Curiosidade/VIII
Fui mais prudente do que o Lulu Borges; não falei em dote, assunto de que o noivo tratara, dia antes de casar, fazendo-o com arte e dissimulação, de modo que ao dr. Cordeiro ainda pareceu desinteresse. O dote foi entregue ao noivo, sob a forma de bons prédios, e não se falou mais nisso. Lulu Borges cobrou pontualmente os aluguéis e foi gastando conforme a necessidade; pode-se dizer que era bom administrador.
Um ano depois do casamento, o dote, aliás inocente, recebeu uma forte dentada do jovem marido. Não se soube bem por que motivo, mas pode ser que fosse para pagar os caprichos de uma mulher impura. Digo que pode ser isso, porque o Lulu Borges, estróina de primeira ordem, dissipado, amigo dos prazeres, mal poderia habitar a terra da família; sua vocação era outra, outro o seu mundo, outros os seus hábitos. Simulou uma coisa que não era, e o fez durante largo tempo, maior do que se pudera supor da parte de um estróina emérito; meteu-si em casa, às noites, acompanhou a mulher, os sogros, foi marido excelente e pai extremoso. Mas todos os rios tendem ao leito natural; e o leito natural de Lulu Borges era a rua.
Convém dizer que, sendo ele profundamente velhaco, não fez a mudança, ou antes a restauração, de um só golpe e sem gradação nenhuma. Tão tolo não era ele. Foi devagar, com tática, começou a acostumar a família; ora tinha uma conferência com um sujeito, ora um negócio, ora um amigo doente, ora qualquer pretexto que lhe ficasse a mão; e nisso ajudava-o com muita solicitude o amigo, com quem o vimos, no teatro de S. Januário.
— Teu marido? perguntou uma noite o dr. Cordeiro achando a filha só.
— Saiu, disse esta sorrindo, mas não tarda; foi a uma conferência...
— Sobre?...
— Parece que sobre um negócio; não sei bem o que é.
Era razoável a explicação; aceitaram-na, e não diminuía a confiança nem se alterara a paz. Mas os fatos repetiam-se.
— Não está cá o Lulu? perguntou noutra ocasião o dr. Cordeiro.
— Não, senhor, foi tratar um negócio.
No fim de dez ou doze explicações vagas como esta, o dr. Cordeiro sentiu-se um pouco incomodado, mas nada disse, nem podia dizer, tanto mais quando as doze vezes não foram em noites consecutivas. Ao cabo de dois meses começaram as ausências a ser mais continuadas do que dantes; e a própria Carlota apresentava um rosto menos prazenteiro do que costumava. Um dia chegou a parecer triste e aflita, mas nada disse ao pai nem à mãe, por mais que estes lho perguntassem.
— Sabes que mais? disse o dr. Cordeiro à mulher, cuido que nossa filha não é feliz.
— Por quê?
— Estas ausências...
— Talvez.
— Vê se ela te diz alguma coisa.
No domingo imediato, Carlota foi jantar em casa dos pais, levou o filhinho e a ama, mas o marido não apareceu nem de tarde nem de noite, e foi o dr. Cordeiro quem acompanhou a filha à casa, às dez horas da noite. No caminho, teve impulso de lhe falar, de a interrogar francamente; mas era difícil, deixou o trabalho à mulher. Contudo, à porta, sempre lhe perguntou:
— Teu marido já terá vindo?
— Pode ser, disse Carlota.
Não tinha vindo; chegou à casa de madrugada.