Desta vez venho triste, bons leitores

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O bom Democrito ria
Do que a nós nos causa dor;
Elle mui bem o sabia:
Yamos nós tambem, senhor,
Fazer o que elle fazia.
(N. Tolentíno)



D’esta vez venho triste, bons leitores,
Que lavram-me no peito acerbas dores.
Já meus olhos captivos da paixão,
Voltados lacrimosos para o chão
Não sentem na pupila dilatada
Os fulgores da roxa madrugada;
Nem os trinos saudosos dos alados
Cantores da floresta enamorados
Os prazeres dispertam, que n’est’alma

Brincavam brandamente em doce calma.
Imagem da tristeza eu sou valente,
Que trago o lucto impresso no semblante.
A causa d’este mal, leitor querido,
Eu passo relatar inda ferido.

De jovem pudibunda casta e bella,
Por quem paixão nutri, a mais singela,
E que hoje de hymineu presa nos laços
Entrega-se aos prazeres n’outros braços,
Guardava com amor, que me mantinha,
A fagueira e mimosa cadellinha.
No meu leito dormia; si velava,
A testa me lambia, a lisa calva;
Lambia-me o nariz, a bocca.... tudo,
Ao ver-me resomnar tam quedo e mudo.
Té dos pés me lamber não tinha pejo,
Julgando em cada calo ter um queijo.

Fazia o meu prazer, o meu encanto,
Nos olhos me estancava o salso pranto;
E penso que cadella tão querida
Ainda ninguem teve nesta vida
Mas ao monstro voraz, que ròe penedos,
Aprouve de tornar meus dias tredos,
Matando aquella prenda, que eu amava,
Qual Hercules deixou-me sem a clava;
E se ferido ainda estou vivendo
E’ so para sentir que vou morrendo.

Não tenho mais prazer, gostos não tenho,
Que só dar pasto á magoa é meu empenho ;
Thomazinho não sou, qual d’antes era,
O rosto está rugoso—erma tapera.
E quem, notando golpe tão profundo,
Não dirá:—Nada somos n’este mundo !
Mas como quem pertence a máo senhor,
De si dispor não póde a seu sabor,

Aqui venho, de aspecto, que contrista,
Cumprir os meus deveres de chronista.

Tem dado que cuidar aos curiosos
A torrente de encomios estrondosos
Com que a Redacção do "Paulistano”,
Enfuna certa gente a todo o panno.
A uns porque da patria são distinctos
Servidores solertes, não famintos,
Que armados de coragem verdadeira
Não deixam nem dormindo agra carteira,
E, atados á tripeça do thesouro
Dão à mão com mais sanha do que o mouro!
A outro por que gira alegremente,
Sem largar um momento o presidente,
Prestando serviada relevante
No cargo sacrosanto de Ajudante:
E a todos por que unidos fazem cousas,
Que vivem na memoria além das lousas
A grave redacção de penna alçada,
Perante a guapa gente decantada,
Declara, que esse grupo abençoado
Merece do Governo ser lembrado.
Quer ver o povo n’isto manivela,
E anda bor ahi dando a t’ramela;
Porém, só eu lhe-noto devoção,
Julgando em seu direito a Redacção.
Barões tão prestadios quem já viu?
Amor tão santo e puro quem sentiu?
Descance a negra inveja presumida,
Que a gloria é só da gente bem querida.
Ataca, Redactor, com vento forte,
Que é dino esse povinho d'aurea sorte.

Os Licurgos da nossa Edilidade,
Em nome da Sagrada liberdade,
Chamaram a congresso todo o povo
Afim de discutir um facto novo.

Era o caso—salvar a Patria nossa
E dar no Paraguay tremenda coça :
Naufragios, perdições de toda a sorte,
Que o menor mal de todos seja a morte.
Pejaram-se os salões, quartos e salas
Da gente que de assucar come balas,
Mais valente que Cezar ou Roldão,
Que batalhas vencia a cachação:
Doutores da lanceta—irmãos da Morte,
Mais ferós na matança que Mavorte;
Doutores da verdade—do Direito,
Mas que ao torto tambem lá dão seu geito ;
Rotundos vendilhões, magros artistas,
Deputados, santudos cabalistas,
Patriotas magriços e pansudos,
Aquelles tagarallas, estes mudos.
Emfim, todos que tinhão perna ou mão,
Que perder não podiam tal funcção,
Ali compareceram junctamente,
De semblante garrido, ardor latente,
Convocados da parte de Tonante
Pelo neto gentil do velho Atlante.

Estava Ozorio ali sublime e dino,
N’um assento de encosto purpurino,
Com gesto alto, severo e soberano,
Que guerreiro tornára um fraco humano,
Com suissa tão alva e rutilante,
Que excedia no brilho ao diamante.

Em bancos de palhinha empoeirados
Os mais vereadores assentados,
Com mareio antojo logo abaixo estavam
Como a razão e a ordem concertavam.

Foi aberta a sessão em continente,
Fallando in primo loco o Presidente,

Que em synthese tractou do caso grave
Apoz guardando aspeito de Margrave.
Quaes suspiros de virgem de Convento,
Em motes traduzindo o pensamento,
Que exhalados a furto, com brandura,
Exacerbam dos vates a ternura,
Levando o sentimento a ponto tal,
Que nenhum já se-lembra que é mortal,
E feridos no peito o deus frecheiro
Decantam ás fogueiras do Outeiro,
Jorrando tantas glosas sublimadas,
Que se-tornam em grossas enchurradas:
Taes de Ozorio as sentenças, que findaram,
A turba valorosa electrisaram.

Cada qual um canario se-julgava,
De calar-se ninguém alli cuidava,
Queriam fallar todos de um só jacto.
Rompendo em tenebroso espalhafato,
—A saltos de polé por badulaques—
Qual se-ardessem dez mil cartas de traques.

Impôz Tonante a paz então de novo,
Porque um orador fallasse ao povo.

Silencio ! disse alguem se-levantando.
Silencio . . . . .guardam todos não fallando.

Ergueu-se da rhetorica o maestro,
Que de ás turbas orar tem manha ou sestro.
O canoro fagote embandeirado
Os corações a paz acostumados
Vai ás fulgentes armas incitando,
Pelas concavidades retumbando.

Da campana arrojando gradações
Os tectos faz tremer d’amplos salões;

Ribombos de Enargueia, Epiphonemas,
Em phrazes de escachar—as mais extremas;
Metaphoras brilhantes etopeias,
Capazes de empolar dez epopeias
Jorraram em torrentes caudalosas
Oom bulha que as-tornava pavorosas.
O povo allucinado erguera um —bravo—,
E o tribuno rubento mais que um cravo,
A voz fortalecendo com pujança,
Derrama em cada tropo tal chibança,
Que todos só de ouvil-o transportados
Dispararam descargas de apoiados!
Avante o Mirabeau vai sem parar,
Nem co’a lingua do céo da bocca dar:
Os olhos são dois astros reluzentes,
Os gestos aterravam de imponentes,
Os labios similhavam duas lavas,
Eeria a lingua mais do que cem clavas:
As palavras fulgiam como raios
Rachando d’alto a baixo os paraguayos:
E no ar sacudindo a larga testa
Guerra! guerra! bradava, em ar de festa.

Mais guerra! repercute a Academia,
Que agora de matar deu-lhe a mania;
Haja guerra! exclamou rico banqueiro,
Guardando, por cautela, o seu dinheiro.
E o povo pelos ver tão alarmados,
Soltou nova descarga de apoiados.

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Mas eu que me arreceio da mortalha,
Fugi d’ali com medo da metralha.

(Publicada no Diabo Coxo de 6 de Agosto de 1865)