Correspondências Íntimas II
Bom Amigo F.
Vai causar-te uma impressão estranha esta minha carta. Cheira a vinho e a sepulcro. Perdoa, caro amigo. Tenho diante de mim algumas garrafas, e aí na sala o cadáver de minha Ercínia...
Tu vias aquela criança viva, inteligente, engraçada, a brincar-me nos joelhos, linda como uma nuvem de aurora, puxando-me as barbas e beijando-me as pálpebras, fitando os meus sorrisos com os grandes olhos ingênuos e negros, sempre acariciadora, sempre boazinha...
Era a lembrança da minha chorada Maria, e o meu consolo...
Pois agora a fatalidade, o diabo, não sei quem... assassina-me cruelmente esse derradeiro vestígio da minha breve felicidade!
Calcula, meu amigo, que desespero!...
E deixa-me beber!...
O vinho é um grande lenitivo. Afoga as dores no esquecimento. Pode-se ver um cancã no cemitério, olhando através de um campo. Com certeza não conheces esta verdade.
É que não precisas... És um homem feliz; mas eu não sou mais que um miserável escolhido pela má fortuna para seu joguete... Deixa-me beber!...
Olha, esta carta, escrevo-a no meu gabinete, trancado num isolamento absoluto; não vejo os fúnebres preparos que vão levar à lama o anjinho rosado que ainda ontem me chamava papai... Endoudeceria se o visse... Não quero ouvir os pêsames gaguejados pelos amigos de ocasião, que não têm remorso de representar hipocrisia ante uma criança morta e as dores de um pai! Escondo-me, recalco-me no fundo da minha mágoa e no escuro do meu quartinho esquecido. Deixe-se o cadáver aos coveiros!...
Estás vendo?... É para o que serve o vinho...
Beba-se, e já não nos faltarão as forças para trancar um filho num esquife. Beba-se, e pelas cinzas dos meus pais! como qualquer covarde terá coragem bastante para soltar uma gargalhada às portas do inferno ou às barbas de S. Pedro!
— O que dizes?... Não terias esta força, aposto: - Deixe-se aos coveiros o cadáver da filha!...
Bate-se ao ombro de um daqueles bandidos de camisolão azul e grita-se:
— Oh lá! diabo, despedaça-me aqui em mil fragmentos o coração, rasga-me em tiras a felicidade!...
Ai! caro F, isto vale bem mais que um suicídio... Deixa-me beber!...
E reflitamos. Um ébrio pode refletir... reflitamos.
Deus fez a desgraça e Noé fez o vinho. Os infelizes como eu conhecem terrivelmente quanto foi bem achada a invenção do patriarca. Também só assim o famoso velho conseguiria remir a sua memória do crime de haver construído a arca.
Não imagino como o grito da humanidade se levantaria formidável do meio do inferno, dos sofrimentos da vida, para maldizer o nome daquele que continuou-lhe a existência e a dor, se o construtor da arca não fosse o tanoeiro da primeira pipa...
Ah! meu amigo, tenho para mim que Deus bem sabia que, ao lado da embarcação que transportou aos nossos séculos o sangue adamita, flutuava um tonel. A arca seria talvez da salvação; o tonel era das consolações.
Nem se me diga o contrário.
Sem isso, o que seria a Providência divina... Para cegos, já bastam os homens...
Noé é benemérito pelo vinho.
O seu nome é abençoado na taverna, essa imundície sagrada, onde se vazam as dores e as garrafas. Aí vive Diógenes com a sua filosofia e a sua pipa; mas a pipa está cheia, e Diógenes parece um Cristo de doçura e suavidade.
Desgraçados, à taverna!
Talvez não me compreendas, meu feliz amigo; a desgraça não te bateu ainda familiarmente aos caixilhos. Espera um pouco...
A embriaguez é o esquecimento, e não há consolação que não seja um simples fato da memória. Afianço-te que o coração não tem parte no negócio.
O coração não se consola; a memória é que se esquece; e, quando quiseres esquecer, bebe!
O princípio não é novo.
Quem se vir um dia nas minhas condições, ensaie-o.
Dizem que os bêbados são desprezíveis... Isto é asneira e blasfêmia. Há duas espécies de bêbados: os bêbados por prazer e os bêbados por desesperação.
Uns são simplesmente tolos, os outros são dignos de respeito.
Confundir tolice e desespero com infâmia, não sei como se qualifique...
Mas isto se explica. Os senhores moralistas olham de cima para baixo. Este é o erro das filosofias. Ninguém define o fundo dos abismos.
Quereis saber o que é? Ide vê-lo.
Eis o que não querem fazer os filósofos de sorriso nos lábios e no coração.
Para vingança dos que sofrem, o Judeu errante do infortúnio tarde ou cedo toca com o bastão a todas as portas. Há muito valente que sonha fantasmas à meia-noite.
Deixa que eles falem, meu amigo. Peço-te apenas que não cuspas sobre o sono avinhado das esquinas.
É o caso de dizer-se: esse cuspo cairá sobre vós e vossos filhos.
Quando a sorte nos crava sete punhais no peito, vai-se estendendo a mão para a torneira do batoque. Impedir movimento instintivo é uma crueldade desarrazoada. as dores fez-se o calmante.
Eu entendo que o remédio é uma conseqüência do mal. São dous fatos correlativos e complementares. Mal e remédio, isto é que é a vida. Lutar não é outra cousa senão remediar.
Toda a atividade humana cifra-se nisso. O mal e o remédio existem necessariamente, subordinados um ao outro, impossíveis de haver independentes. Estão ligados como a ação à reação. Combatem-se. Mas combater-se é uma palavra contraditória: é chamar e repelir, é a união na desunião.
A força centrífuga e a centrípeta combatem-se, e ambas se fundem no equilíbrio. Assim a vida.
O mal e o remédio arcando um com o outro, imóveis na igualdade do esforço, a peleja eterna: a confusão épica sublime oferecida em espetáculo aos deuses dos homéridas.
Como querer uma só vez impedir o recontro? Quando a desgraça chegar, deixe-se que o adversário apareça.
E o adversário da desventura é o consolo, e o consolo é o vinho.
Ah! que amarga suavidade existe no sono dormido sobre a tempestade!...
Os trovões ecoam como os pandeiros de dançarinas, rodopiando ao longe. O relâmpago tem cambiantes azuis que afagam a vista, derramando reflexos de apoteose. As ventanias passam como pânicos acordes através da verdura brincalhona de mimosos bosquetes...
Se um madeiro desmorona-se da sua arrogância secular, não se ouve mais que uma delicada harmonia, ou o rumor de flores que caem. Se ruge o mar, abalando o promontório e fazendo chorar a penedia a golpe de açoute, sente-se apenas um marulhar mitológico, coroado de espumas, lançando à praia, entre beijos, mil sombras de Afrodite, que fogem nuas por meio de dunas de cândidas areias.
Tu me dirás, meu F, que és o meu verdadeiro amigo, e que desgraçadamente estás tão longe de mim, qual a consolação que isto valha? Que lenitivo estúpido é esse dos amigos diplomatas, que nos vêm cá mentir, todos contritos: agora é resignar-se... E outras ironias. Alando-as ao diabo, as mentiras!... Vejo a consolação.
Dizem que o maior amigo do homem é o livro. Admito, porém exijo que se reconheça que, se o livro é o amigo do homem, o vinho é o amigo do desgraçado. E parece-me preferível aquele que nos visita na hora da adversidade ao outro, que, nessa hora, pudera ser-nos importuno.
Eu ainda ontem não pensava como agora. Começava a penetrar a verdade, ao passo que a desventura penetrava-me o peito. Ainda não chegara o período agudo da minha crise de sofrimento. Hoje tudo está passado.
O desabamento não esmagou-me, porque eu tinha vinhos em casa. Salvaram-me, acredita!
O ensaio da prática deu-me a convicção da teoria. Todo o convencido é um apóstolo. Dizendo-te o que penso, desabafo.
É por isso que vazo neste papel a minha alma e confio-ta.
A sorte provou-me que a parreira que dá-nos a folha para as vergonhas, dá-nos o cacho para as dores.
Foi há um mês. Não terminara ainda o período despótico em que se é obrigado a fazer espetáculo das próprias mágoas. A minha pobre Maria fechara os olhos havia menos de um ano...
Eu perdera completamente o gosto de passear, que tanto me divertia outrora. Vivia encerrado em casa, triste como tiveste ocasião de ver... Mas ainda tinha sorrisos. Eu possuía ainda a minha Ercínia. Restavam-me os seus afagos infantis e a deliciosa tarefa de valer-lhe de mãe. Distraía-me ocupando-me com ardor em prevenir e satisfazer-lhe os inocentes caprichos; vê-la brincar esquecida no jardim apertadinha num princesa branco com uma facha de crepe à cinta; recolher, no mais santo beijo, as lágrimas sentidas que ela misturava à impertinência com que perguntava-me quando mamãe chegaria da viagem... Até este abençoado engano, que tem iludido a tantos órfãos de quatro anos como Ercínia, chegava a se apoderar de mim...
Eu começava a crer no dolo, que inventara... Chorava com a minha Ercínia e iludia-me com ela.
Foi há um mês... por uma esplêndida manhã. Voavam insetos através dos arbustos e andorinhas através do sol. O meu jardim acordava num sossego paradisíaco. O arvoredo encobria a rua. Mal se ouvia o rodar crepitante longínquo de um carro de pão. A casa ficava mergulhada em um ninho verde e silencioso. Via-se tudo a gozar de uma bonança profunda.
Entretanto, eu sentia-me opresso. Chegava à janela e recuava. Era repulsiva a alegria daquela natureza.
Nessa manhã, Ercinia não quisera deixar o leito. Perguntei o que ela tinha. Disse-me que nada. Mas os olhos tinham-lhe uma ternura doentia. Ercínia costumava, ao acordar-se, abrir os olhos para o dia e um sorriso para mim. Nessa manhã, os olhos não se abriram nem o sorriso...
A pobre criança sofria. Por fim saiu da cama. Agasalhei-a. Levei-a ao jardim. Mostrei-lhe o sol, as andorinhas, as flores... Sempre triste.
Trouxe-a então para dentro. Ela pediu a cama...
Ah! meu amigo, chorei muito nesse dia.
Daí em diante a moléstia persistiu atroz. Até... Não posso, não quero falar-te desse mês que foi-me a página arrancada a algum calendário do inferno. Cada dia passou como um suplício de doze horas, e cada noite como uma tortura de um século. Eu ia perder a razão. Achei o vinho. Estava salvo!
E Ercínia morreu.
Fui um herói. O golpe falseou pela couraça sem derribar-me. Incrível. Quando há muito devera ter morrido, eu permanecia com forças! Ainda me sobrou ânimo para correr ao leito branco fantástico, onde jazia a lívida estatueta que fora a minha Ercínia; tive energia para sugar num beijo sôfrego, intenso, todo o amor de que nutrira aquela carne inocente. E só o resíduo deixei para o túmulo.
Pobre filhinha!...
Assim foi a minha catástrofe. Amor de esposo, amor de pai, tudo rolou como um desabamento.
As catástrofes são os maiores mestres. Não discutem: provam e impõem; têm argumentos de aço e de chumbo, cortam e esmagam. É a dialética dos assassinos. Não há quem se oponha.
A minha catástrofe ensinou-me o recurso que me ficava.
Sou agora um infeliz, porém um infeliz consolado.
Entretanto, meu bom amigo, não deixes de compadecer-te de mim. Ter de consolar-se é por si uma grande desgraça. O náufrago, agarrando-se aos mariscos afiados de um rochedo, não se acha tão bem como se estivesse a brincar sobre moles coxins do levante... A minha consolação toda é acremente dolorosa no íntimo.
Consigo entontecer-me, perturbar-me, fechar ouvidos aos gritos do meu próprio coração...
Consigo escrever estas linhas sacrílegas no dia de hoje...
Mas... sei que aí está na sala, entre velas e rosas, entre a hipocrisia dos homens e a indiferença das flores aquele corpo que é meu e aquelas poucas gotas coaguladas de sangue, que saíram do meu próprio peito!... Sei que vão fechar o caixão onde encerraram a minha Ercínia: sem o meu protesto!... Roubam-me tudo o que me restava de risonho na existência, e eu não reluto.
Despacham para o cemitério toda a minha ventura: conservo-me inerte...
Sinto no peito um vazio: percebo que extraíram-me o coração para sepultá-lo antes de mim.
Ah! ah! É porque estou bêbado! Não é porque seja feliz...
Deixo que o façam!
— Venha! venha a bebedeira! Vinho! vinho!... Ai!... Vinho!...
Levem-me a filha, mas não me deixem sem vinho...
Já nem sei o que escrevo... nem sei o que escrevi. Sinto peso no crânio e peso nos braços. Vai desculpando, meu amigo, as idéias e a letra. Isto não é bem carta... Não sei como chame, senão sacrilégio; porém, já... não respondo por mim... Vejo um tremor estranho agitar os objetos que me cercam... Sou eu talvez que estremeço. Voa um nevoeiro escuro pelo meu quarto... Não posso continuar. É também impossível examinar o que escrevi.
E... para quê?... Estou incapaz de corrigir... Se houver por aí alguma blasfêmia, deita-a por conta do vinho...
Também começo a ouvir uns rumores horrendos... Vão levá-la...
Não posso continuar...Reina movimento na sala do esquife... Tenho a cabeça a arder, como se um incêndio me lavrasse os cabelos... Neste instante bateram levemente à porta do meu quarto! Não abro! Não abrirei!
Ainda há o que beber aqui...
Bateram de novo... Que tormento!... Não abrirei!...
Perdão meu generoso F, eu sou um perverso... mas não te incomodes. O gargalo de uma garrafa pode valer o cano de um revólver... A morte é um grande ponto final. Termina. Não me desgosta: criminoso estarei punido; desgraçado estarei livre.
E bem que se morre num tonel de Malvasia!...
Conserva, meu precioso amigo, esta carta. Nunca mais escreverei. Adeus.
Teu F.
Niterói, 12 de outubro de 188...