Dona Guidinha do Poço/IV/II

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Ali ao pôr-do-sol, o Néu arriou no terreiro duas cargas de malas, que tinham ido para o Vavaú, uma com umas vendinhas da mãe, a saber: garapa de babão, queijo de cabra, fumo e lingüiças; e a outra, sua, que levava impando de melancias. Atrás, vinha ela, a Mercês, com um filho no quarto, encoberto pelo xale novo, mó do sol, e seguida por mais três meninas:

— Anda depressa, menina! - ralhava para a mais ronceira.

O Seu Antônio, que não retirava o pé da fazenda desde que implicou com o Silveira, os recebeu alegre à porta.

— Pegue esta criança, home! Que eu já venho cansada demais, disse-lhe a mulher, soprando de fadiga.

— Divirtiram-se bem? Na verdade parece que não queriam mais vir. Foi bom, hem, minha fia?

— Aproveitando o negocinho, home! explicava a Mercês. Apois nós havera de voltá ainda cas malas cheias? Veja lá cuma vendemo cage tudo.

— E as tuas melancias, Néu? Reputaram bem?

— Inhor, sim. As mais baratas fôrum pur trê gintém. O povo mó que tava ca língua seca de sede... Non havia garapa, nem cana, nem melancia qui chegasse po povão.

Depois, olhando insensivelmente para o caminho por onde vieram:

— M'pai? Ói p'acolá... Lá vem gente.

A Mercês assentara numa das cangalhas, para descansar, e tomar um folegozinho antes de ir para dentro. Atentaram todos para o caminho.

— Espere! Por mó de que só vem um home e ũa muié? E quedê lo Seu Majó?

— É o quê, menino? Hão de vi três pessoas para mais.

— M'pai, repare.

Um dos pequenos chorava, queixando-se de uma estrepada no pé. A mãe ralhava: bem dissera que não fosse. Pra que foi? Só queriam viver amarrados na saia dela! O pai o conduziu para o interior, a fim de lavar-lhe o pezinho com aguardente, que ia mandar comprar do Silveira.

Tinha razão o Néu. Com pouco riscava, de feito, no alpendre da vivenda, a Guida, com a sua chapelina cheia de fitas, e o Secundino, de russianas, chapéu do Chile e correntão.

O Seu Antônio ficou pensando que o Major ficara atrás. Foi para os amos, com o filho, para servi-los no apear, e no mais.

A Guida gritava para dentro:

— Luísa! Naiú! Qual Naiú, qual nada! Anda tudo no mundo. Não se pode arredar o pé de casa. Naiú? Cadê esses negros?

— Cumade, deixe os nego, qui também são cristão. Tamos aqui nós.

As gentes apearam, entraram, conversaram, e nada de Seu Quim.

O vaqueiro não resistiu mais:

— Adonde ficou o Cumpade Quim, Cumade Guidinha?

— Foi com o Vigário para a vila, compadre.

O campônio balançou com a cabeça, franzindo os beiços com enjôo:

— Está bom, já eles pegam outra vez co diacho da política! E depois de uma pausa:

— O cavalo de Seu Secundino fica selado, ou eu solto?

Ninguém pareceu ouvir. Repetiu a pergunta.

— Solte - disse o moço, - que eu não vou mais hoje à Goiabeira, não. Estou muito afadigado.

O vaqueiro, tirando o cabresto ao animal:

— Quem vai à festa, meu Sinhozinho... H'alo!

E estalou o cabresto no ar:

— H'alo! Vai pro pasto, ca'lo!

Passaram o povo do Silveira e outros moradores, todos recolhendo da folgança, bem como o Naiú, a Luísa, a Corumba, e demais negrada. Em casa ficara só a Maria Velha, cozinheira, resmungando e comendo.

Guida mandou apressar a ceia, para ir logo descansar os ossos na sua rede.

Fecharam-se as portas cedo, no cansaço geral de nove dias de vai e vem.

O Seu Antônio, descansadinho de seu, esse ficou no seu terreiro até mais tarde, sem sono, de tição e cachimbo, acocorado sobre um toro de pau, apreciando a frescata que lhe trazia o vento.

Era o quarto crescente, e a lua, pendida para os serrotes do Papagaio e Batista, no céu varrido pela ventania, atravessava nuvens e nuvens brancas e céleres. O caminho do Vavaú, que vinha enforquilhar perto de casa com o de Cajazeiras, aparecia além, no pau-brancal meio desfolhado, ao luar claro como dia. O vaqueiro não tirava o Major da imaginação. Seus olhos só queriam ver o patrão no seu cavalo gordo, paco-paco, do Vavaú para a vila com o Vigário.

— Home véio bobo, meu Deus, refletia o campônio, apois chega non querê largá a danada política! Mode que non viu o inzempro das inleições de dezembro. Credo! Triste fado o destes homes ricos, qui non vejo precisão de se meterem em semelhantes cipoais.

Os cães ladreram para o caminho do Vavaú, e Seu Antônio notou que por ele vinha um vulto a cavalo. O vulto adiantava-se. Seu Antônio conheceu que era um vaqueiro, e disse de si consigo:

— Home, aquele mó que é dos que dão um vintém pra não entrá e um boi pra não saí? Aí no duro!

O cavaleiro apresentou-se. Era o Torém.

Parou no terreiro do camarada:

— Boas-noites, S'Ontônio. Mande-me cá um tiquim d'água, por seu favô.

— Deus dê as mesmas. Tu agora é qui vem, home?

O outro olhou para o céu, avaliando as horas:

— Mode que as dez já se foram?

— Estamos nelas, meu amiguinho. Veja a que hora um vaqueiro vem de novena! Aquela Goiabeira vai na mesma regra. O vaqueiro no samba, e o patrão...

O Torém, apeando com preguiça, ao ranger do couro da perneira nova:

— Já passou?

— Tá i dormindo. Dixe que hoje ficava aqui no Poço, pruque vinha muito cansado.

E com vagar, sentando-se ao pé do Antônio, o Torém tirava o cachimbo da perneira. Botou-lhe o fumo. Entrava em nova conversa, com uma fala visivelmente comovida:

— Mas, meu camarada, você raia comigo porque me arrecoio tarde?... Eu tive motivo pra isso...

— Qualo foi, meu amigo? Foi algum sarrabuio mó das cunhãs?

— Foi um assassinato. O Lulu Venanço matou a muié.

— Virge! Mó de quê, home? Que desgraçado! - exclamou, erguendo-se presto, o honrado vaquiano.

— Mó de ciúme. Outros dizim que ele pegou ela em fragantes.

— Cuma foi isso?! Conta lá tudo...

— Nós tava num sambinha, im casa do Jom Bodoque, ali de-jun daquele marmeleral do canto do sítio do Seu Capitão Miguelzinho...

— Sei bem onde é. Tem até uns marmeleros muito bons pra cerca de caiçara...

— Você sabe que a bodega do Jom Bodoque tem assim um balcão de taipa, e pô detrás, ũa prateleira de tábua de caxão cuas garrafas, loiça e coisas de venda...

— Dizim inté que ele tem ajuntado seu vintém ali naquela bera de estrada, acrescentou o Antônio.

— Entonce, tavam lá arranchado uns comboieros que tinham arrumado o eito, assim pua banda, ia porção de surrão de mio, que fazia assim mod'um escuro. Aí diz que virum a muié do Venanço non sei cum quem, cuas partes de tomá bebida, enquanto o povo no terreno apreciava um cantadô de fama, qui era um dos comboiero donos do mio. É verdade que eu vi ele vendendo, apois tinha muita confiança co Jom Bodoque e a famia...

— Tá meio veiaco isso, mais vamo lá.

— Vamo lá pra donde? A coisa é esta mesma. Quando viu-se foi os gritos da pobe e aquele home correndo po marmelero...

— Veja em que dão os tais interro dos osso... Dão in interro devera! Tome esse inzempro, Seu Torém! Festa, a gente cumpareceu, fez ali o seu dançadozinho, e boa romaria quem em sua casa está im paz... Té loguinho!

— Mais entonce, continuou o outro no fio da narração, a pobe ainda chegou a corrê, toda ensangüentada, ca facada no peito, gritando que Seu Jonzinho lhe acudisse... Mais, porém, pouco aturou...

— Deus lhe fale nalma, pobe infeliz! Se teve crime, Deus lhe perdoe. Mais também, se teve, o Venanço fez o que quaqué um fazia no seu lugá... E qui é dele?

— O Venanço? O povo do samba arrancou a bem dizê todo atrás dele, eu só via gritá: Pega o cabra!...

— E pegárum?

— Qual nada! Parece que a terra se abriu com ele. Mó que aquilo era o Cão, não era criatura humana, não, Sinhô.

O velho vaqueiro entrou a fazer ponderações a respeito da gente de então. No tempo dele... Ora, no tempo dele havia outras capacidades e considerações. Não vê que quaisqué se astrevia a mexê ca muié do outo! Ói lá o bacamarte, pah! puh! e adeus, minhas encomendas! Qual crime o que, lavá a honra non era crime. Mais hoje em dia está tudo diz que aperfeiçoado... Tibe! Arrenegava de semelhantes melhorias.

Daí o Torém, quase em cochicho, pela paridade dos ossos:

— Mais, S'Ontonho, me diga ũa coisa, que eu guardo o maió sigilo, aqui sobre os nossos amos. Terá fundamento o que já andam murmurando por aí?

O outro continuava batendo com a cabeça do cachimbo para limpar a cinza.

O luar banhava-lhe os cabelos e a barba, luzindo a pequena calva sobre o meio-escuro dos olhos. Mirou grave e atento para o interlocutor, e, querendo cortar a conversa, como se tivera feito à consciência uma consulta rápida:

— Meu fio, respondeu, não julgues o bom por bom nem o mau por mau, que antes absolvê um culpado do que condená um inocente. Eu non meto a mão no fogo por Pedo nem Paulo; mais, porém, de minha parte non posso jurá nem que sim nem que não, o que está no coração só Deus é quem sabe, pesá de que nada se faz no escuro que não suba ao teiado... Acho mió qui tu não cuide nestas coisa, te importa só co gado alheio pur que tu arrespondes, que o tempo é pouco pas obrigações. Deixa lá o mundo co seu falaço.

O Torém não rebateu a sensatez do amigo, antes concordou:

— Tem razão, S'Ontonho, tem razão. Eu não vou dá contas a Deus pur eles...

— A-q-u-i, aqui, meu Sinhozinho.

— E com essa, vou-me chegando.

O Antônio ergueu-se, para recolher-se também. Apertou a mão ao colega e se despediram. Com Deus amanhecesse. Viu-o desaparecer, finalmente, no luar, ao chouto do cavalo de campo.

— Deus te conserve! Deus te conserve! murmurava em voz baixa, com ar de satisfação, por ver que o seu protegido não desmentia a opinião que dele havia dado.

Calculou que horas seriam, e entrou.

A mulher estava logo ali, sentada num mocho, como se quisesse falar-lhe coisa importante.

Duas vezes, com efeito, havia ela tratado ao marido a respeito do apego da Guida; não se conformava com a sua opinião. Agora mesmo tinha percebido, de ouvido atento, o final da conversa dele com o Torém.

— S'Ontonho, disse ela, caminhando para ele, que estava fechando a porta, acho muito bom que você diga aos estranho, a respeito da falta da nossa ama, o que disse ao Torém... Mas, meu véio, cá por casa outro galo lhe canta... Olhe, eu juro por Deus que nos vê, eu meto a mão no fogo cuma ela atraiçoa o Cumpade! E a coisa tá tão inraizada qui só mesmo aquele Deus do Céu pode pôr termo a semiante peguero. Ali, istá sem bença.

— E ao depois? qui temos nós cá ca alma dos outros? Quem tivé sua alma que faça boa obra, pra não i pro inferno...

— E o que não hé de sucedê, S'Ontonho? Será pussive que o Cumpade Quim nunca chegue a precebê? Pois que diacho de home então será ele? E o escândio, S'Ontonho? As nossas fiinhas, uma já se pondo cage moça, pódim lá vivê na virtude com semiante pecado entrando pelos óios aqui mesmo dijunto? E logo dos amos, S'Ontonho?...

O calmo vaqueiro sentia um aperto nas carnes do rosto.

Fungou a pitada de torrado:

— Fala baixo, Mercê, olha os menino não oiçam... Mas o qui nós havemos de fazê?

— Vamos-s'imbora deste lugá! E me diga: Você pensa que os Silveras non acabam pur lh'intrigá ca Cumade, non lhe fazem os pontos? E se aquele cabra tivé um dia a odaça de tocá no nosso fio Néu?

— Mas i-s'imbora como? Que dê lo motivo? Eu non hei de agora chegá jun-da Cumade e dizê sem mais preambos: Vou m'imbora! Vou m'imbora!...

— Meu véio, qualo é a mola do mundo?

— A mola do mundo? Sei lá de molas, home!

— Apois eu sei, é isto!...

Coçou a cabeça do dedo grande da mão direita com a do fura-bolo.

— Vamo vendendo nosso gadinho, bem caladinho e guardando o dinhero no fundo do baú... Adonde nós chegá, com dinhero, tamo bem, e saúde nos dê Deus. Vamo-nos aprecautando, que eu lhe juro que non faltará casião de você se despedi...

O velho vaqueiro sentou-se ao peso de tamanhas cogitações. Passava e repassava os dedos por aquela barba respeitável, de que um cabelo era penhor bastante para a sua palavra de homem.

— E você non sabe? - continuava a Mercês - no Vavaú não se falou noutra coisa. O povo já tava capinando de rijo no caso, e dizia que o mancebo andava já com muita galizia... Diz que adonde ele chegava, era tal proque assim, proque assado, proque sobrinho de Dona Guidinha do Poço... não lhe fartava nada. Mas no caso a tenção deles era outra... Bem que viam nele a menina dos óios dela! Aquilo era tratado pelos homes ricos à vela de libra, e tava até ficando ca cara trocida mode que de grandor. Diz qui espaiava que non era pra se casá com matuta do Ceará, qui são ũas brutas...

A Mercês desembuxou a valer. O marido, meio abalado na sua opinião, passou a noite mal; e bem cedo mandou o Néu tirar o leite das poucas vaquinhas de verão, indo pôr-se de tucaia para verificar com os próprios olhos se o Secundino havia dormido lá dentro ou se num dos quartos externos, como fazia dantes.

Com pouco, lá vai o Naiú pegar o cavalo do Seu Secundino, e Sua Senhoria apareceu do interior com uma cara lavada. Seu Antônio deixou cair a cabeça, fez o pelo-sinal. Seu espírito ficou balançando como o ramo donde voou uma ave.

O Quim demorou na vila, para não fazer viagem na primeira segunda-feira de agosto. Andava sofrendo do fígado, dizia. O seu velho e bom amigo o cirurgião Sampaio havia chegado de longo passeio à Corte, aonde fora gozar os seus vinténs e tratar da colocação de um filho bacharel, que já se achava habilitado para juiz de direito, e como de fato o encaixou.

Esse resultado e mui outras novidades contava o cirurgião ao Quim, que ao mesmo tempo o consultava a respeito dos males que dizia sofrer.

— Você não tem nada nesse fígado! respondeu o prático, maliciosamente. São cismas. Você tem alguma coisa... lá isso tem, mas, a falar verdade, não posso saber o que será...

— Acha bom então eu ir à Capital?

— À Capital ou ao Rio de Janeiro, que aquilo é que é terra! Viajar far-lhe-ia muito bem... Viajar! Que recurso enorme para certos males!

O Quim voltou satisfeito com o abalizado conselho.

E o Padre, ao saber disso:

— Vá, homem! Vá ao Ceará, ao Rio mesmo, se precisar, ou ao Recife, que é um lugar importante.

O homem tomou jubiloso o caminho do Poço da Moita. O cirurgião Sampaio lhe dissera que fosse consultar aos médicos da Capital... Quando a Guida o soubesse concordaria logo, porque a palavra do cirurgião era uma sentença para aquele povo. Ele ia, mas sim para conversar longamente com o Padre Brasil, chefe do Partido, a respeito da melhor maneira de realizar o seu desquite... que no sertão não havia gente bastante enfarinhada nessas questões:

— Aquele Padre João Franco só tem é prosa! - dizia de si consigo.

Estrada afora, parou em casa da Aninha Balaio. Esta achou que ele andava meio cabano:

— Terão le botado feitiço? Ói lá! Non vá caí nalgua. Deixe-se de andá pandoiando...

— Feitiço só pega quando Deus é servido, Aninha. Faça-me lá uma xícara de café, ande.

— Agora isso é assim mesmo. O Cão também tem os seus poderes, para castigo dos pobres pecadores. O Major não conheceu a Chicorra? Aquela que esteve com o Capitão Chiquinho? Apois um dia ela entifou em querer que o Manuelzinho da Minervina fosse aquele dela, mas o minino só fazia negá o estribo, que a cabra mesma era munto da enjoada. Ela fez quanta urucubaca havia neste mundo! Um dia pegou nus osssos de minino pagão, que de nada lhe serviram, e desesperou-se e queimou... Mas o caso que queria dizer era este: Que a cabra um dia fez café de sapo torrado para o minino, mais porém o minino não foi quem bebeu. Quem bebeu foram as amigas dela, a Anastácia e a Joana Boneca...

— E não ficaram doentes?

— Não ficárum, não, porque não era pra elas.

O Major sorriu. Que ela não lhe fosse dar também café de sapo torrado...

— Não vê! Esta mesma anda bem com Deus e a Virge Maria, e não tem sua alma para nogócio...

Ao partir, o Major pagou-lhe com uns dobrões o café e a seca. Deu de rédeas, dizendo a rir que se lhe botassem feitiço, viria ao seu consultório. E largou-se.

O calor lhe batia pela direita, um pouco para a frente. A estrada seguia, procurando desviar-se dos pontos mais acidentados, talhada amplamente entre as duas bordas de mato.

Mão na rédea e mão no cabo do guarda-sol aberto, lá se ia o Quim com ar de vigário, o olho meio pisco pela quentura. O cavalo, caminho de casa, marchava ligeiro e macio que fazia gosto. Ali pelas nove horas deixava à direita a estrada real, depois de dar bons-dias ao Arão, e com um pouquinho galgava o pátio da fazenda.

Seu Antônio foi receber o amo com ar de quem ampara um doente. Muita solicitude.

A Guida estava comendo melancia lá para detrás, e ao ver o marido reapareceu:

— Oh! Pensava que não vinha mais! - disse com uma cara muito singela.

— E por que não?... Consultei o cirurgião Sampaio... Não te disse que ia vê-lo?

— Consultou? E o que disse ele?

— Disse que não pode saber o que eu tenho...

— Ah!...

— E é de opinião que eu viaje, que vá até mesmo à Corte, se for preciso, porque lá...

— E por que não vai?

— Você que acha?... Eu queria ir somente ao Ceará. Creio que...

A mulher encolheu os ombros. De dentro ela estava dizendo que se tivesse ido ontem, hoje já fazia um dia.

E disse:

— Eu acho bom. Mas então, é ir logo... Com a saúde não se brinca...

Depois, tornando-se a pouco e pouco expansova, combinou prepararem as coisas de modo que o marido partisse naquela semana.

Então o Quim, que se estava fazendo conversador, contou o caso do crime de Lulu Venanço. Ela já sabia. Matara a mulher com uma facada no peito. E tinha a participar-lhe, sobre esse tanto, que o Lulu viera se valer dela, que amanhecera escondido no cercado, que ela o fizera montar a cavalo e seguir acompanhado pelo Naiú e o Silveira para o Riacho do Sangue...

— Você fez isso, Guida?!

— Fiz, sim. E você também não homiziou ao seu sobrinho?

— Não, mas é que nós estávamos de cima. A política...

— A política é pra lá pra fora. Aqui dentro somos nós.

— Está bom! - acordou por derradeiro o Quim. - O que está feito não está por fazer.

E largou-se para a casa do Antônio.

A Guida, vendo-o pelas costas, deu linha aos seus pensamentos íntimos:

— Será que este homem se julga mesmo doente de verdade? Ou estará ficando doido?... Não haverá ali dissimulação de alguma trama?... Quererá vingar-se?... Naturalmente, fazer que está longe e aparecer de sopetão... Pois está muito enganado! Verá! O boi sabe que cerca fura.

Bufava. Mas quando a raiva lhe era extrema, concentrava-se para a ação, e não gotejava pingo de palavra. Começou a viver sempre de prevenção contra qualquer hostilidade, e muito dengos para o Quim.

O Secundino aparecia agora raramente no Poço da Moita, isto é, na vivenda, visto como era morto e vivo no rancho do Silveira, que de sua parte Guida freqüentava também com alguma assiduidade.

O Quim notara que uma vez por outra chegava um brochotezinho do agregado com recado para a Guida, que a Carolina mandava, e a Guida se largava de pano na cabeça. Um dia perguntou ao Seu Antônio que conluio era aquele da baixa. Seu Antônio que respondeu? Respondeu assim:

— Não sei, Inhor, não. Pois eu já não disse a Vosmicê que daquela gente de Silveira só quero a distância e o sussego? Falam muito deles, mais gente minha não se involve nisso. Eu sou home muito fora de certas coisas.

— Mas o que era que falavam?

Sabia lá! Entrava-lhe por um ouvido, saía-lhe pelo outro. E com intenção: Só sabia, sim, que quem bem me avisa meu amigo é. O cumpadre que deu tanto valor àqueles forasteiros, é que sabia o que eles valiam. Antõe Morera não era gente de dixe que dixe... O cumpadre porque também não dava uma volta por lá?...

— Para quê? Não perdi nada lá...

— Mais tão debaixo do seu facão. O cumpade não deixa de arrespondê pelo que se passa nas suas terra... Mais isto non é de minha conta. O cumpade dê licença, eu ainda hoje tenho d'i no Timbó.

O Antônio saiu remoendo: Por que é que o amo parece que receava ir à baixa? A cumadre ia lá tanto... O homem mó de que tinha medo de si... Seria possível que ainda estivesse de olhos fechados? Não, não era, mó de que ele estava era manhosando pra fazê alguma... Em que andava ele metido, minha Nossa Senhora! Bem razão tinha a Mercês: passar os bichinhos no cobre, que ali não podia deixar de acontecer algum destroço.

O certo é que, antes que findasse a semana, houve uma rija altercação na vivenda, resultando daí o Quim botar o Secundino de porta fora.

O Néu testemunhara a cena, e chegou em casa contando:

— M'pai, o negoço tá ficando feio...

Não sabia? Pois ele tinha ido falar com Seo Major pra dizer que a vaca que ele queria que matasse pra matotage estava amojada, que era melhor matar a Ponta-baixa, que estava enxuta e há dois anos não tomava cria...

— A Ponta-baixa? antes matar aquela roxa...

A roxa era piauí e estava magra... Mas então o Seo Major estava assim assentado no canapé, e o Secundino recostado na cadeira grande de couro, fumando charuto, que era coisa que aquilo ele não largava. E Seu Major vai e diz assim:

— Pois o senhor está na obrigação de se justificar, modificando os seus hábitos, indireitando o seu procedimento. O senhor bem sabe que a calúnia só quer é um pezinho...

— Hum! fungou o velho, como sentindo uma inhaca. Tratando por senhor? Tavam bem principiando, na verdade.

— E vai o Secundino se alevanta e arresponde: - Não tenho nada que me justificar.

— Hum! Ah, eu lá!

Vai o Major rebateu que tinha, sim. Então o Secundino puxara um papel do bolso, e dissera:

— O senhor é que me deve dizer o que é isto. Os nossos parentes estão certos de que eu aqui sou um infame por causa das calúnias do senhor, que o senhor mandou dizer-lhes. Esta carta é do tio Pedro Paulo... O senhor sabe o que escreveu a ele...

— Sei, sim, disse o Major, levantando-se e gritando, amarelo. Pedi que o fizessem retira daqui!...

— Oê! A mina já tava ardendo quando eu nem desconfiava, pelo que me tá parecendo, disse o Antônio.

O Néu continuou:

— O Secundino inchou nas apragatas, e quando vi foi cada quau gritando mais improado, e por derradero o Majó dizê: "Puxe pur aqui, seu cachorro!" O home tava segurando na costa da cadera, cum se quisesse quebrá a cara do outo. O outo non teve dúvida. Saiu cumo um raio, pulou no cavalo, que tava no terrero e avoou no caminho da Goiabeira. Eu cá dixe assim comigo: Arre, diabo! Conheceu home!

— E onde estava a cumade Guida?

— Acho que tava lá pra dento. Aí fora só tinha eles dois.

O Antônio, vista a marcha dos acontecimentos, foi conferenciar com a mulher, que se gabava sempre de ter o pensamento fino. E resolveram: Vamo-nos embora com Deus e a Virge Maria!

Já o vaqueiro havia contrado a venda dos seus novilhotes, e na primeira feira empurraria o gado erado. As reses não estavam por muito preço, mas paciência.

Entretanto, como que o diabo mesmo as estava tecendo. Dois dias depois da rusga dos dois parentes, aí vem mesmo certinho um motivo irrecusável para despedida do velho vaqueiro dos Reginaldos. Deu-se assim:

Vinha chegando o Silveira, com as suas alpercatas: checo-checo, na sola dos pés, chapéu no olho, cacho na testa, paletó preto velho por cima da camisa, e esta por fora da ceroula.

O Quim, deitado na rede, no cupiá, senta-se e o chama e conversam baixo, animados. Era ao pôr-do-sol. O Quim ergue-se e entra para a sala, dizendo com evidente enfado:

— Pois eu não esperava isso do senhor!

O outro vai entrando atrás dele. É o tempo que o Antônio vem pelo corredor com a Guida, que o mandara chamar para dar-lhe umas ordens.

— Pois não tinha qu'esperá senão isso! disse o Silveira. Eu não posso negá entrada em minha casa a quem nunca me ofendeu até o presente. O senhô pode fazê o que quisé, que a terra é sua...

— Agora, vira-se o Quim com uma raiva contida a meio, a culpa é minha. Bruto! Bruto! acrescentava dando cocorotes em si mesmo. A culpa é minha... porque você foi sempre um cabra muito ruim! explodiu.

O cabra, animado pela presença da ama, como o novilho meneando os chifres para a briga:

— Seu Majó, Vossa Senhoria saiba que este cá non é cabra de Dá ca tua quenga, não! É verdade que eu cheguei aqui cumo lá diz, como pobe tatu... mais porém tenho visto mundo e as capa do fundo pra adquiri cum que me arremedeie, e a sua muié qui non me dexe minti...

O Antônio ia-se chegando para o pé do amo, como quem não quer e querendo.

— Há muito tempo que eu conheço as suas gentes de Pernambuco, prosseguia o ex-retirante. Os meus moleques non têm qu'invejá a sua branquidade, e no mais... o aleio busca seu dono. Vosmicê me chamou cabra ruim, primita que eu corresponda: Mais ruim é quem me chama...

O fazendeiro ia ficando fulo. Autoritário e cobarde, grita como fizera ao Secundino:

— Por aqui, seu cachorro!

Mas, pelo brando, o cabra, sob o olhar animador da ama, vai caqueando nos cós:

— Inda mais este bafo! - rosnou com um sorriso canalha. Vosmicês pênsum qui tatu põe ovo e que no céu tem moita...

E quando se viu foi aquela parnaíba desembainhada, que o cabra tinha na mão. Mas, antes que se mexesse, cai-lhe em cima a musculatura do vaqueiro Antônio, com um urro:

— Cabra, não faça ação!

O Silveira largou a faca e escapoliu, vendo que era trabalho perdido. Quando o Antônio olhou, achou-se sozinho com a faca na mão, e ali o Quim muito amarelo, sem poder pronunciar uma sílaba. A Guida havia desaparecido. Tinha-se trancado na camarinha. O vaqueiro, então, com um ar de solene desprezo, sacudindo a faca no meio da sala, saiu dizendo para dentro:

— Cumade, eu não fico mais neste lugá. Faça favô de ajustarmos contas amanhã, que eu amanhã não anoiteço mais aqui, pelas horas que são.