Dona Guidinha do Poço/I/III

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Entre os retirantes passou um da Serra do Martins, Rio Grande do Norte, com a mulher, seis filhos e dois cunhados, cada um destes com quatro filhos e mulher. Tipo acabralhado, alto, corpulento, de topete caído sobre a testa como crista de peru. Já vinha muito roto o seu chapéu de couro. A camisa e a ceroula já não tinham mais cor.

Ao cair da tarde, arranchado ele com a sua gente em uma casa abandonada, ao pé do alto, perto da trempe de pedras onde fervia o feijão com arroz, recortava de uns tampos de couro cru umas palmilhas para as alpercatas; pois, coitado, as suas estavam roídas e sem correias.

A apregata, aos sertanejos, lhes é tão indispensável como o cachimbo e a faca no quarto.

Olha ela para a catinga, e vê dois cavaleiros apontarem no vaquejador. É raro ao sertanejo deixar de notar as pessoas que topa no caminho, o gado que vê pastando, e por aí além, com presteza e precisão. Lembra o mareante, no seu deserto de águas, a quem igualmente não escapa o menor batel que pinte ao alcance de seus olhos nus.

Firmou a vista:

— Um empanado e um encourado, disse.

De feito, aproximados, reconheceu um homem gordo, com um chapéu de manilha, vestindo brim pardo, botas vermelhas, cavalgando um bom cavalo de sela cardão rodado; e, em seguida, um pajem, mulato novo, ainda moleque, de roupa de couro e amplo matulão na garupa.

Os cavaleiros subiram o alto, foram apear na porta da fazenda. Aí o pajem desencilhou os animais, entregou lanudo matulão de pele de carneiro a uma crioula, despiu a véstia e as perneiras, recolheu os arreios a um quarto contíguo à habitação e saiu puxando o burro e o cavalo, caminho ao rio.

Neste comenos a mulher do rio-grandense chegava-se para este, que voltara a lapear o couro molhado, sentado num pedaço de rochedo que abrolhava fora da terra:

— Toinho, aquele é o Seu Damião.

— Que Damião, mulher?

— O Damião da Imbiratanha, filho da velha Luzia do Quinquim, da cidade de Sousa, que fez uma viagem com você para o Uricuri...

O marido, ligando idéias:

— Ai, home! Apois querem vê que ele é mesmo, minha gente! E nem me conheceu!

— Pois ele havera de lhe reconhecer assim como nós estamos? Vai lá, Toinho, pode ser que até ele nos deixe ficá aqui nas terras dele, inquanto não chove.

— Eu, não, mulher. Não vou me apresentá aos homes assim nesta miséria desgraçada.

— Que é isso? E como nos havemos de arranjá?

— Assim nofragado não me apresento a conhecido, só não sabendo quem é.

— Tu não vai mesmo, não, Toinho?

— Com meus pés não vou não, mulher.

Fez lua nessa noite.

Carolina, que era o nome da retirante, subiu ao alto por junto ao cercado, atravessou o vasto pátio da fazenda, e foi-se chegando para a habitação dos donos. O Quinquim mandara armar rede no alpendre, e aí estava deitado, silencioso, pitando fumo a olhar para o campo suavemente iluminado. Carolina deu-lhe boa-noite, e ficou calada. Depois de um pedaço:

— Vosmicê não é o Seu Damião?

Este, que não era conhecido pelo seu nome senão em Pernambuco e Paraíba, àquela pergunta em que a audácia da mulher pôs um artifício, moveu-se maquinalmente, depondo o cachimbo:

— Sou, sim. Que quer?

— Apois nós somos do Rio Grande... Mas porém... conheço vosmicê desde quando passou lá por casa com meu marido...

— Quem é seu marido? Disse vagarosamente o fazendeiro.

— É o Toinho Silveira.

— O Antônio Silveira? O meu velho arrieiro? Tocava muito bem viola, ninguém encilhava tão bem um cavalo. Que é dele?

— Já largou essa vadiação de viola, anda muito por baixo...

— Ele veio com você?

— Nós estamos no pé do alto, numa casa véia. Penso que Sia Dona mandou nós prá lá...

O fazendeiro, no tédio em que ia mergulhando o seu lar pelas incompatibilidades de natureza, que o tempo já não podia conter, sentia-se tomado por uma saudade da sua província, do seu passado pobre, que agora surdia com um sabor de sonho. Tomou os chinelos de vaqueta, tirou de um torno o chapéu de couro, enfiou a faca no cós, por hábito, e seguiu a rio-grandense.

Aquela família, que tivera o seu gadinho, as suas bestinhas, e hoje a correr mundo com o lar às costas, como ciganos, lhe reaparecia, porém, com as correções de personagens de contos vazados pelo buril da frase meditada. A sua primeira idéia foi convidá-los para permanecerem no Poço da Moita até quando quisessem. Era isto um sentimento de tributo que entendia prestar à sua província, conquanto os retirantes não fossem pernambucanos. E o fez.

No dia seguinte, olha lá implicâncias da Margarida! Mas os senhores do Poço da Moita não batiam boca em suas terras.

A senhora manifestava-se por atos, por gestos, e sobretudo por um certo silêncio, que amargava, que esfolava. Porém desmoralizar escancaradamente ao marido, não era com ela. Disse-lhe apenas:

— Vossa Senhoria quererá construir aqui uma cidade com gente da sua terra?

— Oh, Guidinha! Aquilo são gentes muito boas, o Antônio e a mulher. Aposto que em oito dias ficará mais amiga deles do que mesmo eu.

— É. Mas eu obro mal em socorrer aos retirantes! - e calou-se, agüentando a dentada. Na verdade, ainda na véspera ele havia incriminado de excessiva a liberalidade para com uma canalha ruim como eram aqueles pés de poeira!

Antes de reentrar no seu duro silêncio, Margarida ainda mordeu ao gordão do marido:

— A Guidinha só protege a cabra ruim!

As negras receberam ordem para meter no serviço a gente do tal compadre Silveira: as cunhadas, ao fuso; os cunhados, ao campo, tratar do gado com os vaqueiros; a mulher e as irmãs, que se ocupassem da ninhada. Margarida não tivera filhos, e como os desejasse com a força de suas vontades, tratava sempre bem aos pequenitos e às mães que estavam criando. Não era isso uma sentimentalidade cristã, uma ternura, era o egoísta e cru instinto da maternidade, obrando por simpatia carnal. Quanto ao pai do lote (referia-se ao Antônio), esse que fosse ajudar ao vaqueiro das bestas.

Ordens dadas, o Quinquim referendava. Cada um moralizava o outro, para moralizar-se a si.

Mas em pouco tempo tornou-se aquela implicância da senhora em aberta proteção aos Silveiras, cuja boa conduta a chamara ao rego, paulatinamente.