Crônica de Machado de Assis de 15 de agosto de 1883

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NOTA-SE há algum tempo certa tristeza nos generais da armada. Há em todos uma invencível melancolia, um abatimento misterioso. A expressão jovial do Sr. Silveira da Mota acabou. O Sr. De Lamare, conquanto tivesse sempre os mesmos modos pacatos, mostra na fisionomia alguma coisa nova e diferente, uma espécie de aflição concentrada. Não falo do Sr. Barão da Passagem, nem do Sr. Lomba; todos sabem que esses jazem no leito da dor com a mais impenetrável das moléstias humanas.

Não atinando com a causa do fenômeno, os médicos resolveram fazer uma conferência, e todos foram de opinião que a moléstia tinha uma origem puramente moral. Os generais sentem necessidade de alguma coisa. Não pode ser aumento dos vencimentos; eles contentam-se com o soldo. Nem honras, eles as têm bastantes, e não querem mais. Nisto interveio o Sr. Meira de Vasconcelos. S. Ex.ª conversou com os enfermos, e descobriu que eles padeciam de uma necessidade de denominação nova. Fácil era o remédio; eis a receita que S. Ex.ª lavrou ontem, no Senado, em forma de aditivo ao orçamento da Marinha:

Os postos de generais do corpo da Armada passarão a ter as seguintes denominações, sem alteração dos vencimentos nem das honras militares: — Almirante (passa a ser) almirante da armada; vice-almirante (idem) almirante; chefe da esquadra (idem) vice-almirante; chefe de divisão (idem) contra-almirante.

Não é de supor que o Senado rejeite uma coisa tão simples; podemos felicitar desde já os ilustres enfermos.

Não terá escapado ao leitor, que, por este artigo passamos a ter quatro categorias de almirantes, em vez de duas; e ninguém imagina corno isto faz crescer os pepinos. Outra coisa também não terá escapado ao leitor, é o dom prolífico deste aditivo, porquanto ele ainda pode dar de si ,quando a moléstia atacar os outros oficiais, uma boa dúzia de almirantes: — um quase-almirante, um almirante-adjunto, um almirante suplente, etc., até chegar ao atual aspirante de marinha, que será aspirante a almirante.

Não há que dizer nada contra a medicação. A Câmara Municipal aplica-a todos os dias às ruas. Quando alguma destas padece de falta de iluminação ou sobra de atoleiros, a Câmara muda-lhe o nome. Rua de D. Zeferina, Rua de D. Amália, Rua do Comendador Alves, Rua do Brigadeiro José Anastácio da Cunha Souto; c'est pas plus malin que çà. Foi assim que duas velhas ruas, a da Carioca e a do Rio Comprido, cansadas de trazer um nome que as prendia demasiadamente à história da cidade, pelo que padeciam de enxaquecas, foram crismadas pela ilustre corporação: — uma passou a chamar-se São Francisco de Assis, outra Malvino Reis.



Creio que o leitor sabe de um banquete que as sumidades inglesas deram agora ao célebre ator Irving. O presidente da festa foi o lord chief justice. Levantando o brinde à rainha, disse, entre outras, estas palavras:

Usarei de uma metáfora apropriada à ocasião; direi que Sua Majestade, durante muitos anos, tem desempenhado um grande papel no tablado dos negócios humanos, representando com graça, com dignidade, com honra e com uma nobre simpleza (Apoiados). Os seus súbditos sabem como ela amava o drama na mocidade... Agora, nos últimos tempos, sob a influência de uma grande tristeza, tem se retirado do teatro público.

Ah! Se o Sr. Lafayette caísse em usar cá uma tal metáfora! Se Sganarello lhe deu tantas amarguras, que diríamos desta comparação da rainha com uma atriz, e do governo com um tablado? Não sei se já disse que o discurso foi do lord chief justice.

Já o fato de ir este homem jantar com um ator é extraordinário; mas o que dirá o leitor de um bilhete com que Gladstone, que atualmente governa a Inglaterra, pede desculpa a Irving de não poder comparecer, acrescentando que há dois anos para cá, só tem ido aos jantares de lord mayor, que são jantares de rigor? E a ênfase com que o bispo de York escreve, dizendo que os que se interessam pela moralidade pública, devem simpatizar com as honras feitas a Irving, que tão nobremente tem levantado a arte dramática na Inglaterra?

Não quero citar mais nada; bastam-se estas palavras do lindo brinde do lord chief justice ao artista festejado:

Em conclusão: assim como a América nos mandou Booth, assim mandamos Irving à América, e assim como Irving e a Inglaterra receberam Booth de braços abertos, assim também, estou certo, aquele grande e generoso país receberá o nosso primeiro e admirável ator.



À vista destes deploráveis exemplos quer-me parecer que Sganarello e Molière não fariam tão má figura na Câmara dos Comuns...



Não vamos agora dar um banquete ao Sr. Pedrosa só para imitar os ingleses.



Um articulista anônimo, tratando há dias do uso da folga acadêmica nas quintas-feiras, escreveu que Moisés e Cristo só recomendaram um dia de descanso na semana, e acrescenta que nem Spencer nem Comte indicaram dois.

Nada direi de Spencer; mas pelo que respeita a Comte, nosso imortal mestre, declaro que a afirmação é falsa. Comte permite (excepcionalmente, é verdade) a observância de dois dias de repouso. Eis o que se lê no Catecismo do grande filósofo.

O dia de descanso deve ser um e o mesmo para todas as classes de homens. Segundo o judaísmo, esse dia é o sábado; — e segundo o cristianismo, é o domingo. O positivismo pode admitir, em certos casos, a guarda do sábado e do domingo, ao mesmo tempo. Tal é, por exemplo, o daquelas instituições criadas para a contemplação dos filhos da Grã-Bretanha, como sejam, entre outras, os parlamentos de alguns países, etc. E a razão é esta. Sendo os ingleses, em geral, muito ocupados, pouco tempo lhes resta para ver as coisas alheias. Daí a necessidade de limitar os dias de trabalho parlamentar dos ditos países, a fim de que aqueles insulares possam gozar da vista recreativa das mencionadas instituições. (Cat. Posit., p. 302).

Rio de Janeiro, 3 do Brigadeiro José Anastácio da Cunha Souto de 94 (14 de agosto de 1883) .