Echos de Pariz/VII

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VII

A questão Buloz — A «Revista dos Dous Mundos» — Pariz no verão

 

Por fim o Sião cedeu: — e, muito avisadamente, para evitar a immensa maçada de se bater (o que é extremamente penoso, no verão, para um oriental d’habitos dôces e languidos), para evitar tambem a horrivel séca de ser vencido, e talvez desthronado, o rei de Sião entregou á França, incondicionalmente, todos os milhões e todas as provincias que ella reclamava para «vingar a sua honra.»

Póde pois esse excellente e ameno monarcha continuar placidamente a educar nas ideias da civilisação occidental (de que elle acaba de ter uma tão directa experiencia) os seus cento e oitenta filhos. E o Sião desapparece das preoccupações do mundo. Era tempo: havia semanas que se desleixavam os grandes assumptos, os que verdadeiramente interessam a humanidade, como o caso do snr. Buloz.

Não sei se conhecem ahi a questão Buloz. Pois é uma questão tremenda. Basta ver como diariamente os jornaes a retomam, a sondam em todos os seus escaninhos, lhe annunciam a evolução, lhe prophetisam soluções, fazem depender d’ella os destinos das boas lettras francezas. Não ha ninguem que não conheça Buloz. Pelo menos ninguem deve ignorar o seu nome n’esses dous mundos que elle, todos os quinze dias, esclarece, educa e entretem, por meio da sua illustre e famosa Revista. Porque é d’elle que se trata, de Buloz, do unico Buloz, de Buloz director da Revista dos Dous Mundos!

Que memorias este nome de Buloz nos traz da nossa mocidade! Nenhum havia então que nós pronunciassemos com mais alegre horror — porque elle representava, para o nosso grupo revolucionario e enthusiasta das fórmas novas e audazes, tudo quanto na litteratura havia de mais conservador e burguez. Toda aquella sua séria e ponderosa Revista dos Dous Mundos nos parecia então exhalar um cheiro horrendo a bafio e a lettras mortas.

E escrever na Revista, pertencer á Revista era para nós uma maneira especial de ser fossil.

Quantas alcunhas pittorescas postas a essa magestosa Revista! Quantas phantasias edificadas sobre a sua faculdade de adormecer e de embrutecer! Um amigo nosso compuzera um conto em que o heroe, trahido n’um amor sincero, e appetecendo a morte, escolhia, em vez d’um frasco de laudano, um numero da Revista dos Dous Mundos: — e ao chegar ás ultimas paginas, á «Chronica da Politica Estrangeira», mergulhava com effeito no somno eterno. Ainda me lembro d’uma definição da Revista, dada por um de nós: — «Uma publicação côr de tijolo, que tem dous leitores no Havre!»

Tudo isto era excessivo e injusto. A Revista, de facto, tinha leitores por todo o mundo: — e, como se sabe, e já tem sido dito, Todo-o-Mundo é um sujeito que tem muito mais espirito que Voltaire. Com os seus trinta annos de valente existencia, ella era já então uma larga e fecunda remexedora de ideias e de factos: — e não houvera de resto nenhum grande francez, desde Alfred de Musset, que não tivesse commettido esse acto, para nós tão vergonhoso: «escrever na Revista». Todos tinham escripto — mesmo Murger, o bohemio. Nós, porém, só começámos a desarmar do nosso rancor, quando ella publicou versos dos dous grandes idolos d’essa geração — Lecomte de Lisle e Beaudelaire. É verdade que os versos de Beaudelaire, tirados das Flores do Mal, apresentou-os ao publico, por assim dizer, na ponta de tenazes, e com immensas precauções sanitarias. Havia por baixo dos versos uma nota da direcção, toda enojada, em que ella repellia qualquer solidariedade com semelhante infecção, e jurava que só a exhibia como uma lição moral, para mostrar a que excessos e a que desordens póde rolar a litteratura, quando sacode audazmente a salutar disciplina e as boas regras de Boileau. Mas, emfim, publicava Beaudelaire (mesmo alguns dos versos mais temerarios) — e esta concessão, este começo de homenagem prestada ao Satanismo (o Satanismo era então uma escola, e todos nós nos consideravamos Satanicos) adoçou um pouco as nossas relações intellectuaes com a Revista. Modificámos mesmo a definição irrespeitosa. Era então uma «publicação côr de salmão, que tinha já dous leitores no inferno!»

Tão persistentes são as impressões da mocidade, que ainda hoje eu não vejo a Revista dos Dous Mundos sem um sentimento vago e inexplicavel de tédio. Sei perfeitamente que ella é cheia de bom senso e de saber especial, possue uma lingua sobria e pura, tem muita elegancia e finura academica, e por vezes se lhe encontra, aqui e além, um sopro de forte originalidade. Mas quê! A sua presença é para mim como a de uma grave matrona, pesada, rica, bem collocada no mundo, cujos labios descorados, faltos de sangue vivo, só deixam cahir, com uma arte discreta, o que está absolutamente dentro do decoro e da tradição. Não duvido que a convivencia com essa matrona seja salutar, proveitosa, e conducente a boas vantagens sociaes; mas prefiro ainda assim uma musa alegre do Quarter Latin. É talvez para fingir a mim proprio que ainda sou moço.

Foi por isso com certa alegria maliciosa que eu li nas gazetas que o snr. Buloz e, com elle, a pudibunda Revista dos Dous Mundos se achavam envolvidos n’um escandalo de amores e de intrigas. O quê! Ella, a Revista, que com tão austera altivez denunciara durante tantos annos Zola á execração publica, eil-a agora atolada, e até ao pescoço, n’uma aventura escabrosa! Como assim? Buloz, o proprio Buloz, que fazia uma tão severa policia dentro da sua Revista, que esquadrinhava todos os romances com terror de que lá estalasse n’algum canto algum beijo mais voraz, que perseguia rancorosamente, com a ferula da honestidade, e em nome do «pudor domestico», toda a litteratura de observação, sincera e livre, eil-o agora por terra, enrodilhado em saias ligeiras e illegitimas!! Como assim? E tudo isto, pelo contraste eterno entre o que frei Thomaz prega e o que frei Thomaz faz, me parecia divertido.

Depois, mais informado, lamentei sinceramente o excellente Buloz e a excellente Revista. Porque não havia aqui realmente um romance d’esses que o proprio Buloz condemnava sombriamente como «infectos» — mas um roubo, um longo e abjecto roubo, organisado contra Buloz, e portanto contra a Revista de que elle é a encarnação viva — por dous d’esses horriveis personagens a que Balzac chamava impropriamente os tubarões de Pariz. Tubarões, sim, no sentido de nadarem anciosamente no oceano pariziense á cata da presa. Mas isso mesmo fazem todos os peixes, no mar e em Pariz.

Os tubarões, porém, e é essa a sua feição caracteristica, engolem indifferentemente e com egual appetite uma velha garrafa vazia, ou uma gorda e succulenta pescada; e estes tubarões de Pariz, de que falla Balzac, escolhem com cuidado a presa, e só arremettem contra ella, quando ella é tão succulenta e gorda como Buloz.

O caso, tal como transparece, atravez de tantas versões e mesmo de tantas ficções, é lamentavel. Buloz ha annos, no meio do caminho da sua vida (como diz o Dante, que tinha um modo incomparavelmente magnifico de contar estes casos) encontrou uma rapariga. Não era uma Beatriz, mas uma fulana qualquer, que nem ao menos tinha belleza justificativa. Mas, quando se tem vivido, durante vinte annos, dentro da Revista dos Dous Mundos, toda a face moça, com um pouco de lume no olho, parece uma visão de alto esplendor. Buloz, apesar de director de revista, era homem e sensivel. Teve n’uma hora nefasta (talvez entre dous artigos de Charles de Mazade!) uma d’aquellas tentações que, a acreditarmos Santo Agostinho, nenhuma alma, nem mesmo robustecida na constante convivencia dos Broglie e dos Remusat, evita ou vence.

Buloz cedeu — ou, antes, a rapariga cedeu. (E o ingrato Buloz agora pretende, em confidencias que fez a um reporter do Gaulois, que «foi uma semsaboria».) Semsaboria ou delicia, desde esse momento supremo elle passou a ser o homem mais explorado de toda a christandade e mesmo de toda a mourama. Pagou, naturalissimamente, as toilettes da menina e da familia da menina; mobilou para a menina casa no campo e casa na cidade; e para a tornar mais respeitavel, e robustecer a sua posição na sociedade, deu um dote e um marido á menina.

Educado no idealismo incorrigivel dos romances da Revista, imaginava Buloz que, tendo fornecido o dote e o marido, liquidara para sempre o erro sentimental da sua vida. Buloz ignorava a realidade humana, e sobretudo pariziense. Desde esse instante, ao contrario, a menina e o marido tomaram posse definitiva de Buloz. Ameaçando o desventuroso homem de revelarem a sua «infamia de seductor» a Mme Buloz e á Revista dos Dous Mundos, o horrendo casal passou a saquear Buloz, como se saqueia uma cidade conquistada.

Ao principio com methodo, com ordem, mensalmente. No primeiro do mez, os dous bandidos apresentavam a conta do seu silencio — e Buloz pagava pontualmente o silencio dos dous bandidos. Depois as exigencias foram mais urgentes e tumultuosas. É o comer que faz a fome. O abominavel par queria reunir rapidamente uma fortuna — e cada dia, agora, ás vezes mesmo duas vezes por dia, Buloz recebia a reclamação de novas sommas a pagar. E pagava — para manter intacta no mundo, com a sua posição domestica, a sua situação social de director grave de uma revista grave. Estava quasi arruinado — e a menina e o marido não estavam saciados. Ao contrario, fartos das pequenas sommas «que não luzem», queriam a grossa somma — e, com ameaças mais ferozes, forçaram o infeliz homem a assignar uma lettra promissoria de perto de setecentos mil francos.

Buloz, todavia, já tinha dado mais de um milhão!

Segundo elle affirma, Buloz queixou-se á policia. Mas, ao que parece, os dous bandidos, por isso mesmo que estavam ricos, tinham já adquirido respeitabilidade e amigos. Havia grossas influencias que os protegiam contra as queixas de Buloz — influencias pagas talvez com o dinheiro sacado a Buloz. Alliança de «tubarões» — como diria Balzac. O facto é que a policia se conservou n’uma magistral indifferença. Então, estonteado, desesperado, Buloz, um dia, foi contar tudo á sua mulher e á sua Revista. Immediatamente, implacavelmente, Mme Buloz se separou do seu marido, e a Revista dos Dous Mundos se separou do seu director. E o grosso escandalo domestico e litterario estalou sobre Pariz.

Que fará em definitiva Mme Buloz? Sobretudo, que fará em definitiva a Revista dos Dous Mundos? Era esta, durante semanas, a interrogação anciosa de Pariz, que, mais que nenhuma outra cidade da Europa, se compõe de comadres mexeriqueiras. A solução não tardou — e cruel.

Uma sentença do tribunal dos divorcios pronunciou seccamente o divorcio entre Buloz e Mme Buloz. E uma assembléa dos accionistas da Revista pronunciou egualmente divorcio entre a casta Revista dos Dous Mundos e o seu galante director Buloz. Assim Buloz, ao fim da vida, perde a sua mulher e a sua revista. E porquê? Por ter sido abjectamente roubado, durante annos, por dous odiosos bandidos. Esses é que não perderam nada, os bandidos, nem mesmo a consideração do seu bairro, porque durante todo o escandalo os seus nomes não foram sequer pronunciados, á maneira de nomes sagrados. Tal é Pariz.

Sobre a resolução de Mme Buloz não é permissivel fazer commentarios. Mas a resolução dos accionistas da Revista parece-me excessivamente austera e illogica.

Durante esta sua amarga aventura, Buloz não fez senão adquirir noções exactas sobre as realidades da vida — e o seu peculio de conhecimentos sobre o homem e a mulher deve-se ter singularmente enriquecido. Está pois, mais que nunca, nas condições experimentaes de dirigir uma revista, sobretudo aquella secção de revista de que elle com mais particular amor se occupava, a do romance. Agora realmente é que a opinião de Buloz sobre enredos, caracteres tortuosos de heroinas e miserias finaes de todo o sentimento teria valor e auctoridade. E agora justamente é que o afastam d’essa cadeira directorial de alta critica, para a qual as suas desventuras o tinham, emfim, tornado idoneo! Ha aqui evidentemente um erro de criterio, além de uma falta de misericordia.

Em todo o caso, assim acaba na Revista dos Dous Mundos a grande dynastia dos Buloz. Este, se não me engano, era Buloz III. Que diria Buloz I, o fundador, se soubesse que a sua raça fôra desthronada da Revista por um escandalo de coração? Tal é a ironia das cousas! A mais austera, solemne, pudica, de todas as publicações européas, tendo chegado aos sessenta annos, sem que nunca uma realidade ardente das cousas d’amor houvesse maculado as suas paginas, tem de repente de se separar do seu director, do homem que a symbolisava, por motivos de patuscada em alcovas illegitimas! Habent sua fata Revistœ.


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Pariz fugiu de Pariz. Com este calor de phenomeno, (40 graus á sombra) em que se póde torrar o café dentro das casas só com estendel-o simplesmente sobre o chão, a população abandonou a cidade, n’um verdadeiro exodo, e maior que o de Moysés, porque esse foi só de quarenta mil hebreus, e d’aqui, segundo affirmam os jornaes, abalaram hontem, em centenas de comboios, cerca de cento e trinta mil pessoas.

Só ficaram os empregados publicos. E ainda assim, havia ha dias uma administração de bairro, em que todos os empregados, desde o chefe ao contínuo, se achavam no campo ou no mar.

Era um visinho da repartição, um logista, que fazia o serviço, por dedicação civica.

Em todos os Campos Elysios, só raramente se avista alguma carruagem arquejante. Toda a folhagem das arvores seccou.

Aqui e além, nas ruas desertas, passa por vezes, fugindo á pressa, um guarda-sol: é um dos derradeiras parizienses, que corre do café onde se attestou de cerveja para outro café onde se vae innundar de limonada. Os cavallos das carroças trazem chapéo; e a acreditar os jornaes já se pensa em lhes fazer usar, por causa da grande reverberação da luz, lunetas defumadas.

Todavia Londres está mais ardente. Ahi o calor produz quasi uma crise nos costumes. Hontem os membros do parlamento celebraram a sessão, na Camara dos Communs, em mangas de camisa.