Echos de Pariz/IX

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IX

Alliança Franco-Russa

 

N’este momento o Brazil só muito justamente se interessa pelo Brazil: — e, se pudesse dar ainda aos echos da Europa uma attenção apressada, seria de certo áquelles que lhe levassem a impressão da Europa ou pelo menos de Pariz, que é um resumo da Europa, sobre a lucta que a elle tão tumultuosamente o perturba.

Mas Pariz, apesar de alardear sempre a sua generosidade messianica e o seu amor dos povos, é uma cidade burguezmente egoista, que só se commove com o que se passa dentro da linha dos boulevards — quando muito, dentro do recinto das fortificações.

Além d’isso, as noticias do Brazil chegam tão truncadas, tão vagas, tão discordantes, que nem sabemos ainda se são simplesmente pessoas, se verdadeiramente principios que ahi se combatem: e esta incerteza esbate, se não impede totalmente a emoção.

Depois ainda, as nações, á maneira que aperfeiçoam as suas formas de civilisação, requintam no sentimento de neutralidade, que é a suprema polidez das nações. De sorte que, n’esta duvida e n’esta reserva, tudo quanto a Europa agora póde sentir pelo Brazil é o desejo forte de que o patriotismo ahi alumie as almas e que Deus torne bem viva essa luz.


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De resto, a Europa não está tambem estendida sobre rosas festivas. Pelo contrario: cada pobre nação soffre dolorosamente da sua chaga ou da sua febre. O velho mundo é um verdadeiro hospicio, onde o ar viciado pelas theorias se tornou mortifero. Paizes que ainda não têm trinta annos, como a Italia, que todos nós vimos nascer e baptisar, estão invalidos. Mesmo os mais ricos e os mais fortes padecem por motivo da sua propria riqueza, que é uma origem constante de revoluções sociaes, e por motivo ainda da sua força, que faz pesar sobre elles a perenne e arruinadora ameaça da guerra. Por toda a parte grèves, e sangrentas; por toda a parte ruinas causadas pelos appetites materiaes ou pelos idealismos politicos. Em Hespanha não se passa um dia sem uma revolta regional ou municipal. Até a Hollanda, tão tradicionalmente pachorrenta, alimentada a queijo e leite, envolta em nevoas emollientes, se tornou uma fornalha de anarchismo. E a unica nação que realmente mostra equilibrio e saude é a Suissa, não por ser uma republica (não parece haver salubridade segura n’esse regimen) mas talvez por se ter desinteressado de todas as theorias e de todos os ideaes, e ter adaptado, no alto dos seus montes, a occupação entre todas pacata e hygienica de dona de hospedaria.

Apesar desde estado morbido, a Europa todavia ainda se diverte: — e aqui temos a França ha um mez, organisando ardentemente, quasi convulsamente, uma festa suprema e sumptuosa. A Russia, ou antes o Czar (porque o Czar é que é verdadeiramente a Russia, e todos os jornaes de Pariz, mesmo os mais revolucionarios e os que mais zelam a soberania popular, aconselham que se grite, não Viva a Russia! mas Viva o Czar!) manda este mez a sua esquadra do Mediterraneo a Toulon a pagar aquella respeitosa visita que ha um anno a esquadra franceza fez á Russia, quero dizer ao Czar. E a França toda, desde Pariz até ás minusculas aldeias que quasi não têm nome, procura realisar uma demonstração de amizade pela Russia, tão ardente e estridente que fique historica e que marque mesmo o começo d’uma nova éra historica.

Com effeito, esses quatro ou cinco couraçados russos, que vêm ancorar no porto de Toulon, criam quasi uma transformação na politica da Europa. Desde 1870, e ainda até ha um ou dous annos, a França estava n’uma d’essas situações que, pelo contraste violento do merito e da sorte, são tão particularmente penosas a uma nação altiva.

Fidalga entre todas, com pergaminhos historicos de incomparavel nobreza (outr’ora Deus, quando queria realisar no mundo um grande feito, encarregava d’elle os francos — gesta Dei per Francos), a França estava, na Europa, entre as velhas monarchias aristocraticas, com o ar embaraçado de uma mercieira entre duquezas! Guerreira entre todas, poderosamente armada, com tres milhões de soldados facilmente mobilisaveis, a França estava entre as grandes potencias militares com o ar inquieto e timorato de um fraco entre valentões! Situação absurda mas logica, porque era republicana e fôra vencida. As antigas casas reinantes viam o seu republicanismo com desconfiança, senão com desdem. E a sua derrota, e o isolamento que ella lhe trouxera, auctorisavam os chefes de guerra a terem por vezes para com esta nação forte, e apesar da sua força, ares fanfarrões e provocantes que a enervavam. A França realmente estava sempre na possibilidade de ser desdenhada ou brutalisada. Com todos os seus pergaminhos, que datam de Clovis, com os seus tres milhões de soldados, politicamente, na Europa, ella estava de fóra, á porta. E só se desforrava d’esta humilhação por aquella sua outra influencia, que é inobscurecivel e invencivel, a da litteratura e da arte.

Para que tal situação mudasse era necessario que uma grande nação amiga, uma potencia militar e aristocratica a viesse buscar á porta, a levasse pela mão para dentro do concilio das nações, a proclamasse, apesar de republicana, como sua semelhante e sua irmã, e, pondo fim á sua solidão politica, a salvaguardasse para sempre de ameaças e provocações bruscas. E esta nação fraternal foi a Russia. O Czar não veiu pessoalmente a Pariz, como viria, talvez, se a França tivesse um rei. Mas vem moralmente, mandando uma frota, que é como uma embaixada de alliança. Durante dez ou doze dias, a França e a Russia, a grande Republica e a grande Autocracia, vão juntar deante da Europa as suas bandeiras, e, pelo impulso sentimental de todas as multidões, as suas almas. E desde esse momento não só a França, como Republica, recebe o reconhecimento supremo, o ultimo que lhe faltava, o de uma alliança monarchica tão real e natural como se Mr. Carnot fôsse um Rei de Direito Divino — mas ao mesmo tempo a França, como França, recebe ao lado da sua propria força o addicionamento de uma força irmã que a torna invencivel. De sorte que a visita do almirante Avelane abre realmente um novo e interessante capitulo de Historia.

Ha aqui, em resumo, o quer que seja de parecido (salvas, meu Deus, as proporções!) com o caso do corretor de Hamburgo e do velho Rothschild. Não sei se conhecem a anecdota, que é classica. Um certo corretor de Hamburgo, apesar da sua honestidade, da sua intelligencia e mesmo de um começo de fortuna, não conseguia vencer na Bolsa uma vaga hostilidade que o envolvia, misturada de desdem; e não lograva portanto arredondar o seu milhão. Parece que o homem casára deploravelmente com uma lavadeira e, ainda em relação com esse erro sentimental, recebera bengaladas em um caes de Hamburgo. D’ahi a sua situação de pestifero. Um dia, porém, este corretor, feliz ou habil, appareceu na Bolsa de braço dado com o velho Rothschild, o primitivo chefe da casa immensa. E durante uma hora, a de maior affluencia e publicidade, o corretor desprezado e o banqueiro venerado passearam por entre os grupos, conversando, com as mangas das casacas bem colladas e bem intimas. Para quem conhece os homens é inutil accrescentar que, desde essa manhã, o corretor foi cercado de uma consideração ardente, viu a sua dôce lavadeira convidada para as festas civicas e arredondou obesamente o seu milhão. Era o amigo de Rothschild! E quem é visto na intimidade de um poderoso, possue desde logo no mundo uma parte do poder.

A differença aqui está em que o corretor de Hamburgo não experimentava nenhum prazer real e material era sentir a sua manga roçar carinhosamente a manga (de certo gasta e sebacea) do velho Rothschild. Todo o seu prazer, como todo o seu interesse, estava em que os outros corretores e os negociantes espalhados pelo peristylo da Bolsa vissem, durante toda uma manhã, as duas mangas bem juntas e bem casadas.

A França pelo contrario sente um prazer intrinseco e genuino em abraçar triumphalmente o honesto, e bom, e forte Czar. De certo lhe é grandemente grato que toda a Europa, e sobretudo a Allemanha, veja a estreiteza e a vehemencia do abraço: — e por isso o quer bem demorado, alumiado por todos os lados a fogos de Bengala, e destacando ricamente n’um fulgor de apotheose!

Mas a França é uma franceza — com todas as suas graças de sensibilidade e de sociabilidade, e com o coração sempre prompto a bater perante uma homenagem que seja simultaneamente fina e natural. O acolhimento solene e carinhoso que o Czar fez no anno passado, com grande surpreza da Europa, á esquadra franceza do Norte, enterneceu a França, de todo a conquistou, e a França, que é uma franceza, está hoje namorada de Alexandre III.

Quando os jornaes de Pariz o proclamam agora um justo, quasi um santo, escrevem, não com o seu interesse, mas candidamente e com a sua emoção. Elle é o guerreiro forte que inesperadamente abriu os braços fortes á França abandonada, e lhe disse a dôce palavra que ella ha muito não ouvira: «Sê minha irmã e minha egual». Como não amar o homem magnanimo, o Theseu salvador? Tudo n’elle parece bello, a sua estatura, a formidavel rijeza dos seus musculos, a sua larga e tocante paternidade, a quietação grave da sua vida familiar. E estou certo que, na alta burguezia conservadora, já muito bom francez pensou secretamente quanto ganharia a França em ter um rei do typo moral e physico do Czar. Por isso estas festas vão ter não sei que de nupcial.

O Czar esposa a França. Não faltarão talvez mesmo as bênçãos da igreja. E ou me engano, ou esta França racionalista e radical, que riscou Deus dos compendios e exilou os crucifixos, vae celebrar Te-Deums louvando o Senhor por esta alliança cheia de incomparaveis promessas.

Alliança feita particularmente pelo povo francez e pelo Czar. Os politicos profissionaes, os homens de estado, os governos successivos da Republica desde 70, não a promoveram nem a previram. Pelo contrario: liberaes e parlamentares, as suas sympathias foram sempre pela Inglaterra parlamentar e liberal. O Czar, autocrata e absoluto, só inspirava aos estadistas radicaes do typo de Ferry, Spuller, Goblet, etc., uma antipathia que nenhum interesse politico podia dominar. E aquella parte de influencia que ainda pertencia á França, mesmo vencida e isolada, foi sempre posta por elles ao serviço da Inglaterra, e portanto contra a Russia. No Congresso famoso de Berlim foi a França que mais concorreu para arrancar á Russia as vantagens e os territorios que ella conquistára á Turquia, depois de um longa e penosa guerra. E a desconfiança do grande «despota do Norte», o horror dos democratas a qualquer immisção d’elle, mesmo remota, nos negocios republicanos da França, subiu a tal ponto que quando o general Appert, embaixador de França na Russia, se começou a tornar muito intimo e familiar do Czar e a tomar chá no Palacio de Inverno mais vezes do que as exigidas pelo protocollo, o general Appert foi brutalmente demittido!

Por baixo, porém, dos politicos estava a multidão, (que não tem em França grande compatibilidade de espirito com o pessoal que a governa) e estavam patriotas como Deroulède e outros, mais intimamente em communhão com os desejos e as esperanças da multidão. Foram estes que semearam, ás mãos cheias, a boa semente. Na Russia, porém, nenhuma semente fructifica sem o consentimento do Czar. Ora o Czar não só admittiu esta semente, mas até a regou. Começaram então essas repetidas visitas dos gran-duques a Pariz, que eram como as andorinhas do Norte annunciando a esperança do renascimento. Pouco mais faziam estes gran-duques do que almoçar pela manhã no Woisin, e jantar á noite no Paillard. Pelo menos os jornaes não lhes narravam outros fastos. Mas já, de restaurante a restaurante, ou por onde quer que fossem, os acompanhava um sulco largo de sympathia popular. E nenhum gran-duque chegava, ou nenhum gran-duque partia, sem que as gares estivessem todas floridas e resoassem já os primeiros e timidos clamores de Viva o Czar!

Depois, alguns homens de lettras, sobretudo Mr. de Vogüé, (que já fizera particularmente a «alliança», casando com uma senhora russa) começaram a popularisar a litteratura russa. Tolstoï foi revelado á França. O seu neo-evangelismo, nascido do pavoroso espectaculo da miseria rural no centro da Russia, enthusiasmou aquelles que an Pariz tambem se voltavam para o idealismo, por fadiga e fartura das velhas e seccas formulas positivistas. Mas Tosltoï e os outros romancistas russos foram, sobretudo, acclamados pelos mesmos motivos porque o eram os gran-duques. A clara e bem equilibrada intelligencia critica do francez, no fundo, não comprehende nem póde amar a dolorosa e tenebrosa litteratura russa. A natureza do espirito dos dous povos é tão differente como os seus dous estados sociaes. Não só já nas suas fórmas de pensar, mas mesmo nas suas fórmas de sentir, o francez e o russo divergem; — e quasi se póde dizer que um e outro amam e odeiam de modos que são totalmente diversos na sua essencia e na sua expressão. Em tudo o que mais fundamente constitue a civilisação, em materia de religião, de familia, de trabalho, de estado, as duas nações discordam — porque uma é ainda primitiva, governada por crenças primitivas, organisada por instituições primitivas, emquanto que a outra é uma nação trabalhada violentamente, no fundo da alma e em toda a sua ordem social, por quatro seculos de philosophia e um temeroso seculo de revoluções.

Mas esta mesma popularisação da litteratura russa concorreu para a confraternisação. A França, repito, é uma franceza — e, como tal, extremamente sensivel ao brilho das lettras e da cultura.

Não creio que fôsse jámais popular em França a alliança com um povo estupido e sem livros. Todo o sêr de alta civilisação espiritual gosta que os amigos, com quem se mostra perante o mundo, pertençam á mesma alta élite.

Assim, lentamente, se fez esta fraternidade das duas nações, que marcará talvez na historia. Os francezes agora pretendem que ella realmente existiu sempre (é agradavel prender tudo a uma velha tradição) — e vão buscar mesmo a sua origem ao fundo do seculo XVIII (antes d’isso tambem quasi não existia a Russia) ao Czar Pedro, o Grande, que foi esplendidamente festejado em Pariz, na côrte jovial do Regente, onde a sua força colossal, os seus bigodões, a sua brutalidade encantavam les petites dames. Mas vão sobretudo filiar esta fraternidade na guerra da Criméa em 1855, onde officiaes francezes e russos confraternisavam nas trincheiras, entre dous combates, bebendo champagne. Boa novidade! Já outr’ora, durante as velhas guerras dos Cem Annos, os cavalleiros inglezes e francezes, depois das duras brigas, ou no repouso dos assedios, se juntavam, deslaçavam os morriões de ferro, para basofiar d’armas e d’amores, tragando por grossos picheis a zurrapa do Rossilhão. Em todos os tempos, nos exercitos aristocraticamente organisados, os officiaes fidalgos, quando se não batiam, bebiam, segundo as circumstancias, zurrapa ou champagne.

Não! A alliança franco-russa, se se realisar, é obra especial, pelo lado da França, d’esta nova geração que succedeu á guerra, e, pela parte da Russia, do Czar. Na Russia não foi o povo que ja fez, porque o povo não tem opinião e, portanto, politicamente não existe. E em França não foi o governo que a fez, porque os homens que o constituem são ainda dos que gritavam, ha vinte annos: «Viva a Polonia! Abaixo o Czar!»

É esta a sua originalidade, de resto consequente com os estados sociaes das duas nações. Uma grande democracia trata directamente e particularmente com um grande autocrata. E um homem e uma multidão assignam, sem papel e sem tinta, um tratado formidavel e pittoresco.