Curiosidade/VI
— Papai, o Conceição foi autorizado por mim, disse Carlota. Já não me quero casar com ele.
Foi neste ponto que a pena caiu das mãos do dr. Cordeiro, enquanto a alma lhe caía aos pés. O pai contraiu as sobrancelhas, como a fazer uma interrogação muda; a filha repetiu o que dissera.
— Não quero casar.
— Mas por quê?
— Não gosto dele.
— Mas gostavas antes, aceitaste a mão que ele te ofereceu, marcou-se a data do casamento, preparamo-nos, dei notícia aos parentes e amigos, e...
— E não me caso, concluiu Carlota.
— Mas então quem pensas tu que eu seja, eu e tua mãe, e a sociedade? Isto é brincadeira de bonecas? Sabes que a reputação de uma moça não se expõe assim à curiosidade dos outros, e as caçoadas...
— Não sei nada disso, interrompeu outra vez Carlota, sei que não me caso com o Conceição.
— E se eu te obrigar...
— Não me caso.
O dr. Cordeiro ergue-se trêmulo de cólera, mas a filha não se alterou, nem empalideceu; deixou-se estar a olhar para ele com tranqüilidade; o dr. Cordeiro tomou a sentar-se, mas silencioso e abatido. Ao fim de alguns minutos:
— Não foi essa, disse ele, não foi essa a educação que eu e a tua mãe te demos; não foram esses os exemplos; e nunca supus que se dada esta cena entre nós. Faça-se a tua vontade; retira-te.
Carlota obedeceu e saiu.
De tarde, quando o Lulu Borges lá apareceu, chamou-o o dr. Cordeiro ao seu gabinete, para lhe contar tudo. Lulu Borges era já uma espécie de confidente obrigado do velho médico.
— Sabe? perguntou este logo que ficaram a sós.
— O quê?
— O Conceição...
— Que fez?
— Escreveu-me restituindo a palavra dada; diz que não se casará com Carlota.
Lulu Borges sabia perfeitamente de tudo, porque Carlota tudo lhe escrevera; mas era matreiro como poucos, abriu a boca espantado; depois como lhe ocorresse outra idéia, fechou a boca e baixou os olhos, dando ao rosto um ar de vexame e remorso.
— Que lhe parece o pelintra? disse o dr. Cordeiro.
Silêncio de Lulu Borges.
— Na verdade, vir pedir uma moça, preparar-se o casamento, escrever uma carta daquelas...
Silêncio de Lulu Borges.
— Só esganando-o, concluiu o médico. E depois de uma pausa:
— Ah! meu caro Borges, nunca tenha filhos! não se case! poupará grandes amarguras.
Mas porque o silêncio de Lulu Borges continuasse, perguntou-lhe o médico se não tinha ao menos uma palavra de consolação para ele, em tão desagradável conjuntura.
— Consolação? repetiu Lulu Borges. E a quem a irei eu pedir? De consolação preciso eu, doutor; de consolação e de piedade, porque vejo a sua dor, e vejo... que... não, nunca... adeus...
— Que é isso?
O Lulu Borges levantara-se; o médico deteve-o.
— Onde vai?
Não respondeu o secretário da sociedade patriótica; deixou-se estar a olhar para o chão, com um ar de confusão e vergonha. O dr. Cordeiro não podia sequer raciocinar acerca do que via; tinha tal entusiasmo por Lulu Borges, que por alguns segundos esqueceu inteiramente o episódio da filha. Instou mais, instou muito com Lulu Borges; este determinou-se então a dizer tudo.
— Saiba...
Uma pausa.
— O quê? disse o dr. Cordeiro.
— Saiba...
E suspendeu-se o secretário; uma idéia luminosa e diferente lhe atravessou o cérebro, e, prestes a confessar-se causador do mal, resolveu apresentar-se simplesmente no caráter de reparador. Era mais patético, e sobretudo mais nobre. Mas tendo já começado a outra cena, como faria ele para passar à nova? Pareceu-lhe que o melhor era combiná-las, e disse:
— Saiba que eu já suspeitava isso mesmo; e tinha uma dor grande, uma dor calada de ver sacrificada essa moça, tão digna das adorações e da estima de um homem como o Conceição, que sempre apreciei muito. Admira-me o que fez, mas, repito, eu já o suspeitava... E porque suspeitava, entrei a contemplar com simpatia a vítima... não, não direi esse nome, não quero carregar a mão no ato do Conceição. Vítima, não; direi... não direi nada... Diremos o anjo, porque sua filha, doutor, é um anjo de resignação, de bondade, e de boa fé...
— Tem razão, aprovou o dr. Cordeiro.
— De boa fé, continuou Lulu Borges; vi-a então com afeto... e imaginava o que seria quando o Conceição viesse a fazer o que fez; e então resolvi tentar alguma coisa... evitar o golpe... mas ao mesmo tempo não supunha que ele fosse capaz...
— E foi, bradou o médico; foi capaz, e aí está minha filha na boca do mundo, exposta a mil comentários, talvez rejeitada por mais de um pretendente, desde que souber que, sem motivo, sem aparência de motivo, um malandro...
— Rejeitada? disse Lulu Borges.
— Pode ser.
— Nunca!
E Lulu Borges estendeu a mão ao médico, e disse-lhe em tom comovido:
— Ninguém a rejeitará doutor, porque se me julga digno de entrar na sua família, e se ela o quiser, o marido de D. Carlota serei eu.
O pasmo do dr. Cordeiro foi enorme; durante alguns minutos olhou para o secretário da sociedade patriótica, sem ousar dizer nada, porque mal acreditara no que ouvira, tão longe estava daquele desenlace; mas, enfim, o tempo correu, Lulu Borges continuava a estar ali, era aquele o gabinete, e o médico não dormia; a reflexão viu isso tudo, e a realidade dominou logo. Que diria o dr. Cordeiro ao pedido súbito e inesperado de Lulu Borges? Não disse nada; apertou-lhe a mão comovido, agradeceu-lhe em duas palavras mal articuladas e calou-se; depois tornou a falar, mas foi para lhe pedir toda a reserva no que se acabava de passar, enfim, disse francamente:
— Quanto a Carlota, ela será sua, se o quiser, mas então com uma condição.
— Qual?
— O casamento far-se-á imediatamente.
— Essa condição seria a minha; há situações que não permitem demora, e a nossa é uma dessas.
Lulu Borges disse isto com uma atitude e entoação teatrais; e o dr. Cordeiro, que gostava muito de teatro, achou que era aquilo a mais alta expressão da dignidade e que o secretário da sociedade patriótica era um verdadeiro amigo.
Saídos dali, pensou Lulu Borges no modo de industriar a moça, o que fez a tempo de completar a cena por ele começada; de modo que, em vez de impor o noivo ao pai, pareceu recebê-lo com resignação.
— Não te obrigo a nada, disse o dr. Cordeiro; aceita-o se quiseres; mas se o quiseres, fica certa de que terás um marido digno.
— De certo.
— Aceitas?
— Aceito.
A mãe da moça desconfiava de que havia alguma coisa, segundo já ficou dito atrás, mas vendo o marido crer alguma coisa que não era a verdade, não quis dizer qual era esta, e com o seu silêncio deixou ao lado da felicidade, a ilusão. Lá consigo, pareceu-lhe que o Lulu Borges era um pouco velhaco, mas como lhe parecia bom, afetuoso e de costumes puros, e visto que a filha o amava, consolou-se com a idéia de que não há perfeição no mundo.
Marcou-se desde logo o dia do casamento, e tiraram-se os papéis, com uma presteza rara. Todos os motivos convergiam para o ponto de realizar o casamento logo e logo: — o amor da noiva, a cobiça do noivo, o capricho ou a dignidade ofendida do pai.
— Mostrarei àquele pelintra, que não zombou de mim como pensava, dizia consigo o médico, e dizia-o muito contente.
Quanto a Ernesto, que encontramos uma vez no teatro de S. Januário, no dia em que soube do casamento de Lulu Borges e Carlota não se deteve um instante; foi ter com o amigo.
— Deveras?
— O quê?
— Casas-te com a Carlota?
Lulu Borges hesitou um instante; depois disse que sim.
— Mas... então...
— O outro despediu-se, eu caso-me. Não te disse logo, porque ficou convencionado entre nós todos a maior reserva. Vejo que a coisa está pública.
— Em toda a parte.
— Pois caso-me.
— Então ganhaste?
— Que te dizia eu? Ganhei; tudo está em querer. Quis; venci.
Fez-se o casamento no dia aprazado com um estrondo que deu muito que falar em toda a Gamboa; foi uma festa esplêndida; e o conto, acabaria aqui, se todos os contos acabassem pelo casamento, mas não é assim, e o casamento é muita vez um prelúdio, em vez de um desenlace. Este foi prelúdio; mas o desenlace não tarda.