presa nas teias duma aranha. Estamos em pleno versículo XVII, do capítulo VII do «Gênese». No caso destas águas do céu não cessarem, eu concluo que as intenções de Jeová, para com este país pecador, são diluvianas; e, não me julgando menos digno da Graça e da Aliança divina do que Noé, vou comprar madeira e betume, e fazer uma Arca segundo os bons modelos hebraicos ou assírios. Se por acaso, daqui a tempos, uma pomba branca for bater com as asas à sua vidraça, sou eu que aportei ao Havre na minha Arca, levando comigo, entre outros animais, o Pinho e a D. Paulina, para que mais tarde, tendo baixado as águas, Portugal se repovoe com proveito, e o Estado tenha sempre Pinhos a quem peça dinheiro emprestado, e Quinzinhos gordos com quem gaste o dinheiro que pediu a Pinho. Seu afilhado do coração.— FRADIQUE.
XI
A MR. BERTRAND B.
Engenheiro na Palestina
Paris, Abril.
Meu Caro Bertrand. — Muito ironicamente, hoje, neste domingo de Páscoa, em que os céus contentes se revestiram pascalmente duma casula de ouro e de azul, e os lilases novos perfumam o meu jardim para o santificar, me chega a tua horrenda carta, contando que findaste o traçado do Caminho de Ferro de Jafa, a Jerusalém! E triunfas! Decerto, à porta de Damasco, com as botas forbes enterradas no pó de Josafat, o guarda-sol pousado sobre uma pedra tumular de profeta, o lápis ainda errante sobre o papel, sorris, todo te dilatas, e através das lunetas defumadas contemplas, marcada por bandeirinhas, a «linha» onde em breve, fumegando e guinchando, rolará da velha Jepo, para a velha Sião, o negro comboio da tua negra obra! Em redor os empreiteiros, limpando o grosso suor da façanha, desarrolham as garrafas da cerveja festiva! E por trás de vós o Progresso, hirto contra as muralhas de Herodes, todo engonçado, todo aparafusado, também triunfa, esfregan do, com estalidos ásperos, as suas rígidas mãos de ferro fundido.
Bem o sinto, bem o compreendo o teu escandaloso traçado, oh filho dileto e fatal da Escola de Pontes e Calçadas! Nem necessitava esse plano com que me deslumbras, todo em linhas escarlates, parecendo golpes duma faca vil, por cima duma carne nobre. É em Jafa, na antiquíssima Jepo, já heroica e santa antes do dilúvio, que a tua primeira Estação com os alpendres, e a carvoeira, e as balanças, e a sineta, e o chefe do boné agaloado, se ergue entre esses laranjais, gabados pelo Evangelho, onde S. Pedro, correndo aos brados das mulheres, ressuscitou Dorcas, a boa tecedeira, e a ajudou a sair do seu sepulcro. Daí a locomotiva, com a sua 1.a classe forrada de chita, rola descaradamente pela planície de Saaron, tão amada do Céu, que, mesmo sob o bruto pisar das hordas filistinas, nunca nela murchavam anêmonas e rosas. Corta através de Beth-Dagon, e mistura o pó do seu carvão de Cardife, ao vetusto pó do Templo de Baal, que Sansão, mudo e repassado de tristeza, derrocou movendo os ombros. Corre por sobre Lida, e atroa com guinchos o grande S. Jorge, que ainda couraçado, emplumado, e o guante sobre a espada, ali dorme o seu sono terrestre. Toma água, por um tubo de couro, do Poço Santo donde a Virgem na fugida para o Egito, repousando sob o figueiral, deu de beber ao Menino. Para em Ramleh, que é a velha Arimateia (Arimateia quinze minutos de demora!), a aldeia dos doces hortos e do homem doce que enterrou o Senhor. Fura, por túneis fumarentos, as colinas de Judá, onde choraram os profetas. Rompe por entre ruínas que foram a cidadela e depois a sepultura dos Macabeus. Galga, numa ponte de ferro, a torrente em que David, errante, escolhia pedras para a sua funda derrubadora de monstros. Coleia e arqueja pelo vale melancólico que habitou Jeremias. Suja ainda Emaús, vara o Cédron, e estaca enfim, sulada, azeitada, sórdida de felugem, no vale de Hennom, nos términos de Jerusalém!
Ora, meu bom Bertrand, eu que não sou das Pontes e Calçadas, nem acionista da Companhia dos Caminhos de Ferro da Palestina, apenas um peregrino saudoso desses lugares adoráveis, considero que a tua obra de civilização é uma obra de profanação. Bem sei, engenheiro! S. Pedro ressuscitando a velha Dorcas; a florescência miraculosa das roseires de Saaron; o Menino bebendo, na fuga para o Egito, à sombra das árvores que os anjos iam adiante semeado,—são fábulas... Mas são fábulas que há dois mil anos dão encanto, esperança, abrigo consolador, e energia para viver a um terço da Humanidade. Os lugares onde se passaram essas histórias, decerto muito simples e muito humanas, que depois, pela necessidade que a alma tem do Divino, se transformaram na tão linda mitologia cristã, são por isso veneráveis. Neles viveram, combateram, ensinaram, padeceram, desde Jacob até S. Paulo, todos os seres excepcionais que hoje povoam o Céu. Jeová só entre esses montes se mostrava, com terrífico esplendor, no tempo em que visitava os homens. Jesus desceu a esses vales pensativos, para renovar o Mundo. Sempre a Palestina foi a residência preferida da Divindade. Nada de Material devia, pois, desmanchar o seu recolhimento Espiritual. E é penoso que a fumaraça do Progresso suje um ar que conserva o perfume da passagem dos anjos, e que os seus trilhos de ferro revolvam o solo onde ainda não se apagaram as pegadas divinas.
Tu sorris, e acusas precisamente a velha Palestina de ser uma incorrigível fonte de ilusão. Mas a ilusão, Bertrand amigo, é tão útil como a certeza: e na formação de todo o espírito, para que ele seja completo, devem entrar tanto os Contos de Fadas, como os Problemas de Euclides. Destruir a influência religiosa e poética da Terra Santa, tanto nos corações simples como nas inteligências cultas, é um retrocesso na Civilização, na verdadeira, naquela de que tu não és obreiro, e que tem por melhor esforço aperfeiçoar a Alma do que reforçar o Corpo, e, mesmo pelo lado da utilidade, considera um Sentimento mais útil do que uma Máquina. Ora, locomotivas manobrando pela Judeia e Galileia, com a sua materialidade de carvão e ferro, o seu desenvolvimento inevitável de hotéis, ônibus, bilhares e bicos de gás, destroem irremediavelmente o poder emotivo da Terra dos Milagres, porque a modernizam, a industrializam, a banalizam...
Esse poder, essa influência espiritual da Palestina, de que provinha? De ela se ter conservado, através destes quatro mil anos, imutavelmente bíblica e evangélica... Decerto sobrevieram mudanças em Israel; a administração turca tem menos esplendor que a administração romana; dos vergéis e jardins que cercavam Jerusalém, só resta penhasco e urtiga; as cidades, esboroadas, perderam o seu heroísmo de cidadelas; o vinho é raro; todo o saber se apagou; e não duvido que aqui e além, em Sião, nalgum terraço de mercador levantino, se assobie ao luar a valsa de Madame Angot.
Mas a vida íntima, na sua forma rural, urbana ou nômada, as maneiras, os costumes, os cerimoniais, os trajes, os utensílios,—tudo permanece como nos tempos de Abraão e nos tempos de Jesus. Entrar na Palestina é penetrar numa Bíblia viva. As tendas de pele de cabra plantadas à sombra dos sicômoros; o pastor apoiado à sua alta lança, seguido do seu rebanho; as mulheres, veladas de amarelo ou branco, cantando, a caminho da fonte, com o seu cântaro no ombro; o montanhês atirando a funda às águias; os velhos sentados, pela frescura da tarde à porta das vilas muradas; os claros terraços cheios de pombas; o escriba que passa, com o seu tinteiro dependurado da cinta; as servas moendo o grão; o homem de longos cabelos nazarenos que nos saúda com a palavra de paz, e que conversa conosco por parábolas; a hospedeira que nos acolhe, atirando, para passarmos, um tapete ante o limiar da sua morada; e ainda as procissões nupciais, e as danças lentas ao rufo-rufo das pandeiretas, e as carpideiras em torno aos sepulcros caiados,—tudo transporta o peregrino à velha Judeia das Escrituras, e de um modo tão presente e real, que a cada momento duvidamos se aquela ligeira e morena mulher, com largas argolas de ouro e um aroma de sândalo, que conduz um cordeiro preso pela ponta do manto, não será ainda Raquel, ou se, entre os homens sentados além, à sombra da figueira e da vinha, aquele de curta barba frisada, que ergue o braço, não será Jesus ensinando.
Esta sensação, preciosa para o crente, é preciosa para o intelectual, porque o põe numa comunhão flagrante, com um dos mais maravilhosos momentos da História Humana. Decerto seria igualmente interessante (mais interessante talvez), que se pudesse colher a mesma emoção na Grécia, e que aí encontrássemos ainda nos seus trajes, nas suas maneiras, na sua sociabilidade, a grande Atenas de Péricles. Infelizmente, essa Atenas incomparável jaz morta, para sempre soterrada, desfeita em pó, sob a Atenas romana, e a Atenas bizantina, e a Atenas bárbara, e a Atenas muçulmana, e a Atenas constitucional e sórdida. Por toda a parte o velho cenário da história está assim esfrangalhado e em ruínas. Os próprios montes perderam, ao que parece, a configuração clássica: e ninguém pode achar, no Lácio, o rio e o fresco vale que Virgílio habitou e tão virgilianamente cantou. Um único sítio na terra permanecia ainda com os aspectos, os costumes, com que o tinham visto, e de que tinham partilhado, os homens que deram ao mundo uma das suas mais altas transformações:—e esse sítio era um pedaço da Judeia, da Samária e da Galileia. Se ele for grosseiramente modernizado, nivelado ao protótipo social, querido do século, que é o distrito de Liverpul ou o departamento de Marselha, e se assim desaparecer para sempre a oportunidade educadora de ver uma grande imagem do Passado, que profanação, que devastação bruta e bárbara! E por perder essa forma sobrevivente das civilizações antigas, o tesouro do nosso saber e da nossa inspiração fica irreparavelmente diminuído.
Ninguém mais do que eu, decerto, aprecia e venera um caminho de ferro, meu Bertrand;—e ser-me-ia penoso ter de jornadear de Paris a Bordéus, como Jesus subia do vale de Jericó para Jerusalém, escarranchado num burro. As coisas mais úteis; porém, são importunas, e mesmo escandalosas, quando invadem grosseiramente lugares que lhes não são congêneres. Nada mais necessário na vida do que um restaurante: e todavia ninguém, por mais descrente ou irreverente, desejaria que se instalasse um restaurante com as suas mesas, o seu tinir de pratos, o seu cheiro a guisados,—nas naves de Notre-Dame ou na velha Sé de Coimbra. Um caminho de ferro é obra louvável entre Paris e Bordéus. Entre Jericó e Jerusalém basta a égua ligeira que se aluga por dois dracmas, e a tenda de lona que se planta à tarde entre os palmares, à beira de uma água clara, e onde se dorme tão santamente sob a paz radiante das estrelas da Síria.
E são justamente essa tenda, e o camelo grave que carrega os fardos, e a escolta flamejante de beduínos, e os pedaços de deserto onde se galopa com a alma cheia de liberdade, e o lírio de Salomão que se colhe nas fendas duma ruína sagrada, e as frescas paragens junto aos poços bíblicos, e as rememorações do Passado à noite em torno à fogueira do acampamento, que fazem o encanto da jornada, e atraem o homem de gosto que ama as emoções delicadas de Natureza, História e Arte. Quando de Jerusalém se partir para a Galileia num vagão estridente e cheio de pó, talvez ninguém empreenda a peregrinação magnífica— a não ser o destro commis-voyageur que vai vender pelos Bazares chitas de Manchéster ou panos vermelhos de Sedan. O teu negro comboio rolará vazio. Que pura alegria essa para todos os entendimentos cultos—que não sejam acionistas dos Caminhos de Ferro da Palestina!...
Mas sossega, Bertrand, engenheiro e acionista! Os homens, mesmo os que melhor servem o Ideal, nunca resistem às tentações sensualistas do Progresso. Se dum lado, à saída de Jafa, a própria caravana da Rainha de Sabá, com os seus elefantes e onagros, e estandartes, e liras e os arautos coroados de anêmonas, e todos os fardos abarrotados de pedrarias e bálsamos, infindável em poesia e lenda, se oferecesse ao homem do século XX para o conduzir lentamente a Jerusalém e a Salomão—e do outro lado um comboio, silvando, de portinholas abertas, lhe prometesse a mesma jornada, sem soalheiras nem solavancos, a vinte quilômetros por hora, com bilhete de ida e volta, esse homem, por mais intelectual, por mais eruditamente artista, agarraria a sua chapeleira e enfiaria sofregamente para o vagão, onde pudesse descalçar as botas, e dormitar de ventre estendido.
Por isso a tua obra maligna prosperará pela própria virtude da sua malignidade. E, dentro de poucos anos, o ocidental positivo que de manhã partir da velha Jepo, no seu vagão de 1.a classe, e comprar na estação de Gaza a Gazeta Liberal do Sinai, e jantar divertidamente em Ramleh no Grand-Hôtel dos Macabeus—irá, à noite, em Jerusalém, através da Via Dolorosa iluminada pela eletricidade, beber um bock e bater três carambolas no Casino do Santo Sepulcro!
Será este o teu feito—e o fim da lenda cristã.
Adeus, monstro!— FRADIQUE.
XII
A «MADAME» DE JOUARRE
Quinta de Refaldes (Minho).
Minha Querida Madrinha.—Estou vivendo pinguemente em terras eclesiásticas, porque esta quinta foi de frades. Agora pertence a um amigo meu, que é, como Virgílio, poeta e lavrador, e canta piedosamente as origens heroicas de Portugal, enquanto amanha os seus campos e engorda os seus gados. Rijo, viçoso, requeimado dos sóis, tem oito filhos, com que vai povoando estas celas monásticas forradas de cretones claros. E eu justamente voltei de Lisboa a estes milheirais do Norte para ser padrinho do derradeiro, um famoso senhor de três palmos, cor de tijolo, todo roscas e regueifas, com uma careca de melão, os olhinhos luzindo entre rugas como vidrilhos, e o ar profundamenfe céptico e velho. No sábado, dia de S. Bernardo, sob um azul que S. Bernardo tornara especialmente vistoso e macio, ao repicar dos sinos claros, entre aromas de roseira e jasmineiro, lá o conduzimos, todo enfeitado de laçarotes e rendas, à Pia, onde o Padre Teotônio inteiramente o lavou da fétida crosta de Pecado Origi nal, que desde a bolinha dos calcanhares até à moleirinha o cobria todo, pobre senhor de três palmos que ainda não vivera da alma, e já perdera a alma... E desde então, como se Refaldes fosse a ilha dos Latofágios, e eu tivesse comido em vez da couve-flor da horta a flor do Loto, por aqui me quedei, olvidado do mundo e de mim, na doçura destes ares, destes prados, de toda esta rural serenidade, que me afaga e me adormece.
O casarão conventual que habitamos, e onde os cônegos Regrantes de Santo Agostinho, os ricos e nédios Crúzios, vinham preguiçar no Verão, prende por um claustro florido de hidrângeas a uma igreja lisa e sem arte, com um adro sombreado por castanheiros, pensativo, grave, como são sempre os do Minho. Uma cruz de pedra encima o portão, onde pende ainda da corrente de ferro a vetusta e lenta sineta fradesca. No meio do pátio, a fonte de boa água, que canta adormecidamente caindo de concha em concha, tem no topo outra cruz de pedra, que um musgo amarelento reveste de melancolia secular. Mais longe, num vasto tanque, lago caseiro orlado de bancos, onde decerto os bons Crúzios se vinham embeber pelas tardes de frescura e repouso, a água das regas, límpida e farta, brota dos pés de uma santa de pedra, hirta no seu nicho, e que é talvez Santa Rita. Adiante ainda, na horta, outra santa franzina, sustentando nas mãos um vaso partido, preside, como uma náiade, ao borbulhar de outra fonte, que por quelhas de granito vai luzindo e fugindo através do feijoal. Nos esteios de pedra que sustentam a vinha há por vezes uma cruz gravada, ou um coração sagrado, ou o monograma de Jesus Toda a quinta, assim santificada por signos devotos, lembra uma sacristia onde os tectos fossem de parra, a relva cobrisse os soalhos, por cada fenda borbulhasse um regato, e o incenso saísse dos cravos.
Mas, com todos estes emblemas sacros, nada há que nos mova, ou severamente nos arraste, aos renunciamentos do mundo. A quinta foi sempre, como agora, de grossa fartura, toda em campos de pão, bem arada e bem regada, fecunda, estendida ao sol como um ventre de Ninfa antiga. Os frades excelentes que nela habitaram amavam largamente a terra e a vida. Eram fidalgos que tomavam serviço na milícia do Senhor, como os seus irmãos mais velhos tomavam serviço na milícia de El-Rei—e que, como eles, gozavam risonhamente os vagares, os privilégios e a riqueza da sua Ordem e da sua Casta. Vinham para Refaldes, pelas calmas de Julho, em seges e com lacaios. A cozinha era mais visitada que a igreja —e todos os dias os capões alouravam no espeto. Uma poeira discreta velava a livraria, onde apenas por vezes algum cônego reumatizante e retido nas almofadas da sua cela mandava buscar o D. Quixote, ou as Farsas de D. Petronilla. Espanejada, arejada, bem catalogada, com rótulos e notas traçadas pela mão erudita dos Abades—só a adega...
Não se procure, pois, nesta morada de monges, o precioso sabor das tristezas monásticas; nem as quebradas de serra e vale, cheias de ermo e mudez, tão doces para nelas se curtirem deliciosamente as saudades do Céu; nem as espessuras de bosque, onde S. Bernardo se embrenhava, por nelas encontrar, melhor que na sua cela, a «fecunda solidão»; nem os claros de pinheiral gemente, com rochas nuas, tão próprias para a choça e para a cruz do eremita... Não! Aqui, em torno do pátio (onde a água da fonte todavia corre dos pés da cruz), são sólidas tulhas para o grão, fofos eidos em que o gado medra, capoeiras abarrotadas de capões e de perus reverendos. Adiante é a horta viçosa, cheirosa, suculenta, bastante a fartar as panelas todas de uma aldeia, mais enfeitada que um jardim, com ruas que as tiras de morangal orlam e perfumam, e as latadas ensombram, copadas de parra densa. Depois a eira de granito, limpa e alisada, rijamente construída para longos séculos de colheitas, com o seu espigueiro ao lado, bem fendilhado, bem arejado, tão largo que os pardais voam dentro como num pedaço de céu. E por fim, ondulando ricamente até às colinas macias, os campos de milho e de centeio, o vinhedo baixo, os olivais, os relvados, o linho sobre os regatos, o mato florido para os gados... S. Francisco de Assis e S. Bruno abominariam este retiro de frades e fugiriam dele, escandalizados, como de um pecado vivo.
A casa dentro oferece o mesmo bom conchego temporal. As celas espaçosas, de tectos apainelados, abrem para as terras semeadas, e recebem delas, através da vidraçaria cheia de sol, a perene sensação de fartura, de opulência rural, de bens terrenos que não enganam. E a sala melhor, traçada para as ocupações mais gratas, é o refeitório, com as suas varandas rasgadas, onde os regalados monges pudessem, ao fim do jantar, conforme a venerável tradição dos Crúzios, beber o seu café aos goles, galhofando, arrotando, respirando a fresquidão, ou seguindo nas faias do pátio o cantar alto de um melro.
De sorte que não houve necessidade de alterar esta vivenda, quando de religiosa passou a secular. Estava já sabiamente preparada para a profanidade;—e a vida que nela então se começou a viver, não foi diferente da do velho convento, apenas mais bela, porque, livre das contradições do Espiritual e do Temporal, a sua harmonia se tornou perfeita. E, tal como é, desliza com incomparável doçura. De madrugada os galos cantam, a quinta acorda, os cães de fila são acorrentados, a moça vai mungir as vacas, o pegureiro atira o seu cajado ao ombro, a fila dos jornaleiros mete-se às terras—e o trabalho principia, esse trabalho que em Portugal parece a mais segura das alegrias e a festa sempre incansável, porque é todo feito a cantar As vozes vêm, altas e desgarradas, no fino silêncio, de além, dentre os trigos, ou do campo em sacha, onde alvejam as camisas de linho cru, e os lenços de longas franjas vermelhejam mais que papoulas. E não há neste labor nem dureza nem arranque. Todo ele é feito com a mansidão com que o pão amadurece ao sol. O arado mais acaricia do que rasga a gleba. O centeio cai por si, amorosamente, no seio atraente da foice. A água sabe onde o terrão tem sede, e corre para lá gralhando e refulgindo. Ceres nestes sítios benditos permanece verdadeiramente, como no Lácio, a Deusa da Terra, que tudo propicia e socorre Ela reforça o braço do lavrador, torna refrescante o seu suor, e da alma lhe limpa todo o cuidado escuro. Por isso os que a servem, mantêm uma serenidade risonha na tarefa mais dura. Essa era a ditosa feição da vida antiga.
À uma hora é o jantar, sério e pingue. A quinta tudo fornece prodigamente:—e o vinho, o azeite, a hortaliça, a fruta tem um sabor mais vivo e são, assim caídos das mãos do bom Deus sobre a mesa, sem passar pela mercancia e pela loja. Em palácio algum, por essa Europa superfina, se come na verdade tão deliciosamente, como nestas rústicas quintas de Portugal . Na cozinha enfumarada , com duas panelas de barro e quatro achas a arder no chão, estas caseiras de aldeia, de mangas arregaçadas, guisam um banquete que faria exultar o velho Júpiter, esse transcendente guloso, educado a néctar, o Deus que mais comeu, e mais nobremente soube comer, desde que há Deuses no Céu e na Terra. Quem nunca provou este arroz de caçoula, este anho pascal candidamente assado no espeto, estas cabidelas de frango coevas da Monarquia, que enchem a alma, não pode realmente conhecer o que seja a especial bem-aventurança, tão grosseira e tão divina, que no tempo dos frades se chamava a comezaina. E a quinta depois, com as suas latadas de sombra macia, a dormente sussurração das águas regantes, os ouros claros e foscos ondulando nos trigais, oferece, mais que nenhum outro paraíso humano ou bíblico, o repouso acertado para quem emerge, pesado e risonho, deste arroz e deste anho!
Se estes meios-dias são um pouco materiais, breve a tarde trará a porção de poesia de que necessita o Espírito. Em todo o Céu se apagou a refulgência de ouro, o esplendor arrogante que se não deixa fitar e quase repele; agora apaziguado e tratável, ele derrama uma doçura, uma pacificação que penetra na alma, a torna também pacífica e doce, e cria esse momento raro em que Céu e alma fraternizam e se entendem. Os arvoredos repousam numa imobilidade de contemplação, que é inteligente. No piar velado e curto dos pássaros, há um recolhimento e consciência de ninho feliz. Em fila, a boiada volta dos pastos, cansada e farta, e vai ainda beberar ao tanque onde o gotejar da água sob a cruz é mais preguiçoso. Toca o sino a Ave-Marias. Em todos os casais se está murmurando o nome de Nosso Senhor. Um carro retardado, pesado de mato, geme pela sombra da azinhaga. E tudo é tão calmo e simples e terno, minha madrinha, que, em qualquer banco de pedra em que me sente, fico enlevado, sentindo a penetrante bondade das coistas, e tão em harmonia com ela, que não há nesta alma, toda incrustada das lamas do mundo, pensamento que não pudesse contar a um santo
Verdadeiramente estas tardes santificam. O mundo recua para muito longe, para além dos pinhais e das colinas, como uma miséria esquecida:—e estamos então realmente na felicidade de um convento, sem regras e sem abade, feito só da religiosidade natural que nos envolve, tão própria à oração que não tem palavras, e que é por isso a mais bem compreendida por Deus.
Depois escurece, já há pirilampos nas sebes. Vênus, pequenina, cintila no alto. A sala, em cima, está cheia de livros, dos livros fechados no tempo dos Crúzios—porque só desde que não pertence a uma ordem espiritual, é que esta casa se espiritualizou . E o dia na quinta finda com uma lenta e quieta palestra sobre ideias e letras, enquanto na guitarra ao lado geme algum dos fados de Portugal, longo em saudades e em ais, e a Lua, ao fundo da varanda, uma Lua vermelha e cheia, surde, como a escutar, por detrás dos negros montes.
Deus nobis haec otia fecit in umbra Lusitaniae pulcherrimae... Mau latim—grata verdade
Seu grato e mau afilhado.— FRADIQUE.
XIII
A CLARA...
(Trad.).
Paris, Novembro.
Meu Amor.—Ainda há poucos instantes (dez instantes, dez minutos, que tanto gastei num fiacre desolador desde a nossa Torre de Marfim), eu sentia o rumor do teu coração junto do meu, sem que nada os separasse senão uma pouca de argila mortal, em ti tão bela, em mim tão rude—e já estou tentando recontinuar ansiosamente, por meio deste papel inerte, esse inefável estar contigo que é hoje todo o fim da minha vida, a minha suprema e única vida. É que, longe da tua presença, cesso de viver, as coisas para mim cessam de ser — e fico como um morto jazendo no meio de um mundo morto. Apenas, pois, me finda esse perfeito e curto momento de vida que me dás, só com pousar junto de mim e murmurar o meu nome — recomeço a aspirar desesperadamente para ti, como para uma ressurreição!
Antes de te amar, antes de receber das mãos de meu Deus a minha Eva—que era eu, na verdade? Uma sombra flutuando entre sombras. Mas tu vieste, doce adorada, para me fazer sentir a minha realidade, e me permitir que eu bradasse também triunfalmente o meu—«amo, logo existo!» E não foi só a minha realidade que me desvendaste—mas ainda a realidade de todo este Universo, que me envolvia como um ininteligível e cinzento montão de aparências. Quando há dias, no terraço de Savran, ao anoitecer, te queixavas que eu contemplasse as estrelas estando tão perto dos teus olhos, e espreitasse o adormecer das colinas junto ao calor dos teus ombros—não sabias, nem eu te soube então explicar, que essa contemplação era ainda um modo novo de te adorar, porque realmente estava admirando, nas coisas, a beleza inesperada que tu sobre elas derramas, por uma emanação que te é própria, e que, antes de viver a teu lado, nunca eu lhes percebera, como se não percebe a vermelhidão das rosas ou o verde tenro das relvas, antes de nascer o Sol! Foste tu, minha bem-amada, que me alumiaste o mundo. No teu amor recebi a minha Iniciação. Agora entendo, agora sei. E, como o antigo Iniciado, posso afirmar:—«Também fui a Elêusis; pela larga estrada pendurei muita flor que não era verdadeira, diante de muito altar que não era divino; mas a Elêusis cheguei, em Elêusis penetrei —e vi e senti a verdade! ...»
E acresce ainda, para meu martírio e glória, que tu és tão sumptuosamente bela e tão etereamente bela, duma beleza feita de Céu e de Terra, beleza completa e só tua, que eu já concebera—que nunca julgara realizável. Quantas vezes, ante aquela sempre admirada e toda perfeita Vênus de Milo, pensei que, se debaixo da sua testa de Deusa, pudessem tumultuar os cuidados humanos; se os seus olhos soberanos e mudos se soubessem toldar de lágrimas; se os seus lábios, só talhados para o mel e para os beijos, consentissem em tremer no murmúrio de uma prece submissa; se, sob esses seios, que foram o apetite sublime dos Deuses e dos Heróis, um dia palpitasse o Amor e com ele a Bondade; se o seu mármore sofresse, e pelo sofrimento se espiritualizasse, juntando ao esplendor da Harmonia a graça da Fragilidade; se ela fosse do nosso tempo e sentisse os nossos males, e permanecendo Deusa do Prazer se tornasse Senhora da Dor—então não estaria colocada num museu, mas consagrada num santuário, porque os homens, ao reconhecer nela a aliança sempre almejada e ,sempre frustrada do Real e do Ideal, decerto a teriam aclamado in aeternum, como a definitiva Divindade. Mas quê! A pobre Vênus só oferecia a serena magnificência da carne. De todo lhe faltava a chama que arde na alma e a consome. E a criatura incomparável do meu cismar, a Vênus Espiritual, Citereia e Dolorosa, não existia, nunca existiria!... E quando eu assim pensava, eis que tu surges, e eu te compreendo! Eras a encarnação do meu sonho, ou antes dum sonho que deve ser universal—mas só eu te descobri, ou, tão feliz fui, que só por mim quiseste ser descoberta!
Vê, pois, se jamais te deixarei escapar dos meus braços! Por isso mesmo que és a minha Divindade,—para sempre e irremediavelmente estás presa dentro da minha adoração. Os sacerdotes de Cartago acorrentavam às lajes dos Templos, com cadeias de bronze as imagens dos seus Baals. Assim te quero também, acorrentada dentro do templo avaro que te construí, só Divindade minha, sempre no teu altar,—e eu sempre diante dele rojado, recebendo constantemente na alma a tua visitação, abismando-me sem cessar na tua essência, de modo que nem por um momento se descontinue essa fusão inefável, que é para ti um ato de Misericórdia e para mim de Salvação. O que eu desejaria na verdade é que fosses invisível para todos e como não existente—que perpetuamente um estofo informe escondesse o teu corpo, uma rígida mudez ocultasse a tua inteligência. Assim passarias no mundo como uma aparência incompreendida. E só para mim, de dentro do invólucro escuro, se revelaria a tua perfeição rutilante. Vê quanto te amo—que te queria entrouxada num rude, vago vestido de merino, com um ar quedo, inanimado... Perderia assim o triunfal contentamento de ver resplandecer, entre a multidão maravilhada, aquela que em segredo nos ama. Todos murmurariam compassivamente—«Pobre criatura!» E só eu saberia da «pobre criatura», o corpo e a alma adoráveis! Quanto adoráveis! Nem compreendo que, tendo consciência do teu encanto, não estejas de ti namorada como aquele Narciso que treme de frio, coberto de musgo, à beira da fonte, em Savran. Mas eu largamente te amo, e por mim e por ti! A tua beleza, na verdade, atinge a altura de uma virtude:—e foram decerto os modos tão puros da tua alma, que fixaram as linhas tão formosas do teu corpo. Por isso há em mim um incessante desespero de não te saber amar condignamente— ou antes (pois desceste de um céu superior) de não saber tratar, como ela merece, a hóspeda divina do meu coração. Desejaria, por vezes, envolver-te toda numa felicidade imaterial, seráfica, calma infinitamente como deve ser a Bem-aventurança—e assim deslizarmos enlaçados através do silêncio e da luz, muito brandamente , num sonho cheio de certeza, saindo da vida à mesma hora e indo continuar no Além o mesmo sonho extático. E outras vezes desejaria arrebatar-te numa felicidade veemente, tumultuosa, fulgurante, toda de chama, de tal sorte que nela nos destruíssemos sublimemente, e de nós só restasse uma pouca de cinza sem memória e sem nome! Possuo uma velha gravura que é um Satanás ainda em toda a refulgência da beleza arcangélica, arrastando nos braços para o Abismo uma freira, uma Santa, cujos derradeiros véus de penitência se vão esgaçando pelas pontas das rochas negras. E na face da Santa, através do horror, brilha, irreprimida e mais forte que o horror, uma tal alegria e paixão, tão intensas—que eu as apeteceria para ti, oh minha Santa roubada! Mas de nenhum destes modos te sei amar, tão fraco ou inábil é o meu coração, de modo que por o meu amor não ser perfeito, tenho de me contentar que seja eterno. Tu sorris tristemente desta eternidade. Ainda ontem me perguntavas:—«No calendário do seu coração, quantos dias dura a eternidade?» Mas considera que eu era um morto—e que tu me ressuscitaste. O sangue novo que me circula nas veias, o espírito novo que em mim sente e compreende, são o meu amor por ti—e se ele me fugisse, eu teria outra vez, regelado e mudo, de reentrar no meu sepulcro. Só posso deixar de te amar—quando deixar de ser. E a vida contigo, e por ti, é tão inexprimivelmente bela! E a vida de um Deus. Melhor talvez:—e se eu fosse esse pagão que tu afirmas que sou, mas um pagão do Lácio, pastor de gados, crente ainda em Júpiter e Apolo, a cada instante temeria que um desses Deuses invejosos te raptasse, te elevasse ao Olimpo para completar a sua ventura divina. Assim não receio;—toda minha te sei e para todo o sempre, olho o mundo em torno de nós como um paraíso para nós criado, e durmo seguro sobre o teu peito na plenitude da glória, oh minha três vezes bendita, Rainha da minha graça.
Não penses que estou compondo cânticos em teu louvor. É em plena simplicidade que deixo escapar o que me está borbulhando na alma... Ao contrário! Toda a Poesia de todas as idades, na sua gracilidade ou na sua majestade, seria impotente para exprimir o meu êxtase. Balbucio, como posso, a minha infinita oração. E nesta desoladora insuficiência do Verbo humano, é como o mais inculto e o mais iletrado que ajoelho ante ti, e levanto as mãos, e te asseguro a única verdade, melhor que todas as verdades—que te amo, e te amo, e te amo, e te amo!...—FRADIQUE.
XIV
A «MADAME » DE JOUARRE
(Trad.).
Lisboa, Junho.
Minha Querida Madrinha.—Naquela casa de hóspedes da Travessa da Palha, onde vive, atrelado à lavra angustiosa da Verdade, meu primo o Metafísico, conheci, logo depois de voltar de Refaldes, um padre, o Padre Salgueiro, que talvez a minha madrinha, com essa sua maliciosa paciência de colecionar Tipos, ache interessante e psicologicamente divertido.
O meu distraído e pálido Metafísico afirma, encolhendo os ombros, que Padre Salgueiro não se destaca por nenhuma saliência de Corpo ou Alma entre os vagos padres da sua Diocese;—e que resume mesmo, com uma fidelidade de índice, o pen sar, e o sentir, e o viver, e o parecer da classe eclesiástica em Portugal. Com efeito, por fora, na casca, Padre Salgueiro é o costumado e corrente padre português, gerado na gleba, desbravado e afinado depois pelo Seminário, pela frequentação das autoridades e das Secretarias, por ligações de confissão e missa com fidalgas que têm capela, e sobretudo por longas residências em Lisboa, nestas casas de hóspedes da Baixa, infestadas de literatura e política. O peito bem arcado, de fôlego fundo, como um fole de forja; as mãos ainda escuras, ásperas, apesar do longo contacto com a alvura e doçura das hóstias; o carão cor de couro curtido, com um sobretom azul nos queixos escanhoados; a coroa lívida entre o cabelo mais negro e grosso que pêlos de crina; os dentes escaroladamente brancos—tudo nele pertence a essa forte plebe agrícola de onde saiu, e que ainda hoje em Portugal fornece à Igreja todo o seu pessoal, pelo desejo de se aliar e de se apoiar à única grande instituição humana que, realmente, compreende e de que não desconfia. Por dentro, porém, como miolo, Padre Salgueiro apresenta toda uma estrutura moral deliciosamente pitoresca e nova para quem, como eu, do Clero Lusitano só entrevira exterioridades, uma batina desaparecendo pela porta duma sacristia, um velho lenço de rapé posto na borda dum confessionário, uma sobrepeliz alvejando numa tipoia atrás dum morto...
O que em Padre Salgueiro me encantou logo, na noite em que tanto palestramos, rondando pachorrentamente o Rossio, foi a sua maneira de conceber o Sacerdócio. Para ele o Sacerdócio (que de resto ama e acata como um dos mais úteis fundamentos da sociedade), não constitui de modo algum essa função espiritual—mas unicamente e terminantemente uma função civil. Nunca, desde que foi colado à sua paróquia, Padre Salgueiro se considerou senão como um funcionário do Estado, um Empregado Público, que usa um uniforme, a batina (como os guardas da Alfândega usam a fardeta), e que, em lugar de entrar todas as manhãs numa repartição do Terreiro do Paço para escrevinhar ou arquivar ofícios, vai, mesmo nos dias santificados, a uma outra repartição, onde, em vez da carteira se ergue um altar, celebrar missas e administrar sacramentos. As suas relações portanto não são, nunca foram, com o Céu (do céu só lhe importa saber se está chuvoso ou claro)—mas com a Secretaria da Justiça e dos Negócios Eclesiásticos. Foi ela que o colocou na sua Paróquia, não para continuar a obra do Senhor, guiando docemente os homens pela estrada limpa da Salvação (missões de que não curam as secretarias do Estado), mas, como funcionário, para executar certos atos públicos que a lei determina a bem da ordem social—batizar, confessar, casar, enterrar os paroquianos.
Os sacramentos são, pois, para este excelente Padre Salgueiro, meras cerimônias civis, indispensáveis para a regularização do estado civil,—e nunca, desde que os administra, pensou na sua natureza divina, na Graça que comunicam às almas, e na força com que ligam a vida transitória a um princípio Imanente. Decerto, outrora, no seminário, Padre Salgueiro decorou em compêndios ensebados a sua Teologia Dogmática, a sua Teologia Pastoral, a sua Moral, o seu S. Tomás, o seu Liguori—mas meramente para cumprir as disciplinas oficiais do curso, ser ordenado pelo seu bispo, depois provido numa paróquia pelo seu ministro, como todos os outros bacharéis que em Coimbra decoram as Sebentas de Direito natural e de Direito romano, para «fazerem o curso», receber na cabeça a borla de doutor, e depois o aconchego de um emprego fácil. Só o grau vale e importa, porque justifica o despacho. A ciência é a formalidade penosa que lá conduz—verdadeira provação, que, depois de atravessada, não deixa ao espírito desejos de regressar à sua disciplina, à sua aridez, à sua canseira. Padre Salgueiro, hoje, já esqueceu regaladamente a significação teológica e espiritual do casamento:—mas casa, e casa com perícia, com bom rigor litúrgico, com boa fiscalização civil, esmiuçando escrupulosamente as certidões, pondo na bênção toda a unção prescrita, perfeito em unir as mãos com a estola, cabal na ejaculação dos latins, porque é subsidiado pelo Estado para casar bem os cidadãos, e, funcionário zeloso, não quer cumprir com defeitos funções que lhe são pagas sem atraso.
A sua ignorância é deliciosa. Além de raros atos da vida ativa de Jesus, a fuga para o Egito no burrinho, os pães multiplicados nas bodas de Canaã, o azorrague caindo sobre os vendilhões do Templo, certas expulsões de Demônios, nada sabe do Evangelho— que considera todavia muito bonito. À doutrina de Jesus é tão alheio como à Filosofia de Hegel. Da Bíblia também só conhece episódios soltos, que aprendeu certamente em oleografias—a Arca de Noé, Sansão arrancando as portas de Gaza, Judite degolando Holofernes. O que também me diverte, nas noites amigas em que conversamos na Travessa da Palha, é o seu desconhecimento absolutamente cândido das origens, da história da Igreja. Padre Salgueiro imagina que o Cristianismo se fundou de repente, num dia (decerto um domingo), por milagre flagrante de Jesus Cristo:—e desde essa festiva hora tudo para ele se esbate numa trava incerta, onde vagamente reluzem nimbos de santos e tiaras de papas, até Pio IX. Não admira, porém, na obra pontifical de Pio IX, nem a Infalibilidade, nem o Syllabus:—porque se preza de liberal, deseja mais progresso, bem-diz os benefícios da instrução, assina O Primeiro de Janeiro.
Onde eu também o acho superiormente pitoresco, é cavaqueando acerca dos deveres que lhe incumbem como pastor de almas—os deveres para com as almas. Que ele, por continuação de uma obra divina, esteja obrigado a consolar dores, pacificar inimizades, dirigir arrependimentos, ensinar a cultura da bondade, adoçar a dureza dos egoísmos, é para o benemérito Padre Salgueiro a mais estranha e incoerente das novidades! Não que desconheça a beleza moral dessa missão, que considera mesmo cheia de poesia. Mas não admite que, formosa e honrosa como é, lhe pertença a ele Padre Salgueiro! outro tanto seria exigir de um verificador da alfândega que moralizasse e purificasse o comércio. Esse santo empreendimento pertence aos Santos. E os Santos, na opinião de Padre Salgueiro, formam uma Casta, uma Aristocracia espiritual, com obrigações sobrenaturais que lhes são delegadas e pagas pelo Céu. Muito diferentes se apresentam as obrigações de um pároco! Funcionário eclesiástico, ele só tem a cumprir funções rituais em nome da Igreja, e portanto do Estado que a subsidia. Há aí uma criança para batizar? Padre Salgueiro toma a estola e batiza. Há aí um cadáver para enterrar? Padre Salgueiro toma o hissope e enterra. No fim do mês recebe os seus dez mil-réis (além da esmola) —e o seu bispo reconhece o seu zelo.
A ideia que Padre Salgueiro tem da sua missão determina, com louvável lógica, a sua conduta. Levanta-se às dez horas, hora classicamente adotada pelos empregados do Estado. Nunca abre o breviário—a não ser em presença dos seus superiores eclesiásticos, e então por deferência jerárquica, como um tenente, que, em face ao seu general, se perfila, pousa a mão na espada. Enquanto a orações, meditações, mortificações, exames de alma, todos esses pacientes métodos de aperfeiçoamento e santificação própria, nem sequer suspeita que lhe sejam necessários ou favoráveis. Para quê? Padre Salgueiro constantemente tem presente que, sendo um funcionário, deve manter, sem transigências, nem omissões, o decoro que tornará as suas funções respeitadas do mundo. Veste, por isso, sempre de preto. Não fuma. Todos os dias de jejum come um peixe austero. Nunca transpôs as portas impuras de um botequim. Durante o Inverno só uma noite vai a um teatro, a S. Carlos, quando se canta o Poliúto uma ópera sacra, de puríssima lição. Deceparia a língua, com furor, se dela lhe pingasse uma falsidade. E é casto. Não condena e repele a mulher com cólera, como os Santos Padres:—até a venera, se ela é econômica e virtuosa. Mas o regulamento da Igreja proíbe a mulher: ele é um funcionário eclesiástico, e a mulher portanto não entra nas suas funções. É rigidamente casto. Não conheço maior respeitabilidade do que a de Padre Salgueiro.
As suas ocupações, segundo observei, consistem muito logicamente, como empregado (além das horas dadas aos deveres litúrgicos), em procurar melhoria de emprego. Pertence por isso a um partido político:—e em Lisboa, três noites por semana, toma chá em casa do seu chefe, levando rebuçados às senhoras. Maneja habilmente eleições. Faz serviços e recados, complexos e indescritos, a todos os diretores gerais da Secretaria dos Negócios Eclesiásticos. Com o seu bispo é incansável:—e ainda há meses o encontrei, suado e aflito, por causa de duas incumbências de S. Ex.a, uma relativa a queijadas de Sintra, outra a uma coleção do Diário do Governo. Não falei da sua inteligência! É prática e metódica—como verifiquei, assistindo a um sermão que ele pregou pela festa de S. Venâncio. Por esse sermão, encomendado, recebia Padre Salgueiro 20$000 réis—e deu, por esse preço, um sermão suculento, documentado, encerrando tudo o que convinha à glorificação de S. Venâncio. Estabeleceu a filiação do Santo; desenrolou todos os seus milagres (que são poucos) com exatidão, exarando as datas, citando as autoridades; narrou com rigor agiológico o seu martírio; enumerou as igrejas que lhe são consagradas, com as épocas da fundação. Enxertou destramente louvores ao Ministro dos Negócios Eclesiásticos. Não esqueceu a Família Real, a quem rendeu preito constitucional. Foi, em suma, um excelente relatório sobre S. Venâncio.
Felicitei nessa noite, com fervor, o reverendo Padre Salgueiro. Ele murmurou, modesto e simples:
—S. Venâncio infelizmente não se presta. Não foi bispo, nunca exerceu cargo público!. . . Em todo o caso, creio que cumpri.
Ouço que vai ser nomeado cônego. Larguissimamente o merece. Jesus não possui melhor amanuense. E nunca realmente compreendi por que razão outro amigo meu, um frade do Varatojo, que, pelo êxtase da sua fé, a profusão da sua caridade, o seu devorador cuidado na pacificação das almas, me faz lembrar os velhos homens evangélicos, chama sempre a este sacerdote tão zeloso, tão pontual, tão proficiente, tão respeitável—«o horrendo Padre Salgueiro!» Ora veja, minha madrinha! Mais de trinta ou quarenta mil anos são necessários para que uma montanha se desfaça e se abata até ao tamanhinho dum outeiro, que um cabrito galga brincando. E menos de dois mil anos bastaram, para que o Cristianismo baixasse dos grandes padres das Sete Igrejas da Ásia, até ao divertido Padre Salgueiro, que não é de Sete Igrejas, nem mesmo duma, mas somente, e muito devotamente, da Secretaria dos Negócios Eclesiásticos. Este baque provaria a fragilidade do Divino—se não fosse que realmente o Divino abrange as religiões e as montanhas, a Ásia, o Padre Salgueiro, os cabritinhos folgando, tudo o que se desfaz e tudo o que se refaz, e até este seu afilhado, que é todavia humaníssimo.—FRADIQUE.
XV
A BENTO DE S.
Paris, Outubro.
MEU Caro Bento.—A tua ideia de fundar um jornal é daninha e execrável. Lançando, e em formato rico, com telegramas e crônicas, uma outra «dessas folhas impressas que aparecem todas as manhã s», como diz tão assustada e pudicamente o Arcebispo de Paris, tu vais concorrer para que no teu tempo e na tua terra se aligeirem mais os Juízos ligeiros, se exacerbe mais a Vaidade, e se endureça mais a Intolerância. Juízos ligeiros, Vaidade, Intolerância—eis três negros pecados sociais que, moralmente, matam uma Sociedade! E tu alegremente te preparas para os atiçar. Inconsciente como uma peste, espalhas sobre as almas a morte. Já decerto o Diabo está atirando mais brasa para debaixo da caldeira de pez, em que, depois do Julgamento, recozerás e ganirás, meu Bento e meu réprobo!
Não penses que, moralista amargo, exagero, como qualquer S. João Crisóstomo. Considera antes como foi incontestavelmente a Imprensa, que, com a sua maneira superficial, leviana e atabalhoada de tudo afirmar, de tudo julgar, mais enraizou no nosso tempo o funesto hábito dos juízos ligeiros Em todos os séculos decerto se improvisaram estouvadamente opiniões: o Grego era inconsiderado e garrulo; já Moisés, no longo Deserto, sofria com o murmurar variável dos Hebreus; mas nunca, como no nosso século apressado, essa improvisação impudente se tornou a operação natural do entendimento. Com excepção de alguns filósofos escravizados pelo Método, e de alguns devotos roídos pelo Escrúpulo, todos nós hoje nos desabituamos, ou antes nos desembaraçamos alegremente, do penoso trabalho de verificar. É com impressões fluídas que formamos as nossas maciças conclusões. Para julgar em Política o fato mais complexo, largamente nos contentamos com um boato, mal escutado a uma esquina, numa manhã de vento. Para apreciar em Literatura o livro mais profundo, atulhado de ideias novas, que o amor de extensos anos fortemente encadeou—apenas nos basta folhear aqui e além uma página, através do fumo escurecedor do charuto. Principalmente para condenar, a nossa ligeireza é fulminante. Com que soberana facilidade declaramos—«Este é uma besta! Aquele é um maroto!» Para proclamar—«É um gênio!» ou «É um santo!» oferecemos uma resistência mais considerada. Mas ainda assim, quando uma boa digestão ou a macia luz dum céu de Maio nos inclinam à benevolência, também concedemos bizarramente, e só com lançar um olhar distraído sobre o eleito, a coroa ou a auréola, e aí empurramos para a popularidade um maganão enfeitado de louros ou nimbado de raios. Assim passamos o nosso bendito dia a estampar rótulos definitivos no dorso dos homens e das coisas. Não há ação individual ou coletiva, personalidade ou obra humana, sobre que não estejamos prontos a promulgar rotundamente uma opinião bojuda E a opinião tem sempre, e apenas, por base aquele pequenino lado do fato, do homem, da obra, que perpassou num relance ante os nossos olhos escorregadios e fortuitos. Por um gesto julgamos um caráter: por um caráter avaliamos um povo. Um inglês, com quem outrora jornadeei pela Ásia, varão douto, colaborador de Revistas, sócio de Academias, considerava os Franceses todos, desde os senadores até aos varredores, como « porcos e ladrões...» Por quê, meu Bento? Porque em casa de seu sogro houvera um escudeiro, vagamente oriundo de Dijon, que não mudava de colarinho e surripiava os charutos. Este inglês ilustra magistralmente a formação escandalosa das nossas generalizações.
E quem nos tem enraizado estes hábitos de desoladora leviandade? O jornal—o jornal, que oferece cada manhã, desde a crônica até aos anúncios, uma massa espumante de juízos ligeiros, improvisados na véspera, à meia-noite, entre o silvar do gás e o fervilhar das chalaças, por excelentes rapazes que rompem pela Redação, agarram uma tira de papel, e, sem tirar mesmo o chapéu, decidem com dois rabiscos da pena sobre todas as coisas da Terra e do Céu. Que se trate duma revolução do Estado, da solidez dum Banco, duma Mágica, ou dum descarrilamento, o rabisco da pena, com um traço, esparrinha e julga. Nenhum estudo, nenhum documento, nenhuma certeza. Ainda, este domingo, meu Bento, um alto jornal de Paris, comentando a situação econômica e política de Portugal, afirmava, e com um aprumado saber, que «em Lisboa os filhos das mais ilustres famílias da aristocracia se empregam como carregadores da Alfândega, e ao fim de cada mês mandam receber as soldadas pelos seus lacaios!» Que dizes tu aos herdeiros das casas históricas de Portugal, carregando pipas de azeite no cais da Alfândega, e conservando criados de farda para lhes ir receber o salário? Estas pipas, estes fidalgos, estes lacaios dos carregadores, formam uma deliciosa e quimérica alfândega que é menos das Mil e Uma Noites, que das Mil e Uma Asneiras. Pois assim o ensinou um jornal considerável, rico , bem provido de Enciclopédias, de Mapas, de Estatísticas, de Telefones, de Telégrafos, com uma redação muito erudita, pinguemente remunerada, que conhece a Europa, pertence à Academia das Ciências Morais e Sociais, e legisla no Senado! E tu, Bento, no teu jornal, fornecido também de Enciclopédias e de Telefones, vais com pena sacudida lançar sobre a França e sobre a China, e sobre o desventuroso Universo que se torna assunto e propriedade tua, juízos tão sólidos e comprovados, como os que aquela bendita gazeta arquivou, definitivamente, acerca da nossa Alfândega e da nossa fidalguia...
Este é o primeiro pecado, bem negro. Considera agora outro, mais negro. Pelo jornal, e pela reportagem que será a sua função e a sua força, tu desenvolverás, no teu tempo e na tua terra, todos os males da Vaidade! A reportagem, bem sei, é uma útil abastecedora da História Decerto importou saber se era adunco ou chato o nariz de Cleópatra, pois que do feitio desse nariz dependeram, durante algum tempo, de Filipes a Actium, os destinos do Universo. E quantos mais detalhes a esfuracadora bisbilhotice dos repórteres revelar sobre o Sr. Renan, e os seus móveis, e a sua roupa branca, tantos mais elementos positivos possuirá o século XX para reconstruir com segurança a personalidade do autor das Origens do Cristianismo, e, através dela, compreender a obra. Mas, como a reportagem hoje se exerce, menos sobre os que influem nos negócios do Mundo, ou nas direções do pensamento , do que, como diz a Bíblia, sobre toda a «sorte e condições de gente vã», desde os jóqueis até aos assassinos, a sua indiscriminada publicidade concorre pouco para a documentação da história, e muito, prodigiosamente, escandalosamente, para a propagação das vaidades!
O jornal é com efeito o fole incansável que assopra a vaidade humana, lhe irrita e lhe espalha a chama. De todos os tempos é ela, a vaidade do homem! Já sobre ela gemeu o gemebundo Salomão, e por ela «se perdeu Alcibíades, talvez o maior dos Gregos. Incontestavelmente, porém, meu Bento, nunca a vaidade foi, como no nosso danado século XIX, O motor ofegante do pensamento e da conduta. Nestes estados de civilização, ruidosos e ocos, tudo deriva da vaidade, tudo tende à vaidade. E a forma nova da vaidade para o civilizado consiste em ter o seu rico nome impresso no jornal, a sua rica pessoa comentada no jornal! Vir no jornal! eis hoje a impaciente aspiração e a recompensa suprema! Nos regimes aristocráticos o esforço era obter, senão já o favor, ao menos o sorriso do Príncipe. Nas nossas democracias a ânsia da maioria dos mortais é alcançar em sete linhas o louvor do jornal. Para se conquistarem essas sete linhas benditas, os homens praticam todas as ações—mesmo as boas. Mesmo as boas, meu Bento! «O nosso generoso amigo Z...» só manda os cem mil-réis à Creche, para que a gazeta exalte os cem mil-réis de Z..., nosso amigo generoso. Nem é mesmo necessário que as sete linhas contenham muito mel e muito incenso: basta que ponham o nome em evidência, bem negro, nessa tinta cujo brilho é mais apetecido que o velho nimbo de ouro do tempo das Santidades. E não há classe que não ande devorada por esta fome mórbida do reclamo. Ela é tão roedora nos seres de exterioridade e de mundanidade, como naqueles que só pareciam amar na vida, como a sua forma melhor, a quietação e o silêncio... Entramos na quaresma (é entre as cinzas, e com cinzas, que te estou moralizando). Agora, nestas semanas de peixe, surdem os frades dominicanos, do fundo dos seus claustros, a pregar nos púlpitos de Paris. E por quê esses sermões sensacionais, de uma arte profana e teatral, com exibições de psicologia amorosa, com afetações de anarquismo evangélico, e tão criadores de escândalo que Paris corre mais gulosamente a Notre-Dame em tarde de Dominicano, do que à Comédia Francesa em noite de Coquelin? Porque os monges, filhos de S. Domingos, querem setenta linhas nos jornais do Boulevard, e toda a celebridade dos histriões. O jornal estende sobre o mundo as suas duas folhas, salpicadas de preto, como aquelas duas asas com que os iconografistas do século VX representavam a Luxúria ou a Gula: e o Mundo todo se arremessa para o jornal, se quer agachar sob as duas asas que o levem à gloriola, lhe espalhem o nome pelo ar sonoro. E é por essa gloriola que os homens se perdem, e as mulheres se aviltam, e os Políticos desmancham a ordem do Estado, e os Artistas rebolam na extravagância estética, e os Sábios alardeiam teorias mirabolantes, e de todos os cantos, em todos os gêneros, surge a horda ululante dos charlatães... (Como me vim tornando altiloquente e roncante!...) Mas e a verdade, meu Bento! Vê quantos preferem ser injuriados a serem ignorados! (Homenzinhos de letras, poetisas, dentistas, etc.). O próprio mal apetece sofregamente as sete linhas que o maldizem. Para aparecerem no jornal, há assassinos que assassinam. Até o velho instinto da conservação cede ao novo instinto da notoriedade- e existe tal maganão, que ante um funeral convertido em apoteose pela abundância das coroas, dos coches e dos prantos oratórios, lambe os beiços, pensativo, e deseja ser o morto.
Neste Verão, uma manhã, muito cedo, entrei numa taverna de Montmartre a comprar fósforos. Rente ao balcão de zinco, diante de dois copos de vinho branco, um meliante, que pelas ventas chatas, o bigode hirsuto e pendente, o barrete de pele de lontra, parecia (e era) um Huno, um sobrevivente das hordas de Alarico,—gritava triunfalmente para outro vadio imberbe e lívido, a quem arremessara um jornal:
—É verdade, em todas as letras, o meu nome todo! Na segunda coluna, logo em cima, onde diz: —Ontem um infame e ignóbil bandido... Sou eu! O nome todo!
E espalhou lentamente em redor um olhar que triunfava. Eis aí, como agora se diz tão alambicadamente, um «estado de alma»! Tu, Bento, vais criar destes estados.
Depois considera o derradeiro pecado, negríssimo. Tu fundas, com o teu novo jornal, uma nova escola de Intolerância. Em torno de ti, do teu partido, dos teus amigos, ergues um muro de pedra miúda e bem cimentada: dentro desse murozinho, onde plantas a tua bandeirola com o costumado lema de imparcialidade, desinteresse, etc., só haverá, segundo Bento e o seu jornal, inteligência, dignidade, saber, energia, civismo; para além desse muro, segundo o jornal de Bento, só haverá necessariamente sandice, vileza, inércia, egoísmo, traficância! É a disciplina de partido (e para te agradar, entendo partido, no seu sentido mais amplo, abrangendo a Literatura, a Filosofia, etc.) que te impõe fatalmente esta divertida separação das virtudes e dos vícios. Desde que penetras na batalha, nunca poderás admitir que a Razão ou a Justiça ou a Utilidade, se encontrem do lado daqueles contra quem descarregas, pela manhã, a tua metralha silvante de adjetivos e verbos— porque então a decência, se não já a consciência, te forçariam a saltar o muro e desertar para esses justos. Tens de sustentar que eles são maléficos, desarrazoados, velhacos, e vastamente merecem o chumbo com que os traspassas. Das solas dos pés até aos teus raros cabelos, meu Bento, desde logo te atolas na Intolerância! Toda a ideia que se eleve, para além do muro, a condenarás como funesta, sem exame, só porque apareceu dez braças adiante, do lado dos outros, que são os Réprobos, e não do lado dos teus, que são os Eleitos. Realizam esses outros uma obra? Bento não poupará prosa nem músculo para que ela pereça: e se por entre as pedras que lhe atira, casualmente entrevê nela certa beleza ou certa utilidade, mais furiosamente apressa a sua demolição, porque seria mortificante para os seus amigos que alguma coisa de útil ou de belo nascesse dos seus inimigos—e vivesse. Nos homens que vagam para além do teu muro, tu só verás pecadores; e quando entre eles reconhecesses S. Francisco de Assis distribuindo aos pobres os derradeiros ceitis da Porciúncula, taparias a face para que tanta santidade te não amolecesse, e gritarias mais sanhudamente:—«Lá anda aquele malandro a esbanjar com os vadios o dinheiro que roubou!»
Assim tu serás no teu jornal. E, em torno de ti, os que o compram e o adotam lentamente e moralmente se fazem à tua imagem. Todo o jornal destila intolerância, como um alambique destila álcool, e cada manhã a multidão se envenena aos goles com esse veneno capcioso. É pela ação do jornal que se azedam todos os velhos conflitos do mundo—e que as almas, desevangelizadas, se tornam mais rebeldes à indulgência. A sociabilidade incessantemente, amacia e arredonda as “divergências humanas, como um rio arredonda e alisa todos os seixos que nele rolam: e a humanidade, que uma longa cultura e a velhice tem tornado docemente sociável, tenderia a uma suprema pacificação—se cada manhã o jornal não avivasse os ódios de Princípios, de Classes de Raças, e, com os seus gritos, os acirrasse como se acirram mastins até que se enfureçam e mordam. O jornal exerce hoje todas as funções malignas do defunto Satanás, de quem herdou a ubiquidade; e é não só o Pai da Mentira, mas o Pai da Discórdia. É ele que por um lado inflama as exigências mais vorazes—e por outro fornece pedra e cal às resistências mais iníquas. Vê tu quando se alastra uma greve, ou quando entre duas nações bruscamente se chocam interesses, ou quando, na ordem espiritual, dois credos se confrontam em hostilidade: o instinto primeiro dos homens, que o abuso da Civilização material tem amolecido e desmarcializado, é murmurar paz! juízo! e estenderem as mãos uns para os outros, naquele gesto hereditário que funda os pactos. Mas surge logo o jornal, irritado como a Fúria antiga, que os separa, e lhes sopra na alma a intransigência, e os empurra à batalha, e enche o ar de tumulto e de pó.
O jornal matou na terra a paz. E não só atiça as questões já dormentes como borralhos de lareira, até que delas salte novamente uma chama furiosa—mas inventa dissensões novas, como esse anti-semitismo nascente, que repetirá, antes que o século finde, as anacrônicas e brutas perseguições medievais. Depois é o jornal...
Mas escuta! Onze horas! Onze horas ligeiras estão dançando, no meu velho relógio, o minuete de Gluck. Ora esta carta já vai, como a de Tibério, muito tremenda e verbosa, verbosa et tremenda epistola; e eu tenho pressa de a findar, para ir, ainda antes do almoço, ler os meus jornais, com delícia.—Teu FRADIQUE.
XVI
A CLARA...
(Trad.).
Paris, Outubro.
Minha Muito Amada Clara.—Toda em queixumes, quase rabugenta, e mentalmente trajada de luto, me apareceu hoje a tua carta com os primeiros frios de Outubro. E por quê, minha doce descontente? Porque, mais fero de coração que um Trastâmara ou um Bórgia, estive cinco dias (cinco curtos dias de Outono) sem te mandar uma linha, afirmando essa verdade tão patente e de ti conhecida como o disco do Sol—«que só em ti penso, e só em ti vivo! ...» Mas não sabes tu, oh superamada, que a tua lembrança me palpita na alma tão natural e perenemente como o sangue no coração? Que outro princípio governa e mantém a minha vida se não o teu amor? Realmente necessitas ainda, cada manhã, um certificado, em letra bem firme, de que a minha paixão está viva e viçosa e te envia os bons-dias? Para quê? Para sossego da tua incerteza? Meu Deus! Não será antes para regalo do teu orgulho? Sabes que és Deusa, e reclamas incessantemente o incenso e os cânticos do teu devoto. Mas Santa Clara, tua padroeira, era uma grande santa, de alta linhagem, de triunfal beleza, amiga de S. Francisco de Assis, confidente de Gregório IX, fundadora de mosteiros, suave fonte de piedade e milagres—e todavia só é festejada uma vez, cada ano, a 27de Agosto!
Sabes bem que estou gracejando, Santa Clara da minha fé! Não! não mandei essa linha supérflua, porque todos os males bruscamente se abateram ,sobre mim:—um defluxo burlesco, com melancolia, obtusidade e espirros; um confuso duelo, de que fui o enfastiado padrinho, e em que apenas um ramo seco de olaia sofreu, cortado por uma bala; e, enfim, um amigo que regressou da Abissínia, cruelmente Abissinizante, e a quem tive de escutar com resignado pasmo as caravanas, os perigos, os amores, as façanhas e os leões!. . . E aí está como a minha pobre Clara, solitária nas suas florestas, ficou sem essa folha, cheia das minhas letras, e tão inútil para a segurança do seu coração como as folhas que a cercam, já murchas decerto e dançando no vento.
Porque não sei como se comportam os teus bosques;—mas aqui as folhas do meu pobre jardim amarelaram e rolam na erva úmida. Para me consolar da verdura perdida, acendi o meu lume:—e toda a noite de ontem mergulhei na muito velha crônica dum Cronista medieval da minha terra, que se chama Fernão Lopes. Aí se conta dum rei que recebeu o débil nome de Formoso, e que, por causa dum grande amor, desdenhou princesas de Castela e de Aragão, dissipou tesouros, afrontou sedições, sofreu a desafeição dos povos, perdeu a vassalagem de castelos e terras, e quase estragou o reino! Eu já conhecia a crônica—mas só agora compreendo o rei. E grandemente o invejo, minha linda Clara! Quando se ama como ele (ou como eu), deve ser um contentamento esplêndido o ter princesas da cristandade, e tesouros, e um povo, e um reino forte para sacrificar a dois olhos, finos e lânguidos, sorrindo pelo que esperam e mais pelo que prometem... Na verdade só se deve amar quando se é rei—porque só então se pode comprovar a altura do sentimento, com a magnificência do sacrifício. Mas um mero vassalo como eu (sem hoste ou castelo), que possui ele de rico, ou de nobre, ou de belo para sacrificar? Tempo, fortuna, vida? Mesquinhos valores. É como ofertar na mão aberta um pouco de pó. E depois a bem-amada nem sequer fica na história. E por história—muito aprovo, minha estudiosa Clara, que andes lendo a do divino Buda. Dizes, desconsoladamente, que ele te parece apenas um Jesus muito complicado. Mas, meu amor, é necessário desentulhar esse pobre Buda da densa aluvião de Lendas e Maravilhas que sobre ele tem acarretado, durante séculos, a imaginação da Ásia. Tal como ela foi, desprendida da sua mitologia, e na sua nudez histórica,—nunca alma melhor visitou a terra, e nada iguala, como virtude heroica, a Noite do Renunciamento. Jesus foi um proletário, um mendigo sem vinha ou leira, sem amor nenhum terrestre, que errava pelos campos da Galileia, aconselhando aos homens a que abandonassem como ele os seus lares e bens, descessem à solidão e à mendicidade, para penetrarem um dia num Reino venturoso, abstrato, que está nos Céus. Nada sacrificava em si e instigava os outros ao sacrifício—chamando todas as grandezas ao nível da sua humildade. O Buda, pelo contrário, era um Príncipe, e como eles costumam ser na Ásia, de ilimitado poder, de ilimitada riqueza: casara por um imenso amor, e daí lhe viera um filho, em quem esse amor mais se sublimara:—e este príncipe, este esposo, este pai, um dia. por dedicação aos homens, deixa o seu palácio, o seu reino, a esposada do seu coração, o filhinho adormecido no berço de nácar, e, sob a rude estamenha de um mendicante, vai através do mundo esmolando e pregando a renúncia aos deleites, o aniquilamento de todo o desejo, o ilimitado amor pelos seres, o incessante aperfeiçoamento na caridade, o desdém forte do ascetismo que se tortura, a cultura perene da misericórdia que resgata, e a confiança na morte...
Incontestavelmente, a meu ver (tanto quanto estas excelsas coisas se podem discernir duma casa de Paris, no século XIX e com defluxo) a vida do Buda é mais meritória. E depois considera a diferença do ensino dos dois divinos Mestres. Um, Jesus, diz:—«Eu sou filho de Deus, e insto com cada um de vós, homens mortais, em que pratiqueis o bem durante os poucos anos que passais na Terra, para que eu depois, em prêmio, vos dê a cada um, individualmente, uma existência superior, infinita em anos e infinita em delícias, num palácio que está para além das nuvens e que é de meu Pai! » O Buda, esse, diz simplesmente: —«Eu sou um pobre frade mendicante, e peço-vos que sejais bons durante a vida, porque de vós, em recompensa, nascerão outros melhores, e desses outros ainda mais perfeitos, e assim, pela prática crescente da virtude em cada geração, se estabelecerá pouco a pouco na Terra a virtude universal!» A justiça do justo, portanto, segundo Jesus, só aproveita egoistamente ao justo. E a justiça do justo, segundo o Buda, aproveita ao ser que o substituir na existência, e depois ao outro que desse nascer, sempre durante a passagem na Terra, para lucro eterno da Terra. Jesus cria uma aristocracia de santos, que arrebata para o Céu onde ele é Rei, e que constituem a corte do Céu para deleite da sua divindade;—e não vem dela proveito direto para o Mundo, que continua a sofrer da sua porção de Mal, sempre indiminuída. O Buda, esse, cria, pela soma das virtudes individuais, santamente acumuladas, uma Humanidade que em cada ciclo nasce progressivamente melhor, que por fim se torna perfeita, e que se estende a toda a Terra donde o Mal desaparece, e onde o Buda é sempre, à beira do caminho rude, o mesmo frade mendicante. Eu, minha flor, sou pelo Buda. Em todo o caso, esses dois Mestres possuíram, para bem dos homens, a maior porção de Divindade que até hoje tem sido dado à alma humana conter. De resto, tudo isto é muito complicado; e tu sabiamente procederias em deixar o Buda no seu Budismo, e, uma vez que esses teus bosques são tão admiráveis, em te retemperar na sua força e nos seus aromas salutares. O Buda pertence à cidade e ao colégio de França: no campo a verdadeira Ciência deve cair das árvores, como nos tempos de Eva. Qualquer folha de olmo te ensina mais que todas as folhas dos livros. Sobretudo do que eu— que aqui estou pontificando, e fazendo pedantescamente, ante os teus lindos olhos, tão finos e meigos, um curso escandaloso de Religiões Comparadas.
Só me restam três polegadas de papel,—e ainda te não contei, oh doce exilada, as novas de Paris, Acta Urbis. (Bom, agora latim!) São raras, e pálidas. Chove: continuamos em República; Madame de Jouarre, que chegou da Rocha com menos cabelos brancos, mas mais cruel, convidou alguns desventurados (dos quais eu o maior) para escutarem três capítulos dum novo atentado do Barão de Fernay sobre a Grécia; os jornais publicam outro prefácio do Sr. Renan, todo cheio do Sr. Renan, e em que ele se mostra, como sempre, o enternecido e erudito vigário de Nossa Senhora da Razão; e temos, enfim, um casamento de paixão e luxo, o do nosso escultural Visconde de Fontlant com Mademoiselle Degrave, aquela nariguda, magrinha e de maus dentes, que herdou, milagrosamente, os dois milhões do cervejeiro e que tem tão lindamente engordado e ri com dentes tão lindos Eis tudo, minha adorada... E é tempo que te mande, em montão, nesta linha, as saudades, os desejos e as coisas ardentes e suaves e sem nome de que meu coração está cheio, sem que se esgote por mais que plenamente as arremesse aos teus pés adoráveis, que beijo com submissão e com fé.—FRADIQUE.