Dona Guidinha do Poço/III/I
Sim, senhor, passou-se, passou-se. Princípios de junho. Deu uma garoa ali pelas nove horas da manhã e as vacas, muito açodadas, ao meio-dia, sobem ao pátio a chamar pelos bezerros, que já era tempo de verem voltar com suas crias.
A Guida, depois de estar muito tempo olhando para o sertão, diz para o marido:
— Ó Seu Quim, você não acha bom fazer-se uma vaquejada boa com muito vaqueiro?
— E quedê lo gado? Já se foram os tempos de fazendas de mil cabeças. Todo mundo sabe hoje o gado que tem, e conhece rês por rês.
— Não, Senhor, é preciso fazer-se. É um divertimento que você dá pela soltura do seu sobrinho. O pobre rapaz chegou, pensava ser recebido em festas, e achou tudo tão frio... Seu Quim, preze melhor o seu sangue! Deve-se fazer a vaquejada, já mais quando é preciso dar um divertimento à vaqueirama. Se os ricos não derem, quem dá? Deixe lá, home, cada qual quer ter o seu dia de regalo. Os pobres coitados dos vaqueiros passam labutando demais; é preciso uma vadiação boa.
Enfim murmurava o outro, ainda em dúvida, que ia conversar com eles.
— Seu Quim, você tome o caso no sério, não se ponha com paleios. - E pôs-se como a calcular, de mão no queixo, correndo a vista pelos sertões além.
Por alto aparecia, aqui e acolá, o pasto amadurecido, com pontos estéreis, tisnando um pouco a paisagem. Nos terrenos mais magros notavam-se manchas roxas no amarelamento do mato zarolho: era o lenho das matas mortas pelos grandes verões anteriores, que a rama dos outros ia descobrindo. O chão começava a empardecer. A grama não se alegrava mais com o orvalho. Onde existia mais vitalidade, a vegetação oferecia um amálgama de infinidade de manchas, do amarelo ao verde: aqui um grande esfarinhado de açafroa, ali um bloco imenso de esmeralda, acolá um fervido, uma espuma como d uma porção de tintas diversas. A impressão geral era entre louro e fulvo, cor de coati, ou barba de negro quando vai caindo em idade.
Era sensível o amadurecimento da selva. Ia-se como perdendo a lembrança do inverno com o seus oceano de verdura. Tinha sua beleza aquela quadra do ano.
A notícia da vaquejada, em tal dia, nos Tabuleiros do Padre, espalhou-se por aqueles sítios, um horror de léguas em torno. A Guidinha não convidou ninguém diretamente, o que não deixou de ser reparado; explicava que iam apenas fazer uma comparação mó da gente não se esquecer de todo dos tempos passados. Particularmente interessada na função, adiantava-se ao marido em andar combinando com a vaqueirama pelas fazendas e com os outros fazendeiros, e assim cavalgava por aqui e acolá, alegre e bondadosa para toda aquela gente.
Passou na Goiabeira, mandou o pajem gritar pelo Secundino, que estava lá para dentro:
— Ô de casa!
— Ô de fora! - respondia o fazendeiro, que pouco depois aparecia em ceroulas e tamancos. Vendo, porém, uma senhora, recuou para voltar de calça azul de brim e paletó de alpaca.
— Boa vida, hem, meu amiguinho? Dormir, hem? disse-lhe a Guida com brandura.
O moço pondo as mãos nos umbrais da porta:
— Nem tanto, é que eu tenho andado moído... ainda da viagem.
— Moído, hem? - frisou a mulher com malícia. É, mói, eu ouvi dizer que mói...
— O quê?! - admirou ele. Mas empalideceu, lembrando-se que realmente no lugar Moinho, dali a uma légua, havia umas de quem se não dizia mui boas coisas:
— Varro a testada! Não é com essa. Tenho andado é um pouco febril, e com fastio...
— É, o senhor deve andar mesmo farto.
Aqui, Margarida não deu mais trela. Com uma cara de réu, deu de rédeas a galope.
— Diga, ao menos, até loguinho, minha tia! gritou o rapaz.
Mulher grosseira! continuou ele consigo. Coração de ouro! Naturalmente vinha falar-lhe sobre os arranjos da vaquejada. Já gastou um dinheirão com selas novas para o cabreiro.
— Ah, geniozinho! Também a culpa é minha... Se há tantos dias não vou ao Poço!
No dia seguinte montou a cavalo e foi.
Lá em seus momentos lúcidos ou negros, o mancebo procurava carregar a imagem de Margarida com os traços mais repelentes. Na verdade, que de pior? Uma sujeita casada com um homem que era um anjo de bondade, sério, que lhe zelava o cabedal de fortuna, e sadio, sem mau hálito, sem vícios, e que era homem só para ela... Que diabo! Não fazer mistério dos seus desejos a um rapaz que não se julgava nem esses vigores, nem essas bonitezas... Decerto não seria ele, Secundino, o primeiro! Porque mais de seus trinta de idade já ela gramara no costado, e esses apetites não deviam de ser acidentais pela natureza das coisas. Má essência, a Guida era má essência. Margarida não valia sacrifício.
Mas ali ele estava tão bem! Fazendeiro, senhor, amo, quem sabe o que o futuro lhe reservava? Não se diz que Deus escreve direito por linhas tortas? Daquele crime contra a moral e a honra não poderia resultar uma ventura? Sabia Deus se ele não viria a ser chefe de partido, sucessor do tio, que ninguém era imortal, como este o fora do sogro, do dinheiroso e afamado Reginaldo?
E assim, apeou radiante no terreiro do Poço da Moita.
Pois o rapaz não ficou com uma certa ojeriza porque a Lalinha estava à porta com os braços abertos em cruz (que agouro!), quando ele tornava à Guida, depois daquela visita arrebatada e estúpida em que a matrona lhe varejou mais uma vez nas ventas, como caixa de marimbondos, com a cabeça dos ruins desejos? De fato, a Lalinha estava passando uns dias no Poço, e no momento em que Secundino aparecia no vaquejador, pelo Nascente, chegava ela à porta, como por um impulso íntimo, e aí ficou alongando o meio olhar pelo sertão além.
— Vejam como as coisas pegam! pensou ele, analisando-se. Eu, um sujeito tão livre de abusos, já tenho cisma!
Entretanto, não era cisma, era pressentimento, essa coisa que equivale ao augúrio dos antigos quando liam no vôo dos corvos.
Margarida, conhecendo pelo faro o coração humano, essa parte que toca a sensualidade genésica, dera voltas ao rodo, e havia misturado de novo e em boa paz as relações do sobrinho afim com a família do Juiz de Direito. Preferia sempre ter a rival debaixo da vista.
Lalinha não desconfiava, cega com o gozo de ao menos ver livremente ao amado. Ver! Ah, olhos!
Um irmão, rapazote, orçando pelos dezesseis anos, já com a face encardida pelas peraltices, é que viera buscá-la.
A irmã pôs-lhe a mão no ombro, e ele a sungou para cima da sela. O Secundino reparou bem quando ela calcou com o pé direito sobre a mão do menino, no ato de suspender-se, muito cautelosa para que a saia de montaria ficasse bem arranjada, bem jeitosa, encobrindo bem.
Delicioso, meu Deus, vê-la assim a cavalo! gostava o moço. Como os olhos se deixam excitar pelas dobras de uma fazenda! A montaria, de cintura adelgaçada, envolvia com tanto cuidado aquela carne encantada, que a sensação como que passava da vista para o olfato e para os ouvidos, e o pobre namorado ruía entontecido, sentia-se fulminado, sobretudo vendo dizer adeus àquele serafim o demo da Guida. A Lalinha, esbelta sobre a sela, como a ave que apenas pousa, era toda uma volúpia, e a outra, com o seu vestido atarracado e a sua carne de mulherona lhe fez nojo a ele.
E foi a menina caminho por aí fora.
Começava a matizar-se o fresco verdor dos matos.
Iam declinando a nívea inflorescência do pau-branco, o amarelo quente das flores das malvas, e como que se iam desfazendo, dia a dia, aqueles pingos roxos, aquelas gotas azuis, aquelas miríades de corolas derramadas no folhiço virente, que pareciam borbulhar com as alegrias do passarado, de moita em moita, de bosque em bosque.
A crista do serrote longínquo esgalha os primeiros lenhos que se erguem. Aqui e acolá as copas resistentes, que o sol e o vento não depenam, o juá, o umari, a canafístula, agora enverdecem mais que no inverno.
Lalinha devia alcançar a vila já com lua. O irmão a seguia sem largar palavra. A bem dizer só adiante, ao aspecto solene e taciturno da tarde sertaneja, entre asperezas de rocha e afagos de verdura, sob um céu imenso, onde o sol campava com a liberdade e domínio de um touro, ela, pequenininha, desprotegida, tão de creme, tão vaporosa, chorava dentro da alma. Que diferente o viver de hoje dos seus bons tempos da Capital! As delícias do inverno sertanejo não afrouxaram o constrangimento que o seu espírito delicado curtia em meio de umas gentes semibárbaras assim. Quantas vezes não tivera de ver a sua suscetibilidade ralada, como entre pedras, por aqueles bichos de matutos! Matuto e praciano, cada qual tinha o seu modo de ver, de entender, de raciocinar, a sua linguagem, o seu pensamento. No jogo diário dos negócios e dos interesses desaparecia aquele atrativo que revestia o camponês, desnudava-se o tipo achavascado e mascavo do rústico, o homem em rama.
Em semelhante isolamento moral topara Lalinha com o Secundino. Criou-lhe amor, atrás de simpatia. Julgou procurar alívio, achou um pertinaz mal-estar.
Vivia, por assim dizer, na Natureza, na ave que passa, no mato que adorna o pó, na nuvem, no azul que se doira de astros, com as efusões daquele seu olhar que gerava todo o seu donaire, que buscava a luz, como o da criança, como rebento que, nascido na sombra, persegue a primeira brecha de claridade.
Gostava muito da igreja. Rezar diante dos santos, daqueles mantos dourados, daquelas fisionomias luzentes sob os resplandores em cauda de pavão, não distraía tanto o pensamento, os olhos da alma pelos da carne; ao passo que a oração, sem ter-se a vista nas Imagens, puxava muito pela mente, o sentido estando sempre a esvoaçar para as coisas mundanas.
Como o Vigário lhe queria bem!
Mas não se confessava muito a miúdo nem se usava isto por aquele tempo. O que se buscava da criança não era a salvação, talvez, sim o pasto para a sua seita.
Uma crente gulosa, entendida, gastrônoma, aproveitando os menores acepipes para o seu gozo.
Em geral o cristão sertanejo, o que vai ver aos domingos e dias santos é a missa, não quer saber de mais nada. O padre não pode pregar, ler no púlpito uma excelente obra; o fiel matuto o que quer é despachar-se do Mandamento. O sermão do Vigário não serve, só o dos santos missionários que andam pelo mundo. Lalinha, não; esta não perdia a mínima exterioridade. Um manual não é nada, é um livrinho monótono com umas vinhetas chilras; na mão dela, porém, aberto para ela, e o terço, debulhado entre o retroz da sua luva, na excitação da atitude e do momento, eram-lhe de um prazer semelhante ao supremo gozo que dá um vício.