Diva/V

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Por esse tempo Emília fez a sua entrada no Cassino.

— Já viu a rainha do baile? disseram-me logo que cheguei.

— Ainda não. Quem é?

— A Duartezinha.

— Ah!

Realmente, a soberania da formosura e ele gância, ela a tinha conquistado. Parecia que essa menina se guardara até aquele instante, para de improviso e no mais fidalgo salão da corte fazer sua brilhante metamorfose. Nessa noite ela quis ostentar-se deusa; e vestiu os fulgores da beleza, que desde então arrastaram após si a admiração geral.

Seu trajo era um primor do gênero, pelo mimoso e delicado. Trazia o vestido de alvas escumilhas, com a saia toda rofada de largos folhos. Pequenos ramos de urze, com um só botão cor-de-rosa, apanhavam os fofos transparentes, que o menor sopro fazia arfar. O forro de seda do corpinho, ligeiramente decotado, apenas debuxava entre a fina gaza os contornos nascentes do gárceo colo; e dentre as nuvens de rendas das mangas só escapava a parte inferior do mais lindo braço.

Era o toque severo do pudor corrigindo a túnica da vestal imolada à admiração ardente das turbas.

Quando Emília sentava-se, abatendo com a mão afilada os rofos da escócia, parecia-me um cisne colhendo as asas à margem do lago, e arrufando as níveas penas. Quando erguia-se e coleava o talhe flexível fazendo tremular as brancas roupagens, lembrava o gracioso mito da beleza, que surgiu mulher da espuma das ondas.

Estive contemplando-a de longe. A multidão de seus adoradores a cercava como de costume, e ela distribuía aos seus prediletos as quadrilhas que pretendia dançar. Pela expressão de júbilo ou de contrariedade dos que voltavam, eu conhecia se tinham sido ou não felizes.

Que interesse tão vivo achava eu nessa observação?

Já compreendeste sem dúvida, Paulo, que essa menina me preocupava a malgrado meu. Pois sabe, que naquele momento tinha inveja dos preferidos; apesar do juramento que eu fizera de nunca dançar com ela depois da desfeita que sofri, cometeria a indignidade de ir suplicar-lhe ainda a graça de uma quadrilha, se não temesse nova e humilhante repulsa.

Livre um instante de sua roda de admiradores, Emília correu a vista pelo salão, e fitou-a em mim com uma persistência incômoda. Ela tinha, quando queria, olhares de uma atração imperiosa e irresistível que cravavam um homem, o prendiam e levavam cativo e submisso a seus pés. Eu resistia contudo; mas ela me sorriu. Então não tive mais consciência de mim; deixei-me embeber naquele sorriso, e fui, cego d'alma que ela me raptara e dos olhos que me deslumbrava.

— D. Emília... — balbuciei cortejando.

Mas que estranha mutação! Sua esplêndida beleza congelou-se. As longas pálpebras erguidas pareciam fixas sobre uns olhos lívidos e mortos. Resvalando pela tez baça, as luzes palejavam-lhe a fronte jaspeada. O talhe de suaves ondulações crispava-se agora com uma rigidez granítica. Senti, aproximando-me, exalar-se dela a frialdade, que envolve como um sudário transparente as estátuas de mármore.

Passei, e tão alheio de mim, que não veria Julinha e D. Matilde ali sentadas, se esta não me advertisse da minha falta.

— Boa-noite, doutor! Que distraído que ele está hoje!

— Perdão, D. Matilde! Como passou?... Ia com efeito, não distraído, mas ofuscado por tanto luxo e formosura. A culpa por conseguinte também lhe cabe, e em grande parte!

— Quando é que o senhor há de perder o costume de ser lisonjeiro?

— Quando a senhora quiser acreditar-me!

D. Matilde começou então a sua revista do baile, que eu escutei, sem ouvir. Emília estava ali perto; eu não a olhava, mas sentia.

— Julinha!... disse ela rindo. Sabes quantas contradanças já me fizeram aceitar? Quinze!..

— Se dançar-se a metade, será muito!

— Não, enganei-me, não foram quinze. Para a terceira não aceitei.

— Por quê? perguntou a prima.

— Guardei esta... para mim... para ficar sentada.

— Que lembrança!

— Depois... Quem sabe?... Talvez me resolva a dançar. Se me pedirem muito!...

Emília sorria dizendo essas palavras, e eu senti a luz de seus olhos ferir-me a vista.

Meus espíritos alvoroçados serenaram como por encanto. Reconheci-me o homem que fui e sou; frio e sempre calmo, durante o sono profundo e longo do coração, o qual até agora felizmente só teve uma, mas bem cruel vigília.

Compreendi tudo; compreendi o olhar, o sorriso e o diálogo. Emília me provocava diretamente para lhe pedir aquela terceira contradança reservada; queria me ver suplicante a seus pés, e vil, apesar da primeira humilhação. Então, quando sua vaidade estivesse saciada, me insultaria de novo do alto de seu orgulho, flagelando-me as faces com um daqueles seus olhares de soberano desprezo.

Minto: eu não tinha compreendido nada. Ainda hoje, depois de tudo quanto sofri, sei eu compreender semelhante mulher?

Desde que entrevi a perfídia da provocação, cobrei a calma. Também tive o meu sorriso desdenhoso e o meu gesto de indiferença. Pedi a D. Matilde justamente a terceira contradança, e ela ma concedeu, apesar de já a ter prometido:

— Farei uma troca! disse-me. Dançarei a quinta com o Dr. Chaves.

Minha intenção foi convencer logo a Emília que ela se iludia. Desejava que não pairasse no seu espírito a mínima esperança de que eu me deixasse imolar ao seu orgulho. Ela bem me entendeu. Seu dente mimoso, mordendo o lábio, anunciou-me a sua cólera e a minha punição.

Esta não tardou muito.

Tinha-me eu retirado do salão, e estivera conversando numa das salas próximas. Dando a música sinal de que o baile ia começar, lembrei-me que Julinha me prometera na véspera a primeira quadrilha e fui-me aproximando.

Creio que viste o antigo Cassino, de feia arquitetura e pobre decoração, porém mais festejado que o moderno, apesar de sua riqueza. Hás de te lembrar das colunas que ali havia. Eu me apoiara a uma delas, esperando que se formassem as quadrilhas.

A fímbria de um vestido roçou por mim. Emília passava pelo braço de uma de suas amigas; passava altiva, desdenhosa, meneando com gestos soberanos a linda cabeça coroada pelas tranças bastas do ondeado cabelo. Fiquei imóvel entre ela e a coluna, acompanhando com a vista, sem querer, o garboso desenvolvimento daquele passo de sílfide.

De repente ela descaiu o corpo no movimento que fazem as senhoras quando sentem presa a cauda do vestido. Com essa inclinação as ondas da escumilha me envolveram os pés. Ouvi o rechino de lençarias que se rasgassem com violência. Empalideci!... Os folhos do elegante vestido, composto com tanto esmero, rojavam espedaçados pelo chão.

Emília retraiu o passo, e abateu uns olhos frios para o estrago do trajo mimoso, que tantos elogios e maior inveja excitara. Depois esbeltou-se para dardejar-me sobranceira outro olhar, mais frio ainda, que me traspassou.

— Nem de propósito!...

Ah! Paulo, se tu ouviras a voz com que me foram ditas estas palavras! O ferro boto não penetra, serrando as carnes, com dor mais intensa, do que deixavam essas palavras rasgando-me os seios d'alma!

Ainda me adiantei exclamando:

— É uma injustiça, minha senhora!...

Por toda resposta, ela curvou-se para colher as orlas espedaçadas do vestido; arrancando uns fragmentos que arrastavam ainda, atirou-os de si; eles vieram cair a meus pés, e eu apanhei-os estupidamente.

Duvidei de mim um momento. Teria eu insensivelmente pisado a fímbria da saia? Mas como, se ficara imóvel, e nem sequer me voltara? Junto de mim não estava outra pessoa; era pois ela própria quem, para não roçar-me passando, rasgara sem querer o seu vestido, e se aproveitara do incidente para mortificar-me.

Podia eu imaginar que ela tivesse por acinte a mim sacrificado deliberadamente sua elegância e os triunfos que lhe prometia o baile, coisas que só ao entusiasmo da primeira paixão sacrificam raras mulheres, as heroínas do amor?

Tocava a contradança: dei o braço a Julinha. Como já me aborrecia esse baile antes de começar!

Não via Emília; procurava-a nas quadrilhas já formadas, quando ela surgiu diante de nós, envolta em sua ampla mantilha cor de cinza, que lhe ocultava todo o corpo e cingia com uma das pontas o colo e parte da cabeça. Estendeu a mão à prima:

— Adeus!

— Que é isso, Mila?

— Vou-me embora. Não vê?

— Ainda o baile nem começou!

— Acha você que estou muito decente? disse abrindo a manta e mostrando a escumilha esgarçada sobre o forro de cetim.

— Que foi isto? Quem lhe pôs nesse estado?

— Quem?... Um pé!...

Já viste alguma vez, Paulo, amesquinhar assim um homem e esmagá-lo com uma palavra?

Emília atribuía a mim o que lhe acontecera; e não achava para designar-me nem o meu nome, nem mesmo a minha qualidade de criatura humana. Era uma coisa, uma parte desprezível do corpo, um pé!

Não sei o que na minha indignação ia responder-lhe, se ela me desse tempo, e não se afastasse rápida.

— Mas isto conserta-se! disse Julinha seguindo-a. Venha cá!

— Não vale a pena. Adeus.

Retirou-se pelo braço do pai, risonha, sem a menor sombra de contrariedade.

Durante o resto da noite fui o alvo dos remoques dos apaixonados de Emília; olhavam-me com a escarninha comiseração que inspirava neles o meu desazo. Por outro lado, as moças pareciam agradecer-me o serviço que lhes prestara com o eclipse da beleza-rainha da noite.

Uma chegou até a dizer-me:

— Ande lá! O senhor o fez de propósito, e agora quer negar!

Não lhe dei resposta.