Echos de Pariz/XIII
XIII
Os Anarchistas — Vaillant
Desde que nos não vimos, caros collegas e amigos, este velho mundo foi de novo abalado por uma bomba anarchista, a bomba de Vaillant.
Esta, porém, não causou os estragos, em pedra e cal, da bomba já classica e quasi symbolica de Ravachol; nem fez tambem a devastação mortal da bomba hespanhola do theatro de Barcelona.
A bomba de Vaillant apenas deteriorou alguns velludos de poltronas e pedaços de estuque dourado; e o unico ferimento perigoso que causou (e hoje curado) foi o de um primo intellectual do anarchismo, d’um socialista neo-christão, o doce abbade Lemire. Mas espalhou um terror mais intenso que as de Ravachol ou a dos hespanhoes, porque, pela primeira vez, a sociedade sentiu a temerosa dynamite arremessada contra um dos seus grandes orgãos vitaes, contra o centro regulador das suas funcções, contra o parlamento! As outras bombas só pretenderam destruir predios ricos, como sendo as fórmas mais materialmente palpaveis do capitalismo; ou então burguezes abastados, no acto de gosarem um luxo que offende especialmente a miseria — o da Opera. A bomba de Vaillant porém estoura com imprevista audacia sobre o «seio augusto da Representação Nacional». N’uma republica parlamentar, o parlamento é o rei. Portanto Vaillant verdadeiramente commetteu um regicidio. E não ha crime que impressione mais do que o regicidio, porque n’uma sociedade onde se não eliminou inteiramente a ideia de que o chefe é pae, elle participa da natureza do parricidio.
De certo sabem, pelo telegrapho, pelos jornaes, a historia do feito. No Palais-Bourbon, estando a camara em sessão e um deputado na tribuna, Vaillant atira a sua bomba, composta de pregos e polvora verde, dentro de uma caixa de lata, que bale n’uma columna, estala no ar antes de cahir. Densa fumarada, gritos, terror, tumulto — e immediamente, tambem, entre os deputados, aquella serenidade corajosa, ainda que um pouco affectada, que é uma tradição das assembleias francesas, acostumadas desde 1789 a ser invadidas, assaltadas e mesmo espingardeadas pelas plebes em revolta. Todas as portas do Palais-Bourbon se fecham — e as salas das commissões são convertidas em ambulancias, onde, sobre colchões trazidos á pressa de um quartel, os feridos recebem curativos summarios. Entre esses feridos ha um, com pregos espetados nas pernas, que hesita ao dar o seu nome e o seu endereço, e que desperta portanto o faro embotado da policia. É conduzido ao hospital por dous agentes que se estabelecem ao lado da cama, e começam com elle, amigavelmente, uma conversa habil sobre anarchistas e fabricação de bombas. O ferido, por um d’esses impulsos de vaidade bem franceza, bem humana (e que Balzac se deleitaria em notar) alardeia logo o seu conhecimento intimo com os chefes do anarchismo e com os processos empregados na composição das bombas. Os outros encolhem os hombros, negam a sua competencia. E o homem irritado com a contradição termina por gritar:
— Pois bem, fui eu! Fui eu que deitei a bomba! Viva a anarchia! E agora não me massem mais, que quero dormir.
Era Vaillant. E sabem, de certo, tambem que foi condemnado á morte — por um jury que se mostrou feroz, para que em Pariz, e sobretudo no seu bairro, não o suppuzessem medroso. O que é ainda bem francez e bem humano.
A bomba de Vaillant e a sentença que condemna Vaillant á morte, sendo dous actos no fundo identicos, porque ambos procuram aniquilar um principio pela violencia — são tambem dous actos absolutamente inuteis.
N’um crime como o de Vaillant entram, em resumo, tres impulsos ou motivos determinantes. Primeiramente ha um desejo de vingança, todo pessoal, por miserias longamente padecidas na obscuridade e na indigencia. Ha depois o appetite morbido da celebridade — como o prova o facto de Vaillant, nas vesperas de lançar a bomba, se ter photographado, n’uma attitude arrogante, voltado para a posteridade. E emfim ha o proposito de applicar a doutrina da seita, que, tendo condemnado a sociedade burgueza e capitalista, como unico impedimento á definitiva felicidade dos proletarios, decretou a destruição d’essa sociedade. Só este lado sectario do crime particularmente nos interessa quanto á sua inutilidade. (Porque, pelos outros dous lados, o acto não foi inutil, visto ter Vaillant realisado a sua vingança e alcançado a sua celebridade).
Aqui temos pois Vaillant, como anarchista, com a sua bomba na mão, preparado a demolir, para vantagem do proletariado opprimido, um bocado da sociedade que o opprime, alguns dos seus membros mais activos e potentes, e portanto, para elle, mais oppressores. Lança a sua bomba — e supponhamos que, causando um maximo inverosimil de destruição, ella mata os seis ministros, aniquila os quinhentos deputados, e arrasa o edificio do parlamento! Que succederia? Que vantagens traria este feito estupendo ao proletariado escravisado, e que prejuizos causaria á sociedade escravisadora? Primeiramente espalhar-se-ia por toda a Europa um terror, uma commoção maiores (porque hoje somos mais sensiveis, e o telegrapho e a reportagem dão um alimento mais prompto e mais abundante a essa sensibilidade) que a commoção e o terror causados pelo terramoto de Lisboa em 1755. Depois, immediatamente, o poder executivo, que não fôra demolido, nomearia um ministerio em substituição do ministerio assassinado; e esse novo ministerio, mesmo assumindo provisoriamente a dictadura, fixaria uma data para que a nação elegesse uma camara nova em substituição da camara desbaratada. Em seguida a França faria aos mortos funeraes magnificos. Vaillant seria guilhotinado, visto não existir, mesmo para crime tão prodigioso, pena mais completa que a guilhotina.
O governo decretaria terriveis leis de repressão e, com o apoio enthusiasta do paiz todo, os anarchistas seriam perseguidos, em montarias, como lobos. O Estado reedificaria o edificio do parlamento em condições mais seguras, e com linhas de certo mais bellas. E finalmente de novo a camara se reuniria no seu novo edificio, e o tempo, que é um grande apagador, iria apagando a impressão pungente da catastrophe, e os pobres soffreriam as mesmas necessidades, e Rothschild gozaria os mesmos milhões, e a sociedade burgueza e capitalista continuaria o seu movimento sem ter perdido um atomo do seu capital e do seu burguezismo. Do feito horrendo, só restariam, pelos cemiterios do Père-Lachaise ou de Montmartre, algumas viuvas chorando. E o proletariado anarchista que teria conseguido? O odio insaciavel dos egoistas, a desconfiança dos proprios humanitarios. E teria ainda logrado crear, para sua confusão e maior humilhação, ao lado da classe já desagradavel dos martyres da liberdade, a classe, ainda mais desagradavel, dos martyres da auctoridade. De sorte que estas bombas arremessadas contra a sociedade, mesmo quando tivessem meios destructivos que são hoje ainda inconseguiveis com a nossa limitada sciencia, nunca passariam, relativamente á força e estabilidade d’essa sociedade, de actos impotentes e tão inuteis como bolhas de sabão lançadas contra uma muralha.
A isto replicam os anarchistas: — «Assim é, mas nós não pretendemos destruir, desejamos só aterrar!» Raciocinio vão. O que significa, n’este caso, aterrar? Significa provar, pela experiencia d’uma pequena destruição, a possibilidade de uma destruição immensa? Significa inspirar á burguezia, demolindo-lhe um predio e matando-lhe tres membros, o temor de que lhe possa ser arrasado um bairro e desfeitos em estilhas tres mil dos seus representantes? Mas está comprovado que, por maiores que sejam essas devastações pela dynamite, mesmo quando subitamente por uma d’ellas pudesse desapparecer todo o poder executivo e todo o poder legislativo, os milhões de burguezes que governam e que conservariam intactos o seu exercito, o seu ouro, todas as suas forças, não consentiriam em abdicar de direitos que elles consideram como quasi divinos e os unicos capazes de manter ordem e segurança nos agrupamentos humanos. É a eterna inutilidade do regicidio, que, matando o homem, não mata o systema.
O nihilismo russo experimentou essa inanidade da violencia: um czar era assassinado, logo outro era coroado, que do proprio crime commettido sobre o pae parecia tirar um accrescimo de força e como uma nova sancção. Por isso Proudhon, que o anarchismo venera como um de seus santos-padres, prégou constantemente contra o tyrannicidio, contra as tendencias tyrannicidas dos jacobinos do segundo imperio (hoje homens de poder e auctoritarios) como prégaria, se vivesse, contra a bomba dos anarchistas, por constituir uma outra fórma de tyrannia, e ser sobretudo um tão lamentavel desperdicio de energia heroica.
Mas, por outro lado, se a bomba de Vaillant e de muitos Vaillants, é impotente para arrasar, ou mesmo aterrar efficazmente a sociedade burgueza — a sentença que condemna á morte os Vaillants é impotente para supprimir ou sequer assustar o anarchismo. Com estas sentenças, inspiradas por um dever e por uma esperança, o dever fica de certo cumprido porque o criminoso fica castigado; mas a esperança não se realisa, porque nem os anarchistas diminuem, nem se tornam mais raros ou mais timidos os seus assaltos contra a sociedade. Pelo contrario! Está demonstrado, e pela propria policia, que, desde as primeiras bombas e portanto desde as primeiras repressões, o numero dos anarchistas tem crescido na proporção formidavel de um para mil; e emquanto que a primeira bomba foi lançada contra um simples predio, a ultima é já arremessada contra o proprio parlamento em sessão, exercendo soberania. O que era um bando está organisado em seita.
E odios dispersos, operando sem methodo e sem dogma, fundiram-se n’uma religião (ou, se quizerem, n’uma heresia) em que o odio de certo é ainda um factor, mas em que é um factor maior o amor, o amor dos miseraveis e dos opprimidos, e que portanto por este lado tem uma grande força de propaganda e uma segura condição de vitalidade. Sobre esta seita, a que bem podemos chamar religiosa (ou, se querem, heretica) as sentenças de morte não têm acção, porque não fazem mais que vibrar um golpe unicamente material sobre o que é immaterial, a crença, e assemelham-se portanto a cutiladas atiradas ao vento. A guilhotina decepa uma cabeça, mas não attinge a ideia que dentro residia. Durante um momento, é certo, á força de buscas, de prisões, que são acompanhamento usual da sentença, a seita fica desorganisada, desconjuntada: — mas para immediatamente se reorganisar além, mais numerosa, mais fanatisada, por isso que vem de padecer uma perseguição. Taes sentenças não têm senão o effeito desastroso de crear martyres. Ora não ha semente mais fecunda que uma gotta de sangue de martyr, sobretudo quando cahe n’um solo tão preparado para que ella fructifique, como é a alma especial dos humanitarios que chegaram á exacerbação do humanitarismo, não por theoria, mas atravez de realidades dolorosas e de uma experiencia constante das miserias servis. Pense-se o que será (quando um Vaillant é guilhotinado) uma reunião secreta de anarchistas, dos verdadeiros, os puros, d’esses milhares de operarios de coração generoso e exaltado, para quem o anarchismo é a verdadeira redempção da humanidade, e que admiram no homem que se sacrificou por essa ideia santa um martyr do amor dos homens! O jury só viu o bruto que quiz matar: elles só veem o justo que quiz libertar. N’uma tal reunião, onde cada um traz a sua colera e a sua maldição, é inevitavel que alguma alma mais violenta se inflamme, appeteça tambem o martyrio, e corra d’alli a fabricar a nova bomba, que na sua illusão quasi mystica concorrerá a remir o proletariado. Aquelles que não podem morrer pela causa querem ao menos soffrer de algum modo por ella, e pela sua justiça. Entre os anarchistas presos recentemente havia um que se fizera gerente responsavel de um jornal anarchista, só para ter gloria, o prazer espiritual de soffrer os mezes de prisão em que os redactores incorressem pela violencia das suas imprecações. Por isso o anarchismo, como a primitiva seita christã, tem já os seus «Actos dos Martyres». A vida e supplicio de Ravachol andam escriptos, e são meditados como mais puro exemplo da fé e da confissão anarchista. Todos os objectos que pertenceram a Ravachol ganharam o caracter augusto de reliquias. Ha um cantico a Ravachol — a Ravachole. E cada coração anarchista lhe é um altar.
As perseguições, as execuções, em logar de diminuirem a seita, só lhe communicam uma vehemencia mais devota e portanto mais perigosa. E quando a sociedade mata os anarchistas — é a sociedade que fabrica as bombas.
A violencia não cura — e o anarchismo é uma doença. O anarchismo é uma exacerbação morbida do socialismo.
O germen e os desenvolvimentos d’esta doença não são difficeis de precisar. No antigo regimen, o proletariado, mantido em servidão dentro de uma organisação social muito forte, collocara sua esperança de felicidade, não já n’esta vida e elle via irremediavelmente votada á pena, mas a outra vida, para além da campa, como lh’o recommendava a Egreja, sua mãe e sua educadora, dando-lhe como garantia a promessa de Jesus que reservava para os pobres o reino do céo.
N’este nosso seculo porém o proletario, doutrinado pela classe media que se tornara desde 1789, em substituição á Egreja, a sua nova educadora, começou a acreditar que, sendo homem, e tendo portanto todos os direitos do homem, poderia realisar a sua felicidade ainda em vida, n’este mundo, e sob a garantia de leis. Para isso, segundo lhe affirmava a classe media, bastava que ele demolisse o velho edificio social, a monarchia e as instituições monarchicas, que constituiam o unico obstaculo á «felicidade das massas». O proletario, convencido, sahiu em tamancos dos seus vehos covis, e começou a destruir. Fez tres revoluções, ergueu barricadas innumeraveis, exilou reis, incendiou castellos, aboliu privilegios — e expeliu em gritos, e com as armas na mão, todas as formas e liberdades politicas que a classe media lhe indicava ao ouvido e que deveriam realisar essa felicidade terrestre tão largamente annunciada. Emfim, ao cabo de setenta annos de luctas, o povo, tendo arrasado o velho edificio da monarchia, construiu o novo edificio da republica, cheio dos confortos e invenções novas da civilisação politica, a liberdade de reunião, de associação, de imprensa, e todas as outras, entre as quaes, bem agasalhado e bem provido, senhor seu, elle começaria emfim a conhecer a ventura de viver. Assim soberbamente installado, esperou. Os annos passaram. A felicidade annunciada não veio. Apesar de todos aquelles confortos politicos (liberdade d’isto, liberdade d’aquillo) continuava, como no antigo edificio feudal, a ter fome e a ter frio. Quando chegava a neve, o direito de voto não o aquecia — e á hora de jantar, a liberdade de imprensa não lhe punha carne na panella vazia. Pelo contrario, reconheceu que, apesar do nome de «soberano» que lhe tinham dado, continuava na realidade a ser servo — e que o seu novo amo, o burguez capitalista, era muito mais exigente e duro que o antigo amo que elle guilhotinara, o fidalgo perdulario. Todas as suas barricadas, pois, e todas as suas revoluções tinham sido feitas em proveito da classe-media, que lhe mettera as armas na mão, o impellira ao assalto do velho regimen! O seu sangrento esforço só servira para entregar o poder á classe média, que se aproveitava d’esse poder, não para dar ao proletario dentro do novo regimen a sua legitima parte de bem estar, mas para lhe explorar o trabalho como lhe explorava a colera, e fazel-o esfalfar para o seu enriquecimento material, como o fizera combater para o seu engrandecimento politico!
A decepção foi tremenda — e tremendos o odio e desejo de vingança contra o traiçoeiro burguez. A parte mais intelligente, mais pacifica, ou mais legal do proletariado concebeu logo a necessidade de fazer uma outra e derradeira revolução, não contra a estructura politica da sociedade nova, mas contra a sua organisação economica, porque não era agora, por causa do regimen politico que o proletariado soffria, mas por causa do regimen economico, nascido das invenções mecanicas, das descobertas chimicas, dos excessos de producção, da concorrencia de todos os progressos do seculo, realisadas só em beneficio da classe media, e cada vez mais tendentes a separar as duas velhas «nações» de Aristoteles, os pobres e os ricos, attribuindo a uma todos os proveitos, e impondo á outra todas as fadigas. Desde esse momento nascera, ou apparecera, organisado na Republica, o socialismo.
Uma outra parte, porém, do proletariado, a mais inculta ou a mais violenta, ou simplesmente a mais naturalista, concebeu uma outra ideia, e estranha. Para essa, a revolução economica prégada pelo socialismo e concebida ainda dentro de um funesto espirito juridico é inefficaz, quasi pueril, porque não attinge o mal! Associações, trade unions, barateamento do capital, seguros de velhice, reclamação para o dominio social dos serviços collectivos, regularisação da concorrencia, etc., etc., todas essas reformas revolucionarias, tentadas pelo socialismo, são tigellas d’agua morna, deitadas sobre uma gangrena. São ainda subterfugios traiçoeiros do horrendo burguez. O mal, o verdadeiro mal, que é necessario extirpar, é a propria ideia de direito, de lei, de auctoridade, de Estado.
O homem nasceu livre como nasceu bom e proprio para ser feliz: e todavia por toda a parte está escravisado, e pena sob essa escravidão. Mas quem o escravisa, quem o faz penar? A sociedade com toda a sorte de peias, de estorvos, que se oppõem á livre expansão da natureza humana, que é fundamentalmente e innatamente boa, e que não poderia nunca ser senão um radiante progresso do homem no sentido do bem. Esses impecilhos odiosos são as leis, a auctoridade, o Estado. A propria moral é, como o direito, ficticia, e um outro jugo imposto ao homem. Tudo isso, pois, tem de ser destruido, para que a nova humanidade realise, na absoluta liberdade, a absoluta felicidade. Mas como a sociedade está irremmediavelmente impregnada d’esses funestos conceitos, que são a sua alma, e o seu principio de cohesão, é inutil fazer revoluções para a transformar ou melhorar; porque, qualquer que seja fórma que se dá á sociedade, ella conterá sempre em si o virus horrivel: — o principio do direito, do Estado, da auctoridade!
A unica solução portanto é arrasar completamente a sociedade, matando e sepultando para sempre sob os seus destroços esses principios fataes que até agora a têm governado, e depois recomeçar de novo a historia desde Adão. E a sociedadetem de ser destruida, em bloco, toda ella, sem se empurrarem para um lado os culpados, e sem se resguardarem para outro lado os innocentes. No mundo actual não ha innocentes. De certo existe uma classe mais especial e odiosamente criminosa — a classe dos ricos, que foi quem concebeu, para seu proveito e contra os pobres, esses estorvos moraes e sociaes, que se chamam direito, auctoridade, Estado, e que são a causa de todo o mal humano. Mas a sociedade inteira é solidaria e responsavel do mal. Todo aquelle que pacificamente se aproveita da protecção das leis é tão culpado como o monstro que inventou as leis. E uma costureira que se priva de apanhar uma flôr n’um jardim publico é já uma cumplice da sociedade, porque, pelo seu consentimento tacito, ella concorre para que se perpetue o despotismo do regulamento. É pois necessario destruir tudo, — e atirar indiscriminadamente a bomba redemptora contra as classes exploradoras, contra as classes voluntariamente exploradas, contra a cidade onde se realisa a exploração, contra as proprias creanças que nascem, porque ellas já trazem em si o virus da submissão exploravel.
Tal é em resumo, muito em resumo, a theoria do anarchismo.
Basta que ella seja enunciada para que se lhe reconheçam logo todos os symptomas d’uma allucinação morbida. Não ha n’ella proposição que não seja chimerica. Uma só é exacta: aquella pela qual o anarchismo se prende ao socialismo, e que estabelece, com razão, que a presente organisação social, em que uma classe possue todos os gozos e outra soffre todas as miserias, é iniqua.
Partindo do facto d’esta grande e atroz injustiça, o anarchista começa, logo que d’elle se afasta, para lhe procurar a causa e a cura, a delirar. Delira quando, ao procurar a causa do mal, a encontra no principio do direito: e delira ainda mais quando, ao procurar a cura do mal, a entrevê ou, antes, claramente a vê, na destruição da humanidade pela dynamite. O anarchista é pois, no fundo, um socialista que caminhou seguramente, por um caminho racional, emquanto foi, como socialista, accusando a organisação da sociedade — mas que depois, ou impaciente d’esse lento caminho juridico, ou cedendo aos impulsos d’uma natureza desequilibrada, deu um grande salto para fóra da realidade, rolou no absurdo, e cabriolando através d’uma metaphysica insensata, veiu cahir miseravelmente em praticas d’uma ferocidade selvagem.
Ha pois razão para dizer que o anarchismo é uma doença, uma exacerbação morbida do socialismo.
Mas como é que esta seita de doentes tão disparatada na sua doutrina, e tão impotente nos seus meios de acção (o que obsta sempre á efficacia de qualquer propaganda), se mantém e alastra na proporção de um para mil? O anarchismo decerto se desenvolve, como todas as epidemias, por ter achado em torno uma atmosphera propicia e mesmo sympathica. A verdade é que toda a sociedade que elles desejam arrasar, é tacitamente cumplice dos anarchistas.
Esta cumplicidade, que mal percebemos, mas que é real e activa, tem dous motivos: — um extremamente nobre e honroso, que é a nossa philantropia, a nossa crescente piedade pelos que soffrem, e outro, extremamente baixo e vergonhoso, que é o nosso doentio enthusiasmo por tudo quanto é extravagante, monstruoso, hysterico, fóra da calma razão e do equilibro da vida. No anarchista nós vemos dous homens, com quem secretamente e sinceramente sympathisamos: — um é o desgraçado, que padeceu frio e fome; outro é o allucinado que se ergue da sombra, com a sua bomba na mão, para fazer de todo este mundo, de todas as suas glorias e de todas as suas riquezas, um montão de negros destroços sem fórma e sem nome! E tão pervertidos estamos, que eu não sei realmente por qual d’estes dous homens nos interessamos mais — se por aquelle que sensibilisa o nosso coração, se por aquelle que excita a nossa imaginação. Francamente, qual nos emociona mais — o infeliz ou o monstro? Desconfio que é o monstro.
Em todo caso, nós estamos tacitamente, pelo coração e pela imaginação, em sympathia com o archista. E quasi se póde dizer que, exceptuando a porção mais egoista e espessa da burguezia, alguns homens de estado a quem por profissão são vedadas a sensibilidade e a phantasia, todas as classes mundanas, intellectuaes, artisticas, ociosas, se estão abandonando com voluptuosidade ás emoções novas do anarchismo. Desde já existe, muito contagioso, o dillettantismo anarchista. Duquezas moças, cobertas de diamantes, condemnam a má organisação da sociedade, comendo codornizes truffadas em pratos de Sèvres. Nos cenaculos decadistas e symbolistas, a destruição das instituições pela dynamite apparece como uma catastrophe cheia de grandeza, de uma poesia aspera e rara, e quasi necessaria para que o seculo finde com originalidade. E nada caracterisa mais estes estados d’espirito, onde alguma sinceridade se mistura a muita affectação, do que a phrase já historica do poeta Tailhade. Ao saber, em uma cervejaria litteraria, que Vaillant acabava de atirar a sua bomba na camara dos deputados, este symbolista exclama languidamente e quasi era em extase:
— Já vae pois desabando o velho mundo!... O gesto de Vaillant é bello!
«O gesto é bello!». Todo Pariz repetiu, com mal escondida admiração, esta phrase que revelava aos profanos a belleza esthetica do crime anarchista. «O gesto é bello!». E muito honesto moço, incapaz de pisar voluntariamente o pé do seu semelhante, reconheceu, sentiu a belleza do gesto de Vaillant — a belleza d’aquelle braço magro que se ergue lentamente, solemnemente, e deixa cahir a morte sobre um mundo condemnado. Os anarchistas, elles proprios, já fallam na belleza do seu gesto. N’uma sociedade tão culta como a nossa, e tão saturada d’arte, uma revolta social deveria necessariamente ter, além da justiça, a elegancia plastica, a graça magestosa mesmo, no seu furor. O anarchismo já se sentia justo. Os poetas mais entendidos em harmonia e rythmo acabam de lhe assegurar que elle é tambem estheticamente bello.
Mas é sobretudo na imprensa que o anarchismo encontra um mais vivo estimulo ao seu desenvolvimento. Todos os jornaes de Pariz, quer sejam ferozmente hostis aos anarchistas, quer nutram por elles uma mal disfarçada benevolencia, são unanimes n’um ponto: — em os cercar da mais prodiga e resoante celebridade. Um general victorioso, um grande homem de estado, um poeta como Hugo, um sabio como Pasteur, nunca tiveram na imprensa de Pariz um reclamo tão minucioso como tem qualquer aprendiz de anarchista, que atire contra um velho muro uma bombasinha timida.
Se é anarchista, se lançou a bomba — é d’elle a fama universal, que nem sempre conseguem os santos e os genios.
Mal se póde imaginar a que excessos se abandonou a reportagem de Pariz a respeito de Vaillant. Os menores actos da sua vida, a góla de astrakan do seu casaco, o seu modo de enrolar o cigarro, o que comeu, o que disse, o sobr’olho que franziu — tudo foi miudamente e clamorosamente contado ao mundo com um calor em que a propria indignação tinha não sei que de laudativa. De sorte que hoje em Pariz para se ter uma verdadeira celebridade, é melhor atirar uma bomba a qualquer corpo do Estado, do que escrever a Lenda dos Seculos.
Assim fanaticamente convencido da justiça superior da sua ideia e tomado mais fanaticamente desesperado pelas brutaes leis de excepção que contra elle decreta o Estado; cercado das sympathias dos humanitarios; declarado estheticamente bello pelos poetas; apreciado como uma novidade picante pelo dilettantismo mundano e magnificamente popularisado pela imprensa — como não ha-de o anarchismo alastrar n’essa proporção temerosa de um para mil?
Para que não crescesse, como planta bem regada, e ao contrario se estiolasse, seria necessario que elle proprio se persuadisse, se não já da falsidade da sua ideia, ao menos da inutilidade das suas praticas; que o Estado não suscitasse contra elle leis de excepção, odiosas e intoleraveis ao espirito de equidade; que os humanitarios o reprovassem pela sua indiscriminada condemnação de innocentes e culpados; que os poetas e os artistas descobrissem que o gesto é meramente bestial; que o dilettantismo se desinteressasse d’elle como de um banal partido politico; e que a imprensa o envolvesse em um silencio regelador.
Então sim! Talvez eliminadas estas condições que a favorecem, a febre que produz o anarchismo se calmasse, e o anarchista, restituido á saude intellectual, reentrasse no largo e fecundo partido socialista, de que elle se separa em um momento de delirio.
Assim possa ser! As guerras servis (e o anarchismo é uma guerra servil) nunca conseguiram senão desenvolver nas classes oppressoras os instinctos de tyrannia, e retardar funestamente a emancipação dos servos. Cada bomba anarchista, com effeito, só addia, e por muitos annos, a emancipação definitiva do trabalhador. Além d’isso os anarchistas que até agora têm lançado a bomba, não são puros; têm todos no seu passado um crime, e um crime feio, de malfeitor. De sorte que não se sabe bem se a bomba é n’elles um primeiro acto de justiça, se um derradeiro acto de perversidade. Para que a bomba pudesse ter uma alta significação social, seria necessario que fôsse lançada por um justo, ou por um santo. Até que surja esse santo para santificar o anarchismo, o melhor que se póde dizer d’elle, quando se não seja um capitalista apavorado e enfurecido pelo pavor — é que o anarchismo é uma epidemia moral e intellectual.
Ora o dever da sociedade, perante uma epidemia, é circumscrevel-a, isolal-a — não crear em torno d’ella, por curiosidade depravada d’um mal original e raro, uma vaga atmosphera de sympathia, d’admiração litteraria, de piedades estheticas, e de delicioso terror que goza a novidade do seu arrepio.
Toda esta larga aragem de favor é um crime — porque animando indirectamente a obra abominavel do anarchismo, retarda directamente a obra util do socialismo, e concorre para que se prolongue, mais revigorada pela reacção, esta ordem social, que é tão cheia de desordem.
Mas demais fallámos de bombas! Bem vos basta, caros collegas e amigos, as que ahi vos cahem em casa (e que de certo tambem não comprehendeis bem) sem terdes ainda de vos preoccupar, por dever critico, d’aquellas que aqui estouram sobre o nosso velho mundo. Todas estas bombas, com effeito, são bem difficeis de explicar, de deslindar... Rebentam, matam, ha mulheres que choram, e a desordem social cresce. Todavia ellas são arremessadas com convicção e por um amor ardente do bem publico. Emfim, o que podemos affirmar sinceramente é que — cá e lá más bombas ha.