Echos de Pariz/XI

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XI

A Hespanha — O heroismo hespanhol — A questão das Carolinas — Os acontecimentos de Marrocos

 

O «Theatro dos Acontecimentos» (como outr’ora se dizia) que é de certo um theatro ambulante, atravessou os Pyreneus — e é agora de Hespanha que nos chegam esses echos com que se faz historia. Isto desde logo garante que elles devem ser interessantes — porque de Hespanha nada póde vir que seja mesquinho ou banal, a não ser por vezes versos e discursos.

A Hespanha é hoje, na Europa, a ultima nação heroica; — pelo menos é a ultima onde os homens, publicamente, e nas cousas publicas, se comportam com aquella arrogancia, e bravura estridente, e magnifica imprudencia, e soberba indifferença pela vida, e desdem idealista de todos os interesses, e promptidão no sacrificio, que constituem, ou nos parecem constituir, o typo heroico (porque nem os diccionarios nem as psychologias estão bem d’accordo sobre o que é um heroe).

Assim, eu não creio, por exemplo, que haja nada mais hespanhol, e que se nos afigure mais heroico, do que o attentado contra o marechal Martinez Campos. O velho general está passando uma revista n’uma praça de Barcelona, cercado de officiaes e de populares, que em Hespanha se misturam sempre familiarmente aos estados-maiores. De repente um rapazola de vinte annos, um anarchista, atravessa o grupo, desata tranquillamente, e de cigarro na bocca, as pontas de uma pequena trouxa, e atira sobre o marechal uma bomba de dynamite. Ha uma horrenda explosão, uma nuvem de pó e de estilhas, gritos, todo a tropel e tumulto de uma catastrophe. Mas uma grande voz resôa, uma voz de commando, serena e quasi risonha. É Martinez Campos, de pé, coberto de sangue, que brada com a mão no ar: — No és nada, no és nada!! O seu cavallo jazia despedaçado n’uma poça de sangue. Em torno, no chão escavado pela bomba, estão cahidos uns poucos de officiaes e de populares, mortos ou terrivelmente feridos e gemendo. O marechal tem a farda em farrapos, de onde pinga sangue. E, todavia, indignado que se erga tanto alarido por causa de uma bomba, continua a encolher os hombros, a gritar: — Pero si no és nada, hombre, si no és nada!

Mais adeante sôa outro grito ainda mais alto. É o do rapazola, do anarchista, que agita o bonnet, berra em triumpho: — Fui eu! Fui eu! Tem vinte annos, acaba de commetter um crime que o levará á forca, e está ancioso por que todos saibam que foi elle, só elle! Não vá outro ser preso, roubar-lhe alli deante do povo, deante de todas aquellas mulheres, a gloria do seu feito anarchista! Atravez do terror, da confusão, podia fugir. Mas quê! perder todo o prestigio que lhe cabe pela sua façanha? Não! Por isso bate no peito, chama os gendarmes, brada: Fui eu! Fui eu! E quando o prendem, vae pelas ruas, já de mãos amarradas, clamando ainda com orgulho para as janellas cheias de gente que fôra elle, só elle!

Ao mesmo tempo, por outra rua, vae o velho marechal, em braços, meio desmaiado, continuando a sorrir e a affirmar que no és nada, que no és nada!

O quadro é admiravelmente hespanhol — e só póde ser hespanhol.


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O hespanhol é heroicamente bravo; mas outras raças, o inglez, o russo, o francez, possuem esse heroismo especial que consiste em soltar um grito, florear a espada, e correr soberbamente para a morte. Onde o hespanhol se mostra unico, é no desprendimento com que sacrifica todos os interesses, desde que se trate da honra da Hespanha, ou do que elle pensa momentaneamente ser a honra da Hespanha. Ahi invariavelmente reapparece o sublime D. Quixote.

E tanto mais heroicamente que ao hespanhol não faltam o raciocinio, e a prudencia, e o claro sentimento da realidade, e o amor dos bens accumulados, e mesmo um certo egoismo pachorrento — como superiormente o prova Sancho Pança. Mas conhecendo e pesando bem o que vae perder — marcha jovialmente e tudo perde com enthusiasmo, porque se trata da sua patria.

Não ha na alma hespanhola sentimento mais poderoso que este de patria. Os cafés de Madrid, ou de Sevilha, estão atulhados todas as noites de descontentes, que maldizem da cousa publica, e berram, emborcando largos copos d’agua e aniz, que em Hespanha tudo vae mal e que a Hespanha está perdida! Mas que alguem de fóra passe e atire uma pedra á terra de Hespanha, ou finja simplesmente que atira a pedra — e todo esse povaréo se ergue, e ruge, e quer matar, e quer morrer, para vingar não só a pedrada, mas o gesto.

O hespanhol, com effeito, apesar de que tanto resmunga nos botequins, tem uma ideia immensa da sua terra. Basta testemunhar a maneira ardente e ovante como elle pronuncia mi terra! Para elle a Hespanha é a maior das nações — pela força e pelo genio.

Ha aqui certamente um orgulho tradicional, hereditario, vindo dos seculos de dominação e de verdadeira superioridade. Muito bom hespanhol vive ainda, por uma illusão magnifica, na Hespanha do passado, e não se compenetrou da decadencia, e ainda pensa que os regimentos de Madrid são os velhos e temerosos terços de Carlos V, e que qualquer piloto do Ferrol ou de Carthagena poderia redescobrir as Indias, e que cada novo romancista continua Cervantes, e cada pintor sevilhano ressuscita Murillo. Mas além d’este habito de se sentir grande, natural de resto n’uma raça que chegou a dominar o mundo e que deu a humanidade algumas das suas almas mais fortes e dos seus genios mais profundos, ha ainda no hespanhol um amor prodigioso pela terra de Hespanha, pelo torrão que os seus pés calcam pelo monte e pela planicie, pelas cidades ou pelas aldeias que ahi se erguem, por cada tufo de cardo que brota entre cada rocha. O inglez, outro grande patriota, ama ardentemente e exclusivamente a civilisação que creou na sua ilha, e as suas instituições, e os seus costumes: — mas não tem nenhum enthusiasmo pela ilha, ella propria, que abandona mesmo com facilidade e prazer. E comtanto que leve para a Italia, ou para outro clima doce, a sua cosinha, os seus sports, os seus jornaes, as suas distincções sociaes e o seu club, prefere sempre a suavidade d’um ar luminoso aos asperos nevoeiros do seu sombrio Norte. Por isso emigra, e vae fundando em solos mais amenos que o seu uma correnteza infinita de pequenas Inglaterras. Para o inglez a patria é uma entidade social e moral. Para o hespanhol a patria é o bocado de terra que os seus olhos abrangem, e que elle ama como se ama uma mulher, com um amor ciumento e carnal. Esse amor cria n’elle naturalmente a illusão: — e o manchego e o navarro, que habitam duas das mais feias e tristes regiões da terra, não as trocariam pelo Paraizo, porque nada lhes parece realmente tão formoso e radiante como a Mancha ou a Navarra. Eu já vi um homem, e muito intelligente, que era de Merida (um dos mais lugubres buracos do mundo), declarar, muito sériamente e convicto, que Pariz, como monumentos, e interesse, e brilho, no valia Merida! De resto, quem não tem ouvido hespanhoes, muito cultos, muito viajados, preferirem candidamente qualquer Merida sua a Roma ou a Londres, e considerar tal politiquete da sua provincia maior que Gladstone e Bismarck, e achar em certo folhetim publicado n’um jornal de Andaluzia mais genio que em toda a obra de Hugo? A isto se chama ordinariamente a exageração hespanhola. Não! É apenas a candida illusão de um patriotismo transcendente.

Considerando assim a sua patria, tão formosa, tão grande, tão forte, tão genial, e prestando-lhe um culto como á verdadeira e unica divindade, como não ha-de o hespanhol exaltar-se até ao tresloucamento, quando a suppõe ultrajada? Para elle uma offensa á Hespanha é um sacrilegio, e tem então o santo furor de um devoto que visse alguem cuspir n’um crucifixo. Para castigar a profanação abominavel, fará com enthusiasmo todos os sacrificios, e logo immediatamente o da vida.

Todos se lembram ainda da famosa «questão das Carolinas». Uma manhã, Madrid sabe que, muito longe, em mares remotos, um official allemão plantára n’umas certas ilhas vagamente hespanholas, e chamadas Carolinas, a bandeira allemã. Ninguem em Madrid conhecia a existencia das Carolinas, nem a geographia das Carolinas. Mas os jornaes contavam que a Hespanha fôra offendida: — e Madrid inteiro, todas as classes e todas as edades, fidalgos, carreteiros, toureiros, padres, magistrados, velhos, creanças de escola, senhoras e servas, tudo correu para praticar o acto mais immediato e mais urgente: ultrajar a bandeira allemã, matar o embaixador allemão, arrasar o edificio da embaixada da Allemanha. E depois a guerra! Uma guerra implacavel, toda a Hespanha em armas, cahindo sobre a Allemanha! Não havia tropas? cada homem seria um soldado! Não havia armas? cada um tomaria o seu cajado ou a sua navalha! Não havia dinheiro? as mulheres empenhariam até a cruz do pescoço. E atravez d’este delirio, ninguem ainda percebia onde eram as Carolinas. Tambem, na primeira Cruzada, quando as multidões, povos inteiros, partiam a vingar a offensa feita pelo turco ao sepulchro do Senhor, ninguem sabia onde era Jerusalem...

Foram dous dias sublimes, esses de Madrid. O velho Bismarck, attonito e aturdido, recuou, mandou retirar a bandeira allemã das Carolinas, appellou para o papa... A Allemanha realmente, perante aquella explosão magnifica da velha alma castelhana, empallidecera. E a Hespanha sahiu da aventura mais engrandecida, mais consciente da sua grandeza, e cercada das admirações do mundo. É que nada se impõe aos homens como a affirmação heroica de um sentimento justo.

Pois agora vae talvez succeder uma egual aventura. A Hespanha foi ferida no seu patriotismo e no seu orgulho. A offensa não veiu de europeus, mas de africanos. É, porém, indifferente para a Hespanha que o sacrilego seja forte ou fraco, civilisado ou barbaro. Houve o sacrilegio, isto é, houve um ultraje á bandeira da Hespanha, e, portanto, ás armas e guerra implacavel!

A Hespanha possue no norte da Africa, além de Tetuan, de Ceuta e de outros pontos fortificados, uma pequena cidade pouco maior que uma cidadella, que se chama Melilla. Em torno ha, como em todas as outras possessões, uma zona de cultura, defendida por trincheiras e fortes. E para além são serranias povoadas por tribus mouriscas, a que se dá o nome generico de mouros do Riff, ou Riffenhos.

Os mouros naturalmente odeiam os hespanhoes, seus inimigos hereditarios, com o odio de raça e com o odio de religião: — e os hespanhoes estão alli portanto n’um permanente estado de defeza. Ultimamente, depois de vagas questões que tinham surgido entre hespanhoes e mouros na feira visinha de Frejana, as tribus riffenhas mostraram uma agitação tão visivelmente hostil, que o governador de Melilla, general Margallo, mandou reforçar as obras de defeza em torno da zona cultivada, e construir, n’um certo ponto mais aberto, um forte.

Ora, justamente n’esse sitio, existia um antigo cemiterio mourisco. Nada ha mais sagrado para o mussulmano do que um cemiterio, porque não só ahi repousam os mortos, mas ahi vêm orar e meditar, estudar e celebrar assembleias, e mesmo celebrar festas, os vivos. O cemiterio, no mundo mahometano, constitue o verdadeiro centro de piedade e de convivencia.

Os mouros do Riff representaram pois ao general Margallo que aquelle forte, n’aquelle sitio, vinha dominar e devassar o seu cemiterio — e constituia portanto uma invasão material e moral do seu territorio. Foi por um motivo identico, por causa da famosa torre Antonia, que sobrepujava e devassava o templo de Jerusalem, que os judeus tantas vezes se sublevaram sob a dominação romana. O general hespanhol respondeu, (como costumava responder o proconsul romano) que, dentro da sua zona, elle tinha o absoluto direito de erguer todos os fortes que julgasse necessarios á sua segurança. E mandou construir a obra. Os mouros de noite desceram das alturas e destruiram a obra. Com a costumada teima hespanhola, em logar de conciliar, de escutar razoes que eram attendiveis, porque nasciam de um sentimento religioso, o general Margallo ordenou a reconstrucção do forte. Os riffenhos desceram mais numerosos e redestruiram o forte. Diabo! não se podia continuar assim, em plena mourama, esta teia de Penelope tecida ao sol, desmanchada ao luar. O general Margallo recomeçou as obras e collocou-as sob a protecção de um destacamento de sessenta soldados. Os mouros immediatamente soaram o alarme através dos aduares, baixaram e desmantelaram as obras e atacaram o destacamento. Tinha corrido sangue: era a guerra.

O que depois occorreu, não está ainda bem aclarado. O general Margallo, sem esperar reforços, fez, com a sua pequena guarnição de recrutas, para castigar as tribus, uma sortida temeraria — que resultou numa tremenda derrota dos hespanhoes (apesar da bravura esplendida com que se bateram) e na morte do proprio general Margallo, varado, logo no começo da acção, por tres balas. Entre os officiaes gravemente feridos havia um infante de Bourbon. Os mouros tinham capturado dous canhões e uma bandeira — que os hespanhoes retomaram.

Quando o desastre se soube em Madrid, foi outro «dia das Carolinas». Madrid inteiro correu ao palacio, aos ministerios, gritando por vingança e guerra. Todo o homem valido se quiz alistar como voluntario. Para que não faltasse dinheiro (e o governo não o tem), o banco de Hespanha offereceu oitenta milhões, as grandes casas fidalgas prometteram largos donativos, as proprias egrejas desejavam dar as suas alfaias. A Hespanha toda rompeu n’uma outra das suas sublimes explosões de patriotismo. O reisinho, que tem sete annos, cercado no passeio do Prado por uma immensa multidão que o acclamava, ergueu-se de pé, no assento da carruagem, largou a gritar: Vamos todos a matar los moros! Foi um delirio. E a Hespanha, enthusiasmada, lá vae para a guerra!

E em que momento ella vem! Quando a Hespanha, muito pacientemente, com um esforço em que tambem havia heroismo, estava reconstruindo, dia a dia, migalha a migalha, as suas finanças arrasadas. A guerra é a ruina — porque as tribus do Riff podem pôr em armas sessenta mil homens aguerridos, de incomparavel bravura, com espingardas Remington, e tendo por couto as suas serranias inaccessiveis. Para vencer esta formidavel guerrilha — é necessario uma expedição pelo menos de trinta mil homens, que têm de ser alimentados de Hespanha, porque no Riff só ha areaes. São as finanças hespanholas desorganisadas por infinitos annos. É ainda o perigo de complicações europêas, porque a Hespanha será forçada a penetrar no territorio de Marrocos (os mouros do Riff são subditos do sultão de Marrocos), e ahi encontra a opposição da Inglaterra, da França, da Italia, que têm todas tres pretensões, por motivos de fronteiras coloniaes, ou por motivos de dominação estrategica no Mediterraneo, a esse vasto e rico sultanato. A questão de Marrocos substituiu hoje na Europa, pelos seus perigos, a antiga e classica questão do Oriente.

Lord Salisbury affirmava ainda ha pouco que, se a paz do mundo viesse a ser quebrada, seria de certo por causa d’esse terrivel Marrocos. E a Inglaterra já tem em Gibraltar, deante das costas da Africa, á cautela, uma grossa esquadra de couraçados. Assim a Hespanha arrasa as suas finanças, e arrisca uma medonha guerra européa. Mas que lhe importa? Fôram mortos officiaes hespanhoes, foi ultrajada a bandeira de Hespanha — e ella vende as alfaias dos seus templos, e marcha sublimemente.

Eu pelo menos acho sublime este patriotismo vehemente, todo este nobre arranque. Heroica Hespanha! Deus lhe dê ventura! Ainda que os mouros do Riff, com o seu piedoso amor pelo seu velho cemiterio, não deixam de ser interessantes...

E assim, em pleno seculo XIX, temos de novo, como no Romancero, a Cruz contra o Crescente, e a Hespanha na sua antiga e laboriosa occupação de matar los moros.