Dona Guidinha do Poço/II/I

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A velha Corumba, com a sua pele engelhada e limpa de lavadeira, levantou os braços a arriou a trouxa de roupa em cima da mesa, na sala de jantar.

— Sinhazinha, tá qui a roupa.

Soprava de satisfação e assentava os magros quadris em um banco, enquanto a Senhora não vinha.

Ife! Era muito melhor quando estavam na vila! O rio lá era espraiado e pelo caminho não se andava aos trancos e barrancos como ali na fazenda, e mó de que lá a roupa corava melhor. Diabo de caminho desgraçado! gente chega i aos boléus. Tomara que os senhores fossem para a vila no mês de São João.

— Não irão, não, Seá Dona Anginha?

Esta, que acabava de enrolar as Horas Marianas na sua capa de couro, dando um nó na respectiva correia, virou-se para a velha escrava com os quatro vidros que entolhavam os bugalhinhos dos seus setenta e tantos anos a luzirem entre as pestanas sarapinguentas:

— É só o que vocês querem! É a fonção de ir pra vila, mó de viverem lá na folia com as suas pareceras!

— E apois então, minha rica branca? A gente também não há de pricurá suas melhoria? Só branco é que é fi de Deus? Apois Vosmicê era inté mais a favô dos nego, o qual não é agora. Óie que Vosmicê tá ficando pos nego...

— Não olhas tua Senhora que aí vem, não? Põe-te com trelas...

Guida, subindo do quintal com umas flores na mão, arrastava os pés pela varanda como se fora num extenso capacho, para limpar a sola dos chinelos.

— Vieste cedo, Corumba. Esta roupa estará bem lavada? Ora, ainda tem sol lá fora... Hem?

— A roupa está boa, Sinhazinha. Vim cedo pruque fui cedo, e pruque o sóu tava bom.

— Desamarra enquanto eu vou botar estas flores no pé do Senhor Santo Antônio.

A preta desatou os nós da trouxa, e as peças desagregaram-se para os lados. Entrou a separá-las, dobrando-as. Quando a Senhora veio, fez apenas conferir com o rol, que era escrito em uma coluna vertical, numa tabuinha, designando o número de peças mediante uns tornos que enfiavam nuns buraquinhos. A roupa estava cheirando muito a sabão; a Corumba tinha aferventado o serviço.

— Você meteu-se no gole, Corumba. Não me importa que enxugue lá o seu copo, mas perca esse costume de alinhavar tudo. Oh!...

— O quê, Sinhazinha?

— Como é que hei de mandar isto assim para o moço? Isto algum dia foi lá camisa lavada? E este colete? Pois a roupa dele até ia limpa...

— O quê? Limpa? Credo, Sinhazinha! Se não fosse de branco, eu dizia que fedia a bodum.

— Isso era o que vinha abafado na mala.

— Inhora, não! A que ele trouxe na mala eu já lavei que tempo! Já ele deve ter xujado de novo outra vez. Eu vou dizê pruque é que Vosmicê tá achando esse cheiro: é mó do sabão.

— Pois tenha mais cuidado com o sabão.

— Não fui eu que fiz, foi Guida. Um sabão mau feito, que agruda nas mãos... Ô muié porcaiona!

— Pois eu não quero que isto aconteça outra vez. Você é que me responde. Olhe, venha cá: diga ao Naiú que ele amanhã bem cedinho tem de ir para a vila, levar esta roupa de Seu Secundino.

— Inhora, sim. Vigi, Sinhazinha! Sinhazinha me dê um fuminho: o que eu tenho é um bazé tão ruim!... Onte eu fumei foia de mato. Tenha pena da nega véia...

— Eu logo vi, pidona, que tu havias de vir com as tuas choradeiras. Anda ver.

E foram as duas pelo corredor.

De manhãzinha, lá se foi o Naiú, balaco! balaco! montado no meio da carga de malas de couro cru. A roupa não dava para fazer peso: era pouquinha.

Encontrou o Secundino sentado em uma cadeira, à porta da loja, conversando com outros. Entregou-lhe a roupa com um bilhete. O moço leu isto:

"Poço da Moita, 12 de abril de 18...

Secundino

Como é que vai na sua loja? Tem gostado da Vila? Nós vamos todos com saúde, graças a Deus, apesar de que já estou me enfadando desta vida de fazenda muito sem jeito, eu estou cansada d dizer ao Quim que era melhor ele tornar a abrir negócio aí e então podia até fazer sociedade com você, não achava bom? Vai 20 mil-réis para você me mandar uns cortes de chita de 8 varas e 2 xales, se não chegar mande dizer quanto falta.

Se a roupa não estiver de seu gosto desculpe que a culpa é da Corumba, mas também a pobre negra velha é só quem sabe lavar quando quer, mas se queixou que o sabão estava mal feito.

Sua criada e parenta que lhe estima,

Margarida."

O rapaz pensou um pouco. Que diabo de padrões ia mandar? E quantos cortes? Não dizia nem ao menos a cor!

— Ela não te disse como é essa chita que ela quer?

— Não disse, não.

— E a cor dos xales. É com flores, ou...

— Ela não me explicou nada, não. Não me dixe nada. Dixe só que trouxesse a roupa e este papéu e entregasse na mão de Vosmicê.

— Como diabo eu arranjo isto!

Regulou-se pelo seu gosto dele, e meteu a tesoura.

Despachou o portador, depois que este andou executando outros mandados que trazia.

— Vosmicê não arresponde o biete?

— Não. A resposta é isto que aí vai, a chita e os xales.

— É pano munto! - disse o cabrocha a arrumar na mala as encomendas. Quero vê se ela non mi dá üas calça por São João... Eu sei que isto é pos outo...

Secundino estava apreciando muito a vila. Morava no pátio da matriz, numa esquina, defronte do sobrado do Juiz de Direito, onde aparecia com certa insistência à janela uma filha deste, chamada Eulália, que designavam familiarmente por Lalá, e por Lalinha. Estava sendo muito visitado. Pudera não! sobrinho de Dona Guidinha...

Um dos primeiros a ir cumprir com esse dever de humanidade e de civilidade foi o reverendo vigário da freguesia, o Padre João Franco, excelente ancião, pai de família, sacerdote patriarcal desse bom tempo em que a província não tinha bispo ainda que bispasse. No meio da conversa, disse ao moço que o estava considerando cajazeirense, porque quem bebia água do riacho da Dona Maria e se banhava no poço do Gregório, não tinha mais que ver, ficava naturalizado dali. E que não esquecesse nos seus lucros ir reservando uma quotazinha para dar uma esmola para as obras da matriz.

— E a matriz não está feita? Não há aqui três boas igrejas?

— É, o povo é muito cristão, mas a matriz de uma demão ainda precisa, pois há alguma coisa por acabar, e sobretudo por melhorar, por exemplo, assoalhar...

— Assoalhar, está direito. O tijolo é feio, porco e estraga os vestidos das senhoras.

— Exatamente.

— E de que tempo é essa igreja?

— É do tempo em que o Ceará pertencia à capitania de Pernambuco. Leio-lhe bem os assentamentos. Em 1730, o alferes português Francisco Manuel endereçou ao bispo de Olinda, creio que D. José Fialho, uma petição em que ele e o mais povo, moradores no Boqueirão, pediam que lhes fosse concedida licença para poderem erigir uma capela no dito lugar. Traziam os peticionários por frente a alegação de estarem distantes de sua matriz espaço de trinta léguas, e por isso não lhes era dado satisfazer os preceitos de ouvir missa, nem mesmo em outra capela, porque a de Nossa Senhora da Conceição do Banabuiú, que era a mais próxima, distava espaço de vinte léguas. Argumentavam mais que havia bastante concurso de moradores, e de outros que de novo se iam situando. O fundador oferecia o patrimônio de meia légua de terra com trinta vacas cituadas, porém seria nomeado administrador, que o foi. Em setembro de 1732, benzia-se a capela. Vinte anos mais tarde o piedoso português, já promovido ao grau de capitão de ordenanças, fez requerimento ao vigário da vara encomendada da freguesia de Nossa Senhora das Neves da cidade da Paraíba, Dr. José de Aranha, visitador dos sertões do Norte: que, como a primeira capela se achava arruinada, pretendia para melhormente servir adeos erigir nova, e visto como a primeira se achava patrimoniada, pedia licença etc. Foi benta e novamente ereta sete anos depois, já sendo matriz. Daí reedificada por 1789...

— Até hoje, porque é essa a data que lá vi na porta principal.

— Exatamente.

— E com isso fica provado que, nesta localidade, o altar precedeu 59 ao pelourinho, mais de meio século pelo menos, combinado o seu propósito com o que li lá no Poço da Moita nos canhenhos do Padre Costinha...

— Exatamente. O Reverendo Costinha tinha muito gosto pela crônica. Ainda o alcancei. Arengava muito com a irmã, a Dona Anginha, por amor de datas. Ela por seu lado é birrenta como nunca vi.

— Mas é boa alma.

— E a Senhora Dona Guidinha? Que coração! Tem um defeitozinho, por amor da educação que o pai lhe deu, mas...

— O que eu digo é que acho que meu tio Joaquim fez um casamento magnífico, sem me referir à riqueza dela, que é coisa para mim que não tem apreço.

— Lá isso, não: a pobreza faz preto ao branco. É que o senhor nunca soube o que é ser pobre.

— Eu? Está bem servido!

— Se tivesse passado como eu, quando me ordenei logo, só com uma batina no corpo, algibeira vazia, com irmã e mãe para sustentar... Felizmente Deus me ajudou. Me deram esta freguesia, que sempre rendia alguma coisa, e hoje tenho o meu vintenzinho para as precisões, graças a Maria Santíssima.

Ao despedir-se, o reverendo fez cumprimentos meio rasgados: estimava muito em conhecer ao Secundino, e que se fosse logo naturalizando bom cajazeirense.

— De quatro costados! obtemperou o pernambucano.