Dona Guidinha do Poço/I/VII
Mal o Secundino ia-se erguendo, apresenta-se-lhe, coçando a carapinha, um moleque a dizer-lhe:
— Eu vim aqui qui a Senhora mandou pra acompanhá Vosmicê e servi no que for preciso.
— Ah, é o Anselmo? disse a Carolina. Como estão todos lá, Anselmo?
O Anselmo respondeu pausadamente que tava tudo bom.
O vento, dando-lhe na fralda da camisa, patenteava as canelas finas do cabrinha.
— Pois vamos, Senhor Anselmo. Tenho muito prazer em acompanhado por Sua Senhoria.
— Unh! fez a Carolina. Olhe lá o Anselmo! Já tem senhoria!
E para o Secundino:
— É um molequinho bem ensinado e tem cadência para tudo, como poucos meninos brancos. Fez um calunga com canivete, que fazia gosto.
O Silveira explicou bem o caminho e o banho do Secundino. Não o acompanhava porque ia ter com Seá Dona, que desna d'onte qui queria que ele fosse pegá um jumento po lote... A criação de burro tava tendo munto apreço, qui burro é bicho bom pa carga e fácio pro penso... Ele esperava vir a ser o vaqueiro das bestas pruque o qui estava ia largá...
E, virando-se para o moleque:
— Leva ele ao poço do Meio, que é onde o banho está mió...
Afastaram-se. A Carolina ainda gritou para o moço:
— Olhe! Non se esqueça de fazer o Pelo sinal... Antes de se meter nágua! Vosmicês quando ficam homens não se importam mais com reza!
E o Secundino, já longe, palmeando com vagar por debaixo das umarizeiras:
— Senhora, sim! Eu sou bom cristão!
Caminharam um pedaço silenciosos. Um vento brando acamava de leve a pastagem, crescida com abundância. A proximidade do rio trazia uma confusão musical de marulho, de pios de ave, de sussurro da aragem. Desceram a ribanceira de salão, um barro salgado, cor de cimento, que se desfazia em pó finíssimo. Ao pisarem no saibro do leito, um gavião piou no olho de uma árvore, e o Secundino com a gana do caçador exclamou, pesaroso:
— Ah, diabo! Se eu tivesse trazido a minha lazarina...
Atravessaram o saibro, e o caminho se estreitou entre duas moitas. Adiante, ainda saibro.
— Qu'é d'água! Onde fica o poço?
— Pur aqui o rio só bate na enchente. A gente passa aquela vereda e dá logo no rio. Tá vendo aquela garça no oio daquela canafista? Apois é acolá.
Efetivamente o caminho adiante enveredava, cortando outra moita. O moço ia enxuto; quase não caía orvalho que o molhasse. Os galhos do mato batiam-lhe nas pernas sem despejar uma gota; os tamancos haviam apenas calcado na umidade de alguns trechos de lama velha, no almargeal.
Ele sentia-se bem disposto.
— Que idade tens? perguntou ao moleque, para desopilar.
A Senhora dizia que nove anos. Nascera pela missão de Frei Serafim.
Aqui, o moço foi puxando um diálogo, falante que era o cabrinha.
A Dona Guidinha tinha filhos?
Que não, que a Senhora não tinha fio ninhum; o Sinhô é que tinha dois fio apanhado, que moravam na Goiabera e eram já home.
A senhora gostava deles?
Se gostava? Não sabia.
Era ruim para eles?
Inhor, não; era até munto boa.
Como se chamavam eles?
Um, o mais véio, qui era zanoio, chamava-se André Virino; o outro, o mais moço, qui fazia carro e trabaiava de urive e de carapina, se chamava Zé Tomais. Este bebia...
A Senhora era boa para os escravos?
Inhor, sim, mas às vez usava de barbaridade, às vez era muito rispe. Gostava munto de guardá rixa. Quando tinha raiva era capais de matá... Ele havia levado ũa vez ũa surra qui ela deu qui ficou cas costa ferida. Mas tirante disso, era boa dimais.
E para o Senhor?
Pra o Sinhô? Achava que sim. Mais as nega às vea dizium qui eles tavam mau. Ti Jaquim rifiria qui a Senhora era cuma cavalo cacete, qui tem sinau incoberto.
Era muito rica?
Diz qui munto.
Possuía muito ouro?
Diz qui munto.
Muita prata?
Inhor, sim. Cuieres, copo, bacia, jarro... Mais tava tudo cage sempre trancado, só butava pra fora dia de festa...
Haviam chegado ao poço do Meio. A areia estava úmida, em alguns pontos ensopada.
— A gente tira a roupa é ali naqueles pés de gerimataia.
Secundino respirou. O ambiente era de uma frescura alentadora. Sentou-se à sombra cariciosa dos ramos. Com pouco entrou a despir-se, vagarosamente. Como numa tela, assim no grande silêncio da natureza o chilreio dos pássaros, os rumores do vento e da água, pintavam-se em harmonioso conluio. O rio não cortara ainda. Em branda correnteza metia-se pelo poço adentro, e adiante saía murmurando, espalhado por entre os blocos de um lajedo.
O moleque recusou banhar-se.
— Tens vergonha, rapaz?
— Inhor, não. Eu vou é pegar piaba.
E enquanto o moço matava a sede da pele a remexer-se nágua como um pato, o molequinho, de camisa enrolada na cintura, pescava com a mão as piabas que tangia para os buracos da rocha, poço abaixo.