Dona Guidinha do Poço/IV/VII

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As avoantes continuavam na sua vida de sociedade, passando em ondas e ondas pela manhã e de tarde. Fazia um calor vermelho. Os periquitos, ao amanhecer, buscavam o verde persistente do rio, e no dia inteiro eram como uma infinidade de maracás a agitar-se por toda parte.

O pasto, dourado, ao longe oferecia vários aspectos. Nos baixos limpos era aquele frouxel, aquele veludo, e ao perto agitava pendõezinhos ao vento, acenando, acenando. Lá nas lombadas e colinas, pelas abertas dos matos pelados, amostrava-se como se o chão fora acamado de serragens de pau-cetim.

O Serrote do Camaleão estava semelhante a uma carapinha, aparecendo o crânio caspento. Outros amostravam uns tons arroxeados, de uma mistura de verde velho, de cinzento, e do barro vermelho com a rocha caduca.

O vento marulha e farfalha em alguma fronde viva disseminada por entre os carrascos nus; e, na zona do rio, chia pelos capinzais ressequidos, zune através do teçume lenhoso da galharia, chocalha nas folhas maduras, crestadas, prestes a cair.

Céu azul. Ventania revezada, com tardes calmas. A lua nova trouxe boa chuva alta madrugada, e fez bom tempo. Ao amanhecer, o rio exalava um cheiro de lama, e o solo dos matos um certo azedume.

Lalinha estava doida por um passeio com a sua troça ao Serrote do Camaleão, para ver o pombal. Aquele era um dia magnífico.

E lá se foram. O Tonho, do Cambute, comandava, e aquilo eram só piruetas e graçolas para aprazimento da noiva.

O Capitão Chiquinho, que ainda guardava sua velha paixão pela Lalinha, amor de caboclo, ia-lhe no cheiro; contava-se mais o Dr. Fernandes, que ainda não findara seu quatriênio de Juiz Municipal, gordo, metido em brim pardo e chapéu de Manilha; o Sabino do Bonfim, de óculos de fumaça no beque situado, sem rigorosa simetria, entre o par de costeletas; o Serafim, o Correia, o Andrade, o Silva Costa, amigos do Tonho; as filhas do Coletor, bem manteúdas, a mulher do Dr. Fernandes, Dona Madalena, duas manas da Lalá, e dois moleques com uma carga onde ia comida e borrachas d'água.

Dona Madalena, apesar de encapetada, sendo ali a responsável pelas outras, na qualidade de senhora casada, fazia por contê-las, que elas queriam também florear como os rapazes.

— Duro com elas, D. Madalena! animava o Sabino. Moça de mato é o Cão. São sonsas em casa, mas quando se apanham fora do olho dos pais...

As moças deram-lhe uma pateada, chamando-lhe cheira-sovaco, cara disto, barba daquilo. E ele gostando!

Duas reses iam entrando para o mato, por entre o pasto loiro, nédias como baié cevado e de pêlo cetinoso como o de onça. Olha o Capitão Chiquinho que lhes bota o cavalo, e com ele o Tonho e o Serafim, sumindo-se em tropelia, mato adentro. Foram sair lá adiante.

— Oh, que gente boa pra vaqueiro! chalaceava o Sabino.

— Bem pudera eu fazer o mesmo! - lamentou o Dr. Fernandes. Aquilo é que é mocidade! Vigorosa, ágil, temerária. Se eu tivera sido criado assim...

O pombal ficava em lugar ínvio. De certo ponto em diante abandonaram a estrada, tomando pelo mato, olho no Serrote, ouvido alerta.

O arrulho gigantesco não tardou em se denunciar, semelhante ao barulho do mar ao longe.

O Bonfim largou a seguinte pilhéria grossa:

— Já oiço o bicho roncar, minha gente! Hoje volta tudo ovado...

Gargalhada do rapazio.

Lalinha pouca atenção prestava às conversas. Ali, ao descampado, na natureza, com o noivo, prestes a ver com os próprios olhos um pombal de avoantes e saciar a curiosidade, ia gozando de seu.

Da chuva da madrugada apenas restava ligeiro refrigério. O mato abria cada vez mais sobre a pastagem; e avançaram quase como pela estrada, tendo cuidado nalgum garrancho e fazendo voltas. Água da chuva depositada na folhagem não havia, para livrar; mesmo porque frondes já não existiam, a bem dizer, senão na mata, derradeira verdura do ano, lá no olho dos galhos, a parecer sombra de nuvem.

Já encontravam alguma pomba desgarrada. O arrulho era bastante intenso. A Lalinha soltou um grito de satisfação quando viu um galho cheio delas, e uma porção de ovos espalhados no capim.

Mais alguns passos, até um pé de catingueira, e arrancharam. Foi apear num ápice. Os dois escravos desencilharam os animais, que pearam, e armaram nos ramos das árvores, com as mantas e caronas, uma tapagem para fazer sombra.

O moceiro desapareceu logo, pombal adentro, e seguiu-se o rapazio, Dona Madalena fazendo-se obedecer sempre.

Ouviu-se uma delas gritar:

— Sabe quem falta aqui, D. Madalena?

— Quem?

— É a Dona Guida.

— Oh! a Dona Guida, que perna forte!

— Era capaz de ter trazido uma carroça com bebidas e manjares, e até música.

— Ora, ora!

— Se era!

Os rapazes tomaram para um lado e as moças para outro.

Lalinha fora das primeiras a pisar o solo, ao chegar. Não só pela crise sentimental, estado de noiva, como pela sua educação de praciana, impressionou-a vivamente aquele ermo. Achava um sabor delicado no chupar logo ali os primeiros ovos que apanhou. As pombas se apinhavam na esgalhada; e, adiante, mais ovos, e mais aves, por todo o sopé da linha de serros e escarpas além.

As outras gritaram por ela do fundo do bosque, lá para o centro do pombal; mas a fortalezense era pouco destra em transpor aqueles altibaixos amontoados de pedras, eriçados de árvores tortuosas e garranchentas. Depois, atraía-a aqui uma camazinha com três, quatro, seis ovos, à guisa de ninho, à sombra rendilhada do matagal; ali sob uns espinhos, outras e outras, ao pé das árvores, em cima dos blocos de pedra. Tinha pena de ver a devastação que elas próprias estavam fazendo! Que não pensariam delas as aves mães, que saltitavam acima de sua cabeça? No chão viam-se por toda parte cascas de ovos, que os répteis e os urubus haviam bebido. Foi penetrando, porém, aos bocadinhos, o mais adiante que pôde. Sempre em torno dela o mesmo chão arrevezado e pedrento, o mesmo bosque áspero e lenhudo, as mesmas pombas arrulhando a produzir, no conjunto imenso, um zunzum imponente de vagas marinhas. Olhou em derredor, e não viu viva alma. Gritou pelas outras. A voz perdeu-se no soturno do mato. Com pouco ouviu um ai!... que parecia do Tonho. A sua cestinha já estava quase cheia de ovos. Não teve dúvida: caminhou para fora do pombal.

Chegou ao rancho cansada e palpitante. Um dos moleques estava botando a panela no fogo. Repousou sentada na cangalha, depois de beber na borracha bons goles de água. Estava com fome. O almoço era um aferventado de carne seca.

— Estevão, cuida no café!

Já era sol bem alto. A corporatura alcantilada do Serrote alevantava-se fulva e solitária, indo-se por aqueles mundos. Por cima, as pombas cruzavam em diferentes direções, descendo para o pombal, ou dele partindo. Delineavam-se no horizonte serranias longínquas, e nuvens brancas em magotes alastravam o céu, vindas da Serra do Papagaio.

Dois urubus peneiravam na altura do pombal, com vôo majestoso, e se ouviam pios de gaviões.

Lalinha, imaginativa, pensava na vida daquelas pombas de arribação. Para onde iriam elas d'ali, quando arribassem? Não tardariam a sumir-se por esses mundos, além, além...

Nisto sente quebrar mato, e com ligeiro susto avista algumas mulheres a carregar grandes cuias. Eram cunhãs que vinham apanhar ovos, certamente...

As mulheres a reconhecem e se aproximam:

— Ora, a Lalinha, Cumade Joana! Vosmicê que anda fazendo, por aqui, menina?

E analisando o rancho com a vista:

— Ih! mó que é munta gente! Cadê as outras, menina? Ih! Cumade, trouxeram inté burracha d'água, panela, chiculateira, prato, cuieres...

— As outras estão aí pelo pombal, respondeu a moça.

E ela ali tão sossegada? Apois não sabia? A casa do papai dela estava entupidinha de povo! disse uma, pondo ao chão o que trazia na cabeça, e ficando-lhe a aparecer as clavículas ossudas.

Que povo era esse?

— Ai, minha gente, ela mó que inorava ainda? Apois nan sabia qui tinham matado o Majó Quinquim?

— O Major Quinquim?! Mataram o Major? Quem foi? Oh, meu Deus! eu bem que estava sentindo um aperto no coração - exclamou a menina, que entrou a gritar por Dona Madalena, pelo Dr. Fernandes, pelo Sabino do Bonfim, pelo Tonho, como que assombrada.

Fora o Naiú quem o matara, aquele mandioca de varge! - explicaram as cunhãs, cada qual querendo falar ao mesmo tempo. Fora aquele arrenegado, afilhado do Seu Major, que o havia forrado na pia!... O Seu Major estava aparando a barba, na sala, ali pelas seis horas, o sol por ali assim; ele chegou, todo encourado, pediu um foguinho ao moleque Anselmo, filho da Gina, que estava cuzinhando para o Senhor. O moleque largou-se na carreira pelo corredor e o Naiú ficou debruçado na banda da porta, meio da parte de dentro; aqui Seo Major se voltou, deu com ele e foi dizendo:

— Ó Naiú! você por aqui? Que anda fazendo? Como estão todos lá? - e virou-se para a mesa, botando a tesoura na gaveta.

Então o Naiú caminhou para ele, e, por detrás, cravou-lhe o punhal no vão do pescoço, da banda esquerda... sem bulha, nem matinada!... Chega o punhal era grande como nunca viram! De cabo de prata e ouro, uma língua deste tamanho, chega brilhava... Elas viram esse punhal, mais tarde, na mão do Seu Vigário, e ainda lhes arripiavam as carnes: a bainha, o Seu Juiz a tirou do cós do assassino, era uma peça rica...

— E o Naiú confessou quem mandou matar?

Confessou tudinho, tintim por tintim. O papaizinho dela, Seu Dr. Montezuma, foi quem o obrigou a diculará tudo, mais o Seu vigário... Quando o Seu Major levou a punhalada, inda pôde gritar à Gina:

— Me acuda, minha negra, que me mataram!

Mas já o Anselmo vinha co tição de fogo, inda viu o assarsino dejunto do Senhor, e gritou. A Gina acudiu da cozinha pedindo sicorro. Ao mesmo tempo, pelo grito do moleque, acudiram o Seu Vigário, o Capitão Nenê e um vaqueiro do Tobias. Seu Vigário foi preguntando:

— Quem lhe fez isto, Major?!

— O Naiú do Poço, arrespondeu o pobe. Seu vigário foi quem tirou o ferro da ferida. Ainda quis ouvi-lo de confissão, mas vendo que não podia, porque o home não falou mais, lhe deu a absolvição da hora da morte...

— E o Naiú?

— Ora, ora, foi pegado logo, antes de passar o rio. Ia na carreira para alcançar a casa da Aninha Balaio, onde o Silveira estava esperando ele cum dois cavalos de sela... Mas, por graça de Deus, (não sabiam donde se juntou de repente tanta gente) correu um povão atrás, que o cabra s'entregou. O Silveira pôs-se no bredo, cabra desgraçado e traiçoeiro! Daí o povo truxeram o Naiú para a presença do Seu Juiz de Dereito, onde eles o tinham deixado, quando vieram para o pombal...

A narração foi interrompida pela vinda do Tonho, com o chapéu cheio de ovos, todo afogueado do sol e de exercício. Lalinha lhe deu a triste nova, e, acrescentando ela que queria ir embora já, já, o noivo correu para reunir os demais. Breve, os moços a encilhar as cavalgaduras, os moleques a arrumar os trens, foi o torna-viagem. Nem almoçaram.

O Sabino do Bonfim não aparecia, porém. Tocam a berrar por ele. Finalmente surde, no cavalo em osso, metendo-lhe a peia e os calcanhares. Levou descompostura.

— O quê, homem? Fui pegar o meu bucéfalo já quase na ponta do serrote. O diabo é inteiro, e lá se ia atrás de umas fabianas!

Dona Madalena segredou para o Tonho que achava aquele Seu Bonfim muito abusado.

O Dr. Fernandes não apertou bem a cilha ao seu cavalo, e, no montar, a sela rolou:

— Diabo! Há tanto que sou juiz da roça e ainda não sei lidar com alimárias!

Todos a cavalo, o Capitão Chiquinho levantou a questão de voltarem por outro caminho, mas o Tonho insistia que o mais perto era por onde vieram. Daí, teima.

— Para piloto prefiro o Capitão, meus senhores - intervém o Juiz Municipal. E requeiro que se ponha a votos...

— Qual votos, doutro! Pelos Tubibas não se chega hoje! - reclamou o Tonho.

O juiz, virando-se para a Lalinha:

— E você que diz, menina?

— Eu voto com o doutor. O Tonho não entende de mato.

O Tonho perdeu.

— Faça linha, Capitão Chiquinho! - grita o Sabino, em conseqüência.

E deram de marcha, ao tropel dos cavalos sobre a piçarra do solo.

Depois de algumas curvas, desembocaram no caminho seguido. O sol lhes ficara à esquerda, bem como o riacho dos Bois, por cujos terrenos marginais era o trânsito.

— Então, por aqui, é ou não é melhor do que por onde viemos? Hem, Seu Tonho?

O Tonho não deu resposta, esquipando na regra, ao dançado das ancas do cavalo, cujas longas crinas da cauda tremiam em molho, caindo por entre as nádegas rechonchudas.

— Aquele é chimango - referia o Sabino, que ia ficando atrás com o Dr. Fernandes - mas não usa rabo toró.

Galgaram o alto dos Tubibas. A vila assinalava-se lá adiante pelos coqueiros do sítio dos Cunhas e as pontas brancas da torre da matriz.

Lalinha com cuidados no pai ansiava por chegar logo, lembrando-se de que as cunhãs tinham deixado o assassino lá em casa. Seriam bem capazes de fazer-lhe alguma! Quem matava uma pessoa pacata e estimada como o Major Quim, com um sangue frio daquele, assim em pleno dia, dentro de uma vila, tinha coragem para tudo. E fustigava o cavalo com o chicotinho. O cavalo tomava a dianteira, chegaria de rabo frocado.

Assim, a cavalgata seccionava-se em três: as moças, na frente, com a Dona Madalena; os rapazes com o Tonho, a pouca distância; e, bem retardados, o Dr. Fernandes e o Sabino, que ainda foram tomar um gole ao Domingos Tobias. A casa deste, algo afastada do caminho, tinha por pátio a esplanada do alto, olhando para o Nascente com os seus currais e cercados. Estava ele metido na sua toca, debruçado sobre metade da porta, espiando de lá os transeuntes.

O Sabino, apeando no cupiá:

— Veja uma caninha, Seu Domingos, que nós viemos secos.

O ancião, baixo, com uma cara de guariba, puxou a taramela e apareceu com os seus tamancos, ceroula e camisa de algodãozinho. Para o doutor, que se metia montado sob o cupiá:

— Oh, xentes! Vossa Senhoria por aqui? Pois a esta hora a Justiça deve estar comendo gente lá pela vila! Apeie, Seu doutor!

— Obrigado, Seu Domingos. Como vai Você mais a obrigação?

— Vamos bem, Deus louvado.

— Queremos é refrescar um pouco o sol...

— Apeie, mó de esfriar a sela. Não tenha pressa que os criminosos já devem estar todos na embira, que o João Pereira não é delegado de caçoada, e agora a Justiça é de lei, que os chimangos já voaram.

O Sabino apertava a cilha do seu cavalo:

— Sei de tudo isto, disse o Juiz sorrindo, sou chimango do tempo velho; mas nos despache, homem.

— Já, já, Seu doutor.

E de lá de dentro, medindo a bebida:

— Olhe lá! Foi tropa pro Poço, mó de pegar a mulher.

Tinham passado diversas na estrada, diz que mó de ver a entrada dela na vila. Tinham passado gente mesmo! Ele agora só queria era espiar, mas era pra cara do célebre Secundino, a seu ver era quem devia ir à forca, o responsável por tudo. Apois como era que esse home fazia o que ele fez?! Seu tio? Seu benfeitor? Seu amigo? Ele pedisse a Deus que o velho Domingos não estivesse no Conselho...

Era uma torneira aquele Seu Domingos! Disse mais que um vaqueiro do seu filho Vicente, estava em casa do Nenemo, ainda viu o Quinquim agonizando: que o Silveira não foi pegado por mó de a Aninha Balaio; que o Naiú diz que dixera que o que tem de empenhar vende-se logo, e por aí além.

Agora, falar verdade, ele não via motivo para tamanho alevante contra a Guidinha do Poço. Apostava como se ela tivesse mandado matar o Quinquim por trás de um pé de pau, na beira da estrada, aí pelos matos, à traição, no costume velho dos cangaceiros, o povo não se inflamava assim. O que olhos não vêem coração não sente. No seu ser, aquilo era uma covardia que estavam fazendo! Todo o mundo queria condenar a mulher à forca! E Fulano, Sicrano, Beltrano, que mandaram fazer tais e tais mortes, por que nem tiveram uma Ave-Maria de penitência e andavam passeando pela rua? O que olhos não viam...

Aqui o juiz também deu a sua trincadela:

— Verdade, Seu Domingos, neste ponto não deixa de ter sua razão...

Mas aquilo era um ato todo natural. O crime às escuras, à sorrelfa, no escondido, não escandaliza. O Seu Domingos sabia o que era o escândalo? O juízo dos homens era limitado e iníquo. O Seu Domingos bem sabia na sua consciência que A e B, que representavam honroso papel na sociedade, não passavam de uns ladrões ladinos; e o povo, a sociedade, os poderes públicos, não tinham para eles senão respeitos e galardões. Entretanto o pobre diabo que furtasse um cavalo na feira, era logo agarrado pela indignação pública e entregue à ação das Justiças. O Seu Domingos tinha razão: o que olhos não viam...

O Sabino atalhou, então, que também entendia de jurisprudência criminal, pois tinha advogado no júri. O cidadão que estava em sua casa não era como o que andava de viagem, que andava com suas armas. O assassinato do cidadão inerme, como o bárbaro crime perpetrado na pessoa do Major Quim, era...

Porém o juiz, despedindo-se do dono da casa, deu de rédea a galope. O Sabino cortou a sua estirada, e, montando às pressas:

— Em tanto, Seu Domingos!

— Até outra vista! disse este, correndo a taramela e debruçando-se outra vez na banda da porta, como o haviam encontrado.

Não avistavam mais nem poeira dos outros. Encontravam, com efeito, da encruzilhada do pé do alto em diante, curiosos que acudiam para a vila. Era unânime a revolta contra Dona Guidinha do Poço.

O Dr. Fernandes ia procurando atenuantes, na conversa com um e com outro, para a acusada; mas o Sabino o que fazia era açular.

— Não julgues o bom por bom nem o mau por mau, citava o juiz. Todo acusado é julgado inocente, enquanto não se provar o contrário.

Lalinha, chegando a casa, caiu em soluços nos braços do pai, como se o morto fora gente sua. Moravam na rua do Sol, esquina com a praça da Matriz, e de lá avistavam-se as quatro portas da casa do Quim, onde havia muito povo aglomerado.

O pai buscando a razão de ser daquela comoção:

— Amores velhos, amores velhos! - segredava consigo, coçando a caspa da barba. Isto não é senão porque anda envolvido no crime aquele monstro do Secundino... Homem fatal!

Com pouca demora chega o Dr. Fernandes. O colega pô-lo a par dos acontecimentos, com uma satisfação profissional. Que fizera o assassino confessar tudo, alto e bom som, para todos verem e ouvirem. Na cadeia existia um preso, dos que iam entrar em julgamento, um Lulu Venâncio, que pelas confissões do Naiú seria uma testemunha de papouco... É verdade, ia mostrar-lhe uma peça engraçada, a oração que o cúmplice Silveira botara ao pescoço do assassino...

Tirou bolso do paletó o seguinte, que o outro leu tom moleque do seu bom-humor de gorducho:

"Senhor da minha vida, Pai do divino cordeiro, dai-me a vossa claridade, para seguir os vossos passos: as portas e as escadas do céu abertas, para ver o anjo da Trindade, o cálice d'água benta, e a hóstia consagrada. Quem esta oração trouxer no pescoço e rezar todas as sextas-feiras não sofrerá privações algumas; estará livre de todas as pestes, fome, guerra; bala não matará, faca furará, também nunca será preso, estará sempre livre da tentação do demônio.

Rezar três Padres-Nossos, Três Ave-Maria, Três Glória-Patre, oferecido a Nosso Senhor Jesus Cristo, as três horas que agonizou na cruz".

— Bravíssimo! Não será preso... Olhe que esperança! Ah, ladrão, querias era meter o outro na rascada...

— E sabes de quem é essa letrinha? disse o Direito, dobrando o papel sujo: Há de ir para os autos.

— De quem é então?

— Da Excelentíssima Senhora Dona Margarida Reginaldo de Sousa Barros!

— Que está dizendo, homem?!

— H-i, pitu açu!

Coitada! Estava no papo. As justiças de Cajazeiras iam alcançar um sucesso naquela causa crime.

Os jornais e os deputados da oposição que continuassem brotando, que a comarca estava às moscas, que o crime alçava o colo, que as autoridades não tinham prestígio, que a lei era letra morta... Eles iam provar o contrário.

O Promotor entrava com o Delegado. Acabavam de inquirir ao Lulu Venâncio, que depôs sem rodeios o que sabia.

Lalinha recolhera-se ao seu quarto, dizendo que para descansar; mas reunida com as irmãs, foi rezar o terço por alma do Major, dobrando funebremente que estava o sino da matriz.

Concorridíssimo o enterro do pobre Joaquim Damião de Barros, Major Secretário do Comando Superior da Guarda Nacional da Comarca de Cajazeiras, reformado ultimamente pelos caranguejos, tendo exercido vários cargos de eleição popular ou nomeação do Governo, como Vereador da Câmara, de que foi Juiz de Paz, Delegado de Polícia, Suplente do Juiz Municipal, Presidente Recrutador, etc. Fazia parte de todas as Irmandades do lugar, algumas das quais compareceram com suas opas, cruzes, lampiões e brandões.

Filosofava o Sabino do Bonfim:

— Depois do asno morto...

A diligência do Poço da Moita não voltou senão no dia seguinte, o sol bem alto, apenas trazendo a presa mandatária, que o cúmplice Secundino tinha desaparecido. Ficou lá todavia, cocando, uma escolta disfarçada.

Guida vinha na Marreca. A um lado e outro os soldados e paisanos da escolta, estes armados de garrucha e faca, uns montados, outros a pé. Apesar da indignação e assombro públicos, temiam as autoridades que no caminho lhe viessem tomar a presa.

Guida entrou sobranceira pela rua Grande, o cavalo numa estrada alta. A chapelina um tanto para trás, deixando a testa quase no sol. A saia de montaria, de bretanha, arfava ao vento, produzindo uma irritação estranha aquele pano branco na alma enlutada da população. Guida olhava a turba com admiração, que ao povo parecia petulância, e por vê-la açoitar o cavalo, diziam que ela acenava com o chicote para eles...

De repente, por uma terrível associação de idéias, uma voz exclama:

— Olha a Naiú! Olha a Naiú! Lá vai a Naiú!

Outro repete: Olha a Naiú! mais outro, e o nome do assassino reles batia como uma chuva nos ouvidos da ilustre herdeira dos Reginaldos.

O vigário e o Juiz de Direito assistiram-lhe ao apear, à porta da prisão, para evitar algum desacato à pobre senhora.

Guida, com ar desconfiado, sorria para eles, velhos comensais dos bons tempos:

— Deixe, doutor. Deixe, Seu vigário. Este bom povo hospitaleiro da minha terra!

O vigário, retirando-se com o magistrado, ia dizendo pelo caminho:

— Vê, meu amigo? Viu como surdiu aquele baixo qualificativo? Como essa canalha chamava Naiú aquela que para eles era mais do que, para nós outros, a mulher do Pedro II?

— É simples - redargüia o juiz. O crime nivela, como a virtude.

O nobre órgão da Justiça, na promoção, argumentou com a impassibilidade da ré ante o assassinato de seu marido, ao passo que derramou abundantes lágrimas e fez lamentações - descrevia ele, por causa da grande crueldade de prenderem ao Secundino.

Era verdade. A Guida supunha o Secundino longe, longe, afastando-se daquela terra ingrata, como as pombas avoantes, do modo por que das grades da prisão, ela as via lá se irem, a fazer apenas uma trêmula manchazinha escura no céu alto...