Danton em Ouro Preto

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Por que Danton? A que propósito aqui o homem da audácia? Que associação de idéias pode haver entre o martírio dos inconfidentes e a truculência dos terroristas? Da altura, de onde fala o nobre presidente da República, as palavras não chegam ao chão: propagam-se pelo ar, e caem nos espíritos, para germinar o bem, ou o mal. Eis por que nos não seria lícito deixar sem nota o seu brinde do dia 24, na velha capital mineira, onde S. Ex.ª disse: “Sim, senhores, vim ver a terra legendária e santa da liberdade. Quando pela primeira vez visitei a capital da França, minha maior admiração foi pela estátua de Danton, como símbolo da audácia na revolução. Também ontem, quando galguei as pitorescas ladeiras de Vila Rica, entre as aclamações do povo, lembrei-me dos inconfidentes mineiros. Brindo, pois, a Ouro Preto, como berço da república brasileira”.

Perdoe-nos o ilustre orador: as conclusões não se acham de boa avença com as premissas. O pois está a servir ali de colchete a sentimentos, que se repelem. Não se pode um homem lembrar dos inconfidentes mineiros com a mesma admiração com que se extasiava diante da estátua de Danton. Não há senão repugnância e inconciliabilidade entre as tradições políticas da antiga Vila Rica e os exemplos demagógicos de Paris. Não pode haver senão antagonismo entre o berço de uma república gerada sem crueldades republicanas, pelo modelo saxônio da submissão comum de todos os poderes à lei, e o laboratório do regicídio, do setembrismo, da Convenção, da Comuna.

Terra de reminiscências liberais é Minas, terra consagrada à liberdade. Mas, por isso mesmo, nunca simpatizou com os ditadores, com os Dantons. O herói de sangue, preconizado, ao lado de Francia e tantas outras encarnações típicas da ferocidade, no igrejário positivista a que o chefe do Estado acaba de fazer esta mesura, na época em que se trama e propala a reabilitação judicial do atentado anárquico de 5 de novembro, é uma das expressões mais radicais e sanguinosas da democracia iliberal, da democracia reatora, da democracia antiamericana. Minas só teria aversão por essa figura clássica da ditadura inchada e retórica, atroz e retumbante. Minas, se fosse um pedaço da França, quando o parceiro de Marat e Robespierre a cobria de guilhotinas, seria para fechar as suas montanhas aos decretos dos proscritores, e franquear aos perseguidos essa hospitalidade, de encontro à qual se tem ido inutilizar, sob a República, o desespero das perseguições.

A honra dos imolados pelo absolutismo colonial no Brasil, a honra da sua memória cristã, de abnegação e sofrimento, repele esse parentesco arbitrário, exótico, espúrio com a carniceria dos ídolos jacobinos. Nessas imagens caras aos patriotas brasileiros não há sangue. Esses mortos não oprimiram, não espoliaram, não mataram. Na sua história só se encontra um suplício: o deles. Danton é o contraste deste sacrifício: é a política do cadafalso servida pela eloqüência de um tribuno e cinismo de um demagogo.

As duas maiores obras do Terror foram o 2 de setembro e o tribunal revolucionário. No primeiro uma legião de galés e magarefes ébrios, assalariados para a matança, esvaziaram de milhares de inocentes as prisões de Paris, e, numa hecatombe incomparável, alagaram do seu sangue as ruas da cidade. Pelo outro se organizou sistematicamente o morticínio judicial dos cidadãos, sem lei, processo, nem defesa. Um foi a aluvião do extermínio civil pelo processo dos invasores orientais nas regiões conquistadas. O outro, a metodização da chacina humana pela mais ignóbil paródia da justiça. Dessas duas obras do assassínio político em massa, o maior responsável foi o tipo, cuja evocação acabamos de ver numa solenidade semi-oficial como o símbolo da audácia republicana.

Não se pode conceber excentricidade mais inoportuna, dis­sonância mais irritante que esse hino à audácia sarapintada de sangue, em seguida à boa nova da tolerância. No dia 21 se declarara, em Belo Horizonte, a liberdade para as consciências. No dia 24 se panegiriza, em Ouro Preto, o gigante da inquisição revolucionária. A impressão dessa incongruência é amarga e desanimadora.

Pese melhor o honrado presidente da República as suas inconfidências. Faça aos seus amigos e ao país esse serviço. S. Ex.ª ama a audácia. Quer convencer-se e convencer-nos de que essa é a sua qualidade prima. Cuidado, porém, com a escolha dos modelos e o risco dos símiles. Danton não simboliza a república: simboliza a ditadura. Virtude haveria no seu arrojo, se ele o houvesse utilizado em proteger aos oprimidos. Mas nunca o empregou senão para se entronizar entre os opressores. Se ele se servira da sua audácia, para se fazer o domador da demagogia, podia ter sido o Titão das reivindicações populares. Cortesão, porém, dos maus instintos da plebe, a sua afoiteza não lhe prestou senão para disputar a primazia aos mais cruéis.

Vede nalguns traços a escala, por onde esse homem sobe à popularidade e ao poder. Aos 20 de junho de 1792, quando lhe chega a notícia de que o motim deixara as Tulherias, sem ter degolado Luís XVI, rompeu-lhe da boca esta exclamação: Les imbéciles! ils ne savent donc pas que le crime a aussi son heure du berger! Na manhã de 2 de setembro, o dia da carniça, ao lhe anunciarem que as prisões estavam ameaçadas e os presos espavoridos, ele, ministro da Justiça, responsável pela vida indefesa dos acusados, brame com o gesto adequado à obscenidade da palavra: “Je me f.... bien des prisonniers! qui’ls deviennent ce qu’ils pourront.” No dia seguinte inunda os departamentos de bandidos e corta-cabeças, revestidos das funções de comissários do governo; e, quando, mais tarde, um deputado se lhe queixa dos crimes desses malfeitores, a resposta do seu protetor é outra torpeza intraduzível: “Eh f...! Croyez-vous qu’on vous enverra des demoiselles?”

Semanas depois, na matança das prisões, M. de Ségur, antigo embaixador da França na corte da Prússia, com quem, na rua, Danton, uma vez, travara conversa, lhe dizia:

“— Não lhes posso atinar com o motivo, nem com o fim, e não compreendo como vós, ministro da Justiça, não pudestes prevenir esses horrores, ou ao menos lhes atalhar o curso.”

— “Esqueceis, senhor”, redargüiu-lhe o audaz, “a quem estás falando; esqueceis que saímos da enxurrada; que, com os vossos princípios, bem cedo nela tornaríamos a chafurdar, e que não podemos governar, senão metendo medo.”

Aí está o segredo dessa audácia: intimidado, intimidar. Em março de 1793 o conselho geral da comuna de Amiens comunica à assembléia que acaba de receber de Danton, ministro da Justiça, uma circular, expedida pela comissão de vigilância da Comuna, exortando os departamentos a trucidarem todos os prisioneiros e todos os traidores. Poucos dias depois um dos seus mais façanhosos discursos, onde sobressaía esta frase: “Quem quer que se atrevesse a almejar a destruição da liberdade, afirmo que morreria pela minha mão”, arrasta a convenção a adotar um decreto pondo fora da lei os aristocratas e em movimento o tribunal revolucionário. No mês seguinte rasteja entre os aduladores do triunfo de Marat, qualificando essa data de sinistra ignomínia como um belo dia. Por mais que aumente em presteza, no tribunal revolucionário, a máquina homicida, era preciso estar sempre adiante da ferocidade dos assassinos, para não ser devorado por ela. Daí aquele me­donho discurso de 4 de setembro de 1793, argüindo de morosidade a incansável oficina de sangue, e propondo a sua divisão em maior número de secções, para lhe desenvolver cada vez mais a ativi­dade.

Estas linhas definem o ídolo dos violentos. Só eles podem amar esse perfil rubro de carnífice, em quem a submissão às paixões da canalha, sem a desculpa do fanatismo de Robespierre, ou da loucura de Marat, subserviu às monstruosidades inenarráveis da revolução, dissimulando-se numa audácia de aparato.

E que aproveitou ela à república? A audácia do dantonismo gerou o Terror. O Terror gerou a anarquia. A anarquia gerou a ditadura. A ditadura gerou o império. O império gerou a invasão estrangeira. A invasão gerou a restauração. Eis o valor republicano do nome, cuja reminiscência as aclamações do povo mineiro despertaram no ânimo do chefe do Estado.

O estadista foi traído pelas suas recordações acadêmicas. Feche S. Ex.ª os Plutarcos da demagogia, escute a História, e verá como a sua alma de americano recua horrorizada do erro dessas admirações.