Em Tigellópolis

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Em
Tigelopolis.

Escrito por Lobato por ocasião da Festa de
Tremembé, a comemorar tal com o foi de
suas mãos. Emoldurar por ele. (1906)
EM TIGELLOPOLIS


No ultimo sabbado de julho um troly complicado patinhava pesadamente na areia espessa do caminho velho, arregalando os olhos aos transeuntes que gramavam no João Guedes.

Parecia menos um troly que uma viatura de ciganos em mudança.

Grandes pacotes de roupa, malas e embrulhos de toda a sorte na rabada, uma chocolateira, uma vassoura, uma recua de chapeus e mil outros appendices deformavam o vehiculo prosaicamente.

Completavam o calhambecaço um cocheiro cor de bife crú, dois Teixeira de Freitas, duas bestas ruanas e um doutor para breves tempos. Mas não eram ciganos nem iam para Juquery.

Trotava o troly com destino á villa das tigellinhas onde os seus transportados tinham em mira parodiar por quinze dias na republica com R. grande que vae do Amazonas aos confins do Judas, etc. Tres poderes naturalmente se constituiram. O executivo, na pessoa do futuro bacharel Valdomiro, um campeão de lucta romana que não usa abotoadura no punho direito para mais facilmente arregaçar as mangas e dizer cheio de orgulho, fixando olhos enamorados n'uns pelotes duros que se lhe formam no biceps: muque é isto! Incumbia lhe pol-o em acção no caso d'alguma aggressão externa, e, inda mais, precaver a republica contra o parisitismo sobrepticio que é o mal dessas instituições.

O judiciario, na do dr. Gusmão, moço de peso e fraque, e em cuja protuberancia nasal um austero par d'oculos impa com sisuda gravidade.

O poder legislativo, na d'um mocinho cor de telha, Bolato de nome, em cujos hombros recahiu a tarefa ardua de propor umas tantas leis fundamentaes e ter sobre si as chaves da casa e as responsabilidades da instituição . Bem vascollejados e com os ouvidos azoados pelo nhec-nhec do troly, ao entardecer desse sabbado de julho, pisaram com pés dormentes os schistos do Tremembé os tres poderes improvisados.


II


De como inopinadamente se resolveu um problema difficil

Chegados que foram, o poder judiciario abalou incontinente para a villa a cata d'um jantar que lhe acalmasse as dores cruciantes do estomago exigente e vazio, emquanto os outros, vindos jantados, arregaçaram mangas e investiram contra a tarefa penosa da arrumação da casa. Gemeram as vassouras, os embrulhos se viram desfeitos n'um relance, as roupas foram occupar os pregos das paredes, demarcaram se as possessões de cada um, as aranhas foram enxotadas dos cantos mail-as teias, veneraveis tapetes calvos extenderam se pelo chão; um serviço optimo que não desagradaria á mais rispida dona de casa.

Tudo prompto, davamos a ultima espanadella nas cadeiras quando um problema de máos bofes se erige ante as nossas mãos encardidas : como laval-as? não ha agua !... Um calafrio gelou os dois poderes; de mãos sujas como ir á villa ? Taciturnos e desconsolados cahiram ambos em duas cadeiras a parafusar no imprevisto X. Valaomiro olhava o ceu estrellado com olhos que implovavam uma nuvem promissora d'aguaceiro. Bolato ruminava na má organisação do mundo; si não era tão natural que as aguas viessem ter as bacias como ao iman a limalha, sem que fosse mister o intermedio do barril, da lata e do aguadeiro... Torturavam-se nesses pensamentos atrozes quando...

— Hip! hip! hurrah!

Duas rebrilhantes latas d'agua entraram casa a dentro repimpadas na gaforinha de duas pretas lusidias ! E logo atraz, Gusmão, bem jantado, cheio de novidades, a mascar um palito. E o Mercolino, e mais gente. Um formidavel Ale guá saudou o povoamento da republica e a chegada do precioso liquido.


III


A CAÇADA FAMOSA

No outro dia após um café laboriosamente feito de collaboração e bebido com gana, Bolato e Valdomiro encheram os bolsos de cartuchos e de espingarda no hombro se foram ás aves. Valdomiro durante a caminhada contou proezas inauditas acontecidas com elle nos sertões da Cantareira; onças pintadas mortas a faca, jacarés fulminados com um tiro no olho, tiro em bando de baitacas matando sete, e outras...

— Uma vez...

— Valdomiro, não muita, eu tambem sou caçador, sei como são essas cousas.

— Eu juro! dou minha palavra! Uma vez...

E vinha uma pilula grande como uma abobora que Bolato fingia engulir ingenuamente emquanto ia preparando o troco, outra maior. Sairam historias de garças, aves do paraizo, jacús, veados brancos, corvos vermelhos, pacas monstros... toda uma meragérie bamburgueza ; historias de tiros maravilhosos...

— Eu nunca errei um tiro; minto, errei um, mas descobri depois que o cartucho estava sem chumbo.

— Valdomiro ! Valdomiro !

— Serio ! juro.

Neste momento uma rolinha Sentou a dez passos. Valdomiro fez 'psiu ! e engatilhando a arma, foi se aproximando da avezinha, pé ante pé, encoberto pela macega.

A' distancia de dois metros parou e applicando o cano da espingarda bem d'encontro a cabeça da rolinha puchou o gatilho. Um tiro i m m e n s o atroou o ermo. A rolinha assustada mas incolume frechou para o mattò em vôo seguro.

— Matei, matei ! Esta aqui ella !

— Onde, onde ?

— Ah! não é, mas deve estar por aqui...

E procurava a em todas as direcções, remechia as moitas, arrancava arbustos... A muito custo se convenceu que erràra.

— Diabo! é o primeiro tiro que erro em minha vida. Não sei como foi isso...

— E o outro primeiro?

— E' verdade ; é o segundo tiro que erro... mas a bichinha tomou chumbo, juro! vae morrer adiante, a coitada.. Não viu como sahiu penna?

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No outro dia, á porta d'um barbeiro alguem ouviu este dialogo :

— Soube da caçada de hontem?

— Não...

— Oh! pois o Valdomiro embrenhou-se na varzea e voltou de lá com uma linda fieira de marrecas, saracuras e uma grande lontra.

— E'?

— Uma caçada linda! Diz que não perdeu um tiro ; atira muito bem aquelle menino, atira que faz inveja...


IV


SUB TEGM NE


No dia immediato as marrecas e as lontras respiraram Os formidaveis heroes cynegeticos iam descançar dos grandes labores da vespera n'um pic-nic que fosse dupla homenagem a Horacio e a Brillat — Savarin Enquanto os olhos se deleitas sem no magnifico panorama da varzea com a serra immensa ao fundo, a bocca iria mastigando deliciosos bolinhos de frigideira preparados pelas mãos cheias de graça e mimo das commensaes que deviam chegar ao meio dia.

Essa hora foi esperada com impaciencia e, emquanto o tremsinho, na ultima subida, arfava com desespero, pondo os bofes pela bocca, os tres poderes de pé na gare desfolhavam mentalmente um malmequer de palpites : Vêm—nãovêm—vêm—não vêm...

Vinham. Um punhado de toilettes claras borboton do bonde como flores que cahem d'uma jardineira. Deliciosas !

Formavam um ramalhete gracioso, capeado por veneravel folha de tinborão. Miss Farfaila, cor de neve, recordando uma edelweis dos Alpes em tarde opaca, que era cor de tarde opaca a sua blusa paille—d'-orge.

Em seus olhos castanhos todo um mundo de enigmas traiçoeiros boiava. Vinha ma'm'zelle Bijou, flor morena de graça parisiense e salero sevilhano. Os olhos escuros, avelludados por uma vaga saudade, tinham a peraltice de dois gemeos cassulas.

Vinha d. Exquise, flor meridional, plethorica de vida e espirito scintillante, alma, barulho e electricidade da festa.

Vinha d. Quiteria, emerita fritadeira de bolinhos e capitã do bando. E vinha ainda, todo nervos e espinhos, irritadiço e amargo, o admiravel discutidor de xadrez dr. Bilis. A casa foi invadida e logo reinou o barulho, a parolagem gárrula, a pilheria, a risada.

E como havia disponivel algum appetite não tardou no fogareiro a chamma azul sob a chocolateira, nem furtos de bolinhos nas cestas inda fechadas.

Mas o bouquet não estava completo; faltavam a flor tropical e o lotus silencioso. Não tardaram, porém.(Continúa)

— Boa tarde ! boa tarde ! vivam !

D. Dhalia e d Quietinha entraram radiantes de frescor e mocidade, vestindo leves cassas claras. Novas risadas, novas piadas; a parolice cresceu de vulto e em breve a sala se viu transformada n'um viveiro de rouxinoes e arapongas, em cuja symphonia de gorgeios o grasnar dos tres poderes punham fon-fons de trombone.

Mas o café começou a chiar e todas as attenções se voltaram para elle.

As tigellinhas se perfilaram em redor e não tardou que um forro negro e fumegante cahisse sobre ellas.

— E colherinhas?

— E' verdade! ninguem se lembrou de trazel as !

Oh ! oh !

Choveram soluções para o problema, mas nenhuma satisfazia, e estavam todos indecisos quando Bolato cortou o nó gordio.

— Elege-se um dedinho á categoria de colher e elle fará o serviço.

— Bravo ! bravo ! Eu voto no fura-bolos de d. Exquise.

— E eu no minguinho de Bijou.

— E eu no pae de todos de Mis Farfalla.

Houve barulho, discussões. O accordo era impossivel, os candidatos innumeros. Afinal ficaram reduzidos a dois, o furabolos de Exquise e o minguinho de Farfalla, mas mesmo assim nada se conseguiu ; prós e contras s'entrechocavam sem que a escolha fosse possivel. Formou-se então uma liga para votar no terciles. E sahin victorioso o candidato da colligação : o mata piolho de d. Quiteria. (Nota urgente : a metade desta historia de dedinhos não se deu, mas é assim que se escreve a historia). Resolvido o problema e tomado o café com os bolinhos admiraveis abalou o bando para o Parahyba em cuja margem, sob a figueira, se ia brindar la joie de vivre com um Ponsardin que Bolato carregava religiosamente.

Em caminho, gazillando como canarios, de sombrinhas claras abertas, o bando parecia um bando de garças seguidas de quatro urùbús. A figueira immensa de immensas raizes chatas, estatelada a beira d'agua numa pose escarranchada, os recebeu com uma sombra de deliciosa frescura. O rio rumorejava-lhe ao pé, carregando molhos de nymphéas no dorso líso e rebrilhante.

A serra ao fundo murava d'azul a paysagem.

— Como é bonito !

— Lindo !

— Delicioso !

— Que ar agradavel, não? Dhalia.

— Então! Exquise.

— A fonte alli... tão bonito !...

— Oh ! lindo !

Shocking ! Magnificent !

Exgottadas as interjeições e os engrossamentos á natureza, cada um se foi sentando onde melhor commodo achou. Intima e doce causerie. Todos se sentiam felizes, ganhos pelo fluido pantheista da natura. Sentiam-se encorporados nella e gozavam a suave embriaquez da joie de vivre. Infiltrava as carnes e o espirito um pouco da absoluta felicidade que deve ser a felicidade das boas arvores ramalhudas e idosas. Assim estiveram por largo tempo.

A' hora da libação o Ponsardin estourou entre hur ahs. As moças mal molharam nelle os labios, mas, para compensação os homens demonstraram uma vez a mais a voracidede dos seus appetites. Surgiu uma ideia nesse interim. Escrever a historia daquelle dia e confiar á correnteza do rio a garrafa com ella dentro e fazel a assim viajar como ás garrafas de Julio Verne. Mas essa ideia morreu no ovo. Todos se preparavam para a volta, amodorrados pelo mormaço, ja cançados.

— Chega de natureza, vamos ver gente.

Ao sahir dalli para o caminho havia a atravessar um matto roçado.

Todos o fizeram, mas chegada a vez do dr. Bilis o tinhoso armou-lhe uma das suas. O homem sem mais aquella perde o equilibrio e cahe sentado n'um espinhento pé de cragoatà

— Ah! ah ! ah ! ah !.

A hilaridade feminina vibrou como crystaes ; a masculina roncou como bronzes.

O homem levanta-se atordoado e sentindo que o agarravam por detraz, zanga-se deveras e ralha :

— Ora largue, deixe-se de graças. Largue do meu paletó, homem ! Eu não gosto de brincadeiras !..

O quia ! quia ! quia ! das moças redobrou n'um crescendo.

O que segurava o paletó do Bilis era um pé de cragoatá arrancado que lhe dançava atraz, pendurado como um rabo.

— Largue ! ja disse, largue ! sinão eu parto-lhe a cara, homem do diabo!..

Mas percebeu logo o engano e encafifou de vez, emquanto a risada vascollejava o bando com mais intensidade ainda. Foi o mot de la fin da festa


V


COISAS ENFADONHAS

Para matar as saudades que o convescote deixou, uma grande excursão foi marcada para o dia seguinte. Excursão venatoria e piscosa. Promptos anzoes e cartuchos, de vespera, pela manhã Bolato, Valdomiro e um novo, Raffael, rapaz proprietario d'um sensacional na riz, tomaram rumo do Parahyba. Pelo caminho cada um desfiou o seu rosario de façanhas nauticas.

— Eu, começou Valdo, já remei trinta e seis horas a fio, sem descançar nem para accender o cigarro, e não me cancei absolutamente nada !

— E eu, interveiu Raffael, que uma vez.. uma vez... o que é que eu fiz mesmo uma vez? ah ! nadei contra a correnteza desde a Penha até o Esperia. Duvidam ? pois perguntem a titio, elle sabe.

— E eu então, completou Bola, que atravessei Mar de Hespanha a pé?

As ondas eram tão fortes que..

— E eu... E eu...

E assim, mentindo como cães, chegaram ao bote, metteram-se dentro e desatracaram.

Foi uma lastimaNinguem sabia remar. Si a rota era para a esquerda o bote guinava com a maior sem-cerimonia para a direita. Fingiam então estar remando para a direita. Mas mal começava o fingimento o relo do bote entortava para a esquerda.

Furiosos, cada um culpava o outro da impericia, e eram desaforos e berros de todo o tamanho.

— Voce é um inepto ; remar é isto, olhe ! Mas isto sahia uma nova inepcia.

— Qual! com voces dois é impossivel sahir do lugar, dá cá o remo que eu já ensino.

O remos mudavam de mãos mas não mudavam de conducta. E mal fincados n'agua espadanavam-na encharcando as roupas. E a correnteza afinal de contas era que levava a melhor: lentamente o bote derivava sobre ella. E para cumulo de má sorte um grupo de moças appareceu na ponte. O medo de fazer fiasco redobrou as energias, mas esse redobro de energia redundou em maior atarantamento e maior fiasco.

Ellas riam do alto, aparteavam, davam conselhos. Afinal, sob aquelle estimulo, ganharam geito os remos e o bote subiu o rio sem maior maluquice.

— Uff ! Cancei.

— E eu ja estou de callos na mão.

— Foi o diabo, as moças terem apparecido...

Mala suerte !

— Com vocês não me metto n'outra.

Lamentavam-se, se entre accusando, quando veiu distrahil-os um martin-pescador atravessando o rio em vôo baixo e pesado.

Bolato levou a arma à cara.

— Pum !

O misero passarinho estrebuchou n'agua

Houve felicitações, elogios. Appareceu outro ; outro tiro, outros elogios. Bolato estava inchado. Nisto uma enorme saracura...


VI


De como sendo cacetes essas historias de caçadas, fica a hisloria d'essa em meio.

A verdadeira caçada desse dia foi um pato assado em panellas de Taubaté. Havia um appetite feroz e foi entre berros de enthusiasmo que a preciosa ave fez a sua entrada triumphal na sala. Unhas vorazes cahiram sobre elle e n'um relance do pato só restava a carcassa. Como havia uma garrafa de vinho rarochampanha foi lembrado que melhor occasião não havia de mudal-o de vasilhame. Gusmão protestou indignado.

— Tomar aquelle vinho com este pato é uma indignidade que ha de deixar a vocês com uma mancha negra no passado ; não creio que vocês a commettam ; appello para o bom senso...

— Nada disso ! a votos ! o que a maioria decidir...

— Pelo amor de Deus ! guardem o vinhoa champanha ! Isso é uma calamidade !

— A votos, a votos !

Posto a votos passou que o vinho passasse incontinente a fazer companhia ao pato no estomago. Gusmão ficou apopletico.

— Embora vencido pelo numero, eu lavro o meu protesto solenne contra essa heresia sem nome, esse disparate gastronomico que fará fremir no tumulo os ossos de Savarin.

Acceito o copo que me toca mas vencido, com um nó na garganta. Disse, e estourou o copo.

O vinho n'um relance mudou de casa e a garrafa vazia voou pela janella como um bolido. Gusmão bebeu o com desespero, em colera.

E foram digerir o pato e mais o vinho na roleta, vendo a bolinha fazer piruetas e o Zezé jogar tostões no esguichoNesse dia o diabo tentou-os e as finanças republicanas soffreram o primeiro desfalque. A terceira duzia comeu-lhes umas colleçõesinhas de fichas.

— Bem feito, ralhava o Gusmão, si vocês não tivessem bebido o vinho..estragado a champanha... E' castigo !...


VII


Nesse dia não, mas n'um dia igual a esse, houve por lá cousa divertida. Alta noite já, ron cava o Gusmão e cochillavam os outros quando entra Valdo com uma pipa pela mão. Accordam-se todos intrigados.

— Compraste isso, Valdo? que maluquice !..

— Que vinho é? Malvasia ? Xerez ?

— Ora não sejam palermas, retrucou Valdo, este é o meu vasto amigo Zequinha que perdeu o trem e vem dormir cá.

Foi um desapontamento geral, mas ficou por isso ; cada qual cahiu na sua cama e em breve os roncos de Gusmão ecoavam de novo no silencio da casa.

Fazia uma noite gelada. Na Patagonia talvez o frio não fosse tanto. Um frio que varava todos os cubertores, a colcha, o lençol, as carnes e ficava grudado nos ossos a arder, a arder... Um frio que tirou a Bolato o somno. E sem somno Bolato ruminava coisas feericas, quando uma ratazana e principiou a roer a porta ; roia, roia, roia, n'um barulho de quem bate o queixo. Uma hora d'aquillo era toleravel, mas á segunda os nervos de Bolato começaram a s'abespinhar. E d'abespinhados ficaram irritados. E irritado Bolato passa a mão na botina e arremessa a contra a porta roida. O ruido cessou, mas dahi ha segundos recomeça de novo.

Outra botina, novos segundos de socego ; o rato insiste e roe, roe com mais furor. O castiçal voa contra a porta. E depois do castiçal a caixa de navalha. E segue-a um pé de chinello. E vae logo atraz outro pé de chinelo. O rato insiste ; roe, roe, roe... Era de deixar doido! E assim se passam duas, tres, quatro, cinco horas... Por fim o cançaco venceu e um somno de pedra arranca os tympanos de Bolato dos dentes do inquisilante roedor. Lá pelas 9 horas o levantamento começou e Gusmão appareceu passou com cara de reumascando injurias, estremuahado, resmungando.

— Que approveite, que hoje não me escapa ; metto cincoenta gatos esfomeados cá dentro, e...

— Ah ! o rato ! pensei que fora eu a unica victima...

— Qual unica ! não me deixou dormir a noite inteira,o raio.

Nisto chegoaa Valdo em camisola, com cara de ressaca tambem.

— Vocês já viram que raio de rato? Não preguei os olhos a noite inteira.

O caso intrigou aos tres. O tal rato devia ser coisa descommunal. O Chaby dos ratos com certeza.

—Eu vi mesmo,—começou Valdo a mentir—eu vi mesmo uma sombra correr d'um lado para outro, mas nunca suppuz... Tinha assim o tamanho dum cachorrinho paqueiro...

Era elle, o tal rato, com certeza.

Osoutross'entreolharam. Valdo impossivel dava novos pormenores, explicava-se. Foi quando veiu rolando dum quarto o Zequinha, com as feições transtornadas, cambaleando de sonno e abrindo boccarras immensas, em bocejos que ameaçavam engulir o mundo.

Contaram-lhe o caso.Elle fez uma careta entediada e escancarou um bocejo.

—Ora rato, rato! Vocês estão bestas. Não houve rato nenhum... Fui eu que bati o queixo a noite inteira. Voces põe me a dormir no chão cimentado e dão me para coberta um lençol...

E querem que uma pessoa n'um inverno destes não rebente de frio ! ? Não morri porque não tinha chegado a hora. Vocês são uns canalhas, uns trancas... Não falem mais commigo.

E passoualavarorosto, furioso,n'umacolerasurda, mais magro meiaarroba,com olheiras profundas

O outros tres ficaram um momento a olhar um para acara do outro. Depois explodiram n'uma gargalhada inmensa. Riam, riam de cahir. E o Zequinha, roxo de raiva, ensaboava o rosto, com vontade de chorar de desespero.

VIII
A SANGUESUG A


Aos primeiros desastres financeiros da republica os pais da patria compenetraram se dos seus deveres e emprehenderam a obra patriotica da sua consolidação economica. Para isso cada um andava apprehensivo, trancado comsigo mesmo, de mãos ao bolso e una ruga na testa, a medir silenciosamente o comprimento da sala. De vez em quando recorriam a calculos, que eram logo abandonados : o mais forte em mathematicas só sabia a taboada até a casa do cinco. Grandes planos se incubava nos respectivos cacos... Planos infalliveis para rebentar as bancas de roleta. O primeiro que frutificou foi o de Valdo.

— Fazemos uma vacca e jogamos tudo na terceira duzia : dá ; triplicamos a parada : dà ; atochamos tudo n'um palpite...

— Dá...

—...dá, e... e a banca rebenta !

— Optimo, mas não presta ; o melhor é o meu—atalhou Gusmão. Como vocês sabem a roleta tem 38 numeros.

Ora, jogando em dez numeros, joga-se no terço menos oito; logo, segundo o calculo das probabilidades, as chanças do banqueiro estarão para as do apontador na proporção de...

— E' magnifico o teu plano mas muito comprido ; quando você acabar de expol-o a festa estará acabada e não podemos realisal-o—interveiu Bolato.

O unico furo que eu acho é o seguinte : fazemos sociedade com o Bom Jesus...

—Já vem, ja vem você com brincadeiras! O negocio é serio, precisamos ganhar, custe o que custar, e já que vocês desprezam o meu 1º plano apre sento um segundo.

— Optimo, vejamos.

— E fazer uma vacca e jogar bestialmente a torto e a direito.

— Topo !

— Topo !

Fez-se a vacca, jogou-se bestialmente e mais bestialmente ainda se perdeu tudo.

A' noite quando se recolheram vinham os tres júrúrús, de mãos nos bolsos e olhos no chão.

— Si não fosse você fazer aquella jogada...

— Eu ! eu ! eu fiz o jogo que vocês indicaram.

— Ora não diga asneiras ! você fez um jogo d'imbecil. Nem o Amaro faria aquillo. Jogar só nos numeros que não davam... E' d'arromba !

— Vamos ver amanhã o que você faz.

— O que eu faço? o contrario do que você fez e juro como hei de ganhar.

No outro dia nova vacca e jogo novo. Perdeu se de novo bestialmente apezar do jogo contrario. Voltaram de bico cahido e cheios de lerias.

— Como não se havia de perder? Voce esteve o tempo todo torcendo...

— E' boa ! pois então...

— Pois é, hontem torcemos, hoje como o jogo era o contrario vocês deviam destorcer.

— Começa ! começa ! Você não toma nada a serio, nem o jogo... Arre !

Abandonaram de vez o jogo bestial de direito e de avesso e recomeçaram os planos infalliveis. Mas a macaca andavalhes ás costas e não houve enxotal-a. A bancarrota batia ás portas. Alguem lembrou um funding tean. Outro um emprestimo. Venceu a ideia do emprestimo. O maldicto rodinho do Leopoldino arrecadou no quarto dia o producto liquido do emprestimo. Um segundo emprestimo fracassou. (Emprestimo, emprestimo, emprestimo... Credo !). E como a bancarrota batia com muita força abriu-se a porta para não tel-a arrombada.


IX


A BANCARROTA


— Que vontade de tomar café... ha assucar?

— Houve.

Suspiros. Olhares saudosos pousados na mesinha outr'ora tão farta, onde havia assucar, pó, espirito de vinho, pão...

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— Dá-me um cigarro ?

— Não tenho, fumei o ultimo hontem.

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— Tens um tostão ahi ?

— Não; para que ?

— Para mandar buscar uma lata d'agua. Não temos agua para lavar o rosto amanhã.

— Olha o fidalgo! pois vanos laval-os no Parahyba; tão perto...

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— Si eu tivesse um nickel!..

— Que fazias ?

— Mettia-o na caixa economica.

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Após a penuria a humilhação. Um Rockfeller surgiu entre nós, o Marcolino[1]. Entrou nesse dia batendo os pés. Sentou-se na cadeira de balanço e estirou-os sobre o sofá. Saccou do bolso um cigarro e poz se a pital-o com magestade, sorrindo de vez em quando a alguma ideia cor de rosa que lhe atravessava o cerebro. outros extranharam aquelles ares. Que diabo ! o Marcolino não era assim...

— O' Marcolino, que é que te aconteceu ?

— Ahn...

— Accorda homem, que é que te succedeu?

— Ahn...

— Viu o passarinho verde?

— Ahn...

— Dá me um cigarro?

— Não dou,

—Ué ! o homem está outro... Que será ?

Todos olhavam no sarapantados, perplexos.

Que seria ? Namoro ? Alguma conquista feliz ? Ninguem atinava. De repente o homem entre duas baforadas atrevidas murmurou telegrammaticamente:

— Vou hoje, Taubaté... querem nada ?

Ia para Taubaté... Oh assombro !

— Pois tens então essa fortuna que é uma ida e volta á Taubaté ? ó Marcolino extraordinario, ó Jacintho Galião !

— Dezeseis.

— Vae no dia dezesseis?

— Arre! como broncos ! digo que dezeseis mil reis.

— Dezeseis? deze... Repete, Marcolino, repete essa phrase feliz. Tens dezeseis mil reis ? Um abraço, amigo.

— E quebrados, coisinha...

O assombro chegou ao auge. Era inaudito aquillo. O inesperado milliardario viu-se rodeado da casa inteira. Todos queriam pormenores, todos anciavam pelo como da subita fortuna. Amollecido pelos engrossamentos ia elle explicar o phenomeno quando o bond apitou.

Rockfeller ergueu-se, accendeu outro cigarro ostensivamente e se foi a tomar o bond, seguido do nosso pasmo e da nossa admiração. Dezeseis ! Quinze e mais um ! E quebrados, coisinha...


X


Onde se prova que dinheiro
nos pès fica em maior segu-
rança que n'a'gibeira.

Marcolino foi (texto ilegível), mas voltou de tarde. Todos foram esperal-o na estação, com abraços, cheios de saudade. Elle apeou com serena gravidade, seguro de si, olhando para os pés.

— Então ? foste feliz de viagem ? não queimaste a roupa ? Vieste mais bonitão !

— E o rico dinheirinho ? quanto tens ainda ? hein meu rico Marcolinosinho.

— Não tenho mais nada, comprei este par de botinas ; não sou arara.

Todos os olhos desceram para o chão. Realmente, os pés do Marcolino se regalavam n'um par de botinas novas em folha. A indignação foi geral.

— Pois fizeste isso, homem de Deus !

— E' uma indignidade. Voce não é amigo, Marcolino, voce é um trasteE quer saber duma cousa ? não fale mais commigo, estamos mal.

— Nem commigo. Uma creatura que procede como precedeu merece o flagicio da posteridade.

— O que ? o Agricio ? Agricio de Camargo ?

— Falgicio, homem funesto de botas novas. Flagicio dos posteros. E' palacio ?

— Botina nova... que cousa ridicula ! E botina ringideira ainda por cima.

— Ficaste assim com um ar de sendeiro, meio parvo... tal qual bezerro caracú mestiço com china.

— Feio !

— Pé espalhado !

— Zé Faz Formas !

E o deixaram só.

O Marcolino perdeu os companheiros mas ganhou um optimo par de botinas.

Foi o unico que passou a perna na roleta. E nem se nas apparencias!...

XI


AMARO


— Aáá ! aáh !

— Vem cá, Amaro

— Aáá ! aáh

Amaro é o rei de Tigellopolis. Mais que rei ; é o supremo motor de tudo, o Omnifactor. Si o sino toca chamando o mulherio á reza, Amaro no largo, com um enorme riso de felicidade na cara, grulhando uns «aáh, aáh» de mudo, pendura-se n'uma corda imaginaria e rivalisa com o sineiro de Notre-Dame ; todo o repique fica sendo obra sua.

Mas atiçam foguetes. Amaro deixa o sino e sempre grulhando, sempre com o mesmo rictus entreabrindo lhe a beiçarra, Amaro se põe a fazer subir os foguetes—chiii ! — ; a fazel os rebentar — pon, pon ! a fazer cahir as varas—ziiit !—n'uma alegria, n'uma felicidade que mette inveja.

O bondinho apita. Amaro espicha a orelha : é signal de chegada. Amaro corre a dirigir o serviço. Corre, corre sorrindo, feliz, feliz. O bonde para, Amaro faz gesto de parar ; a locomotiva desengata, Amaro faz gesto de desengatar ; move-se, vae, vem, atraca uma gondola de schisto, muda de linha ; Amaro gesticula, corre ao lado, fal-a mover, fal-a ir, vir, atracar a gondola, mudar de linha. Findo o serviço Amaro está suado, cor de tijollo, mas feliz, risonho, contente comsigo ; o serviço ficou tão bem dirigido...

Um casal de noivos passa. Vem do Padre Eterno. Ella corada, de olhos no chão, a mão pendurada á cinta, um lencinho de renda pendurado á mão. Elle requeimado de sol, de chapeu novo, de paletó de diagonal novo, de calças novas, pisando em ovos com a maldicta botina nova.

Amaro zarpa atraz. Leva os à igreja, manda-os ajoelhar com um gesto e casa-os simultaneamente que o padre, com outro gesto.

Amaro está onde estiver a festa ; está perto dos foguetes, do sino, da locomotiva, do padre, do leilão, da fogueira ; està onde estiver alguma coisa em movimento, para a dirigir, para exercer sobre ella a acção da sua vontade.

Mais feliz què Amaro nem o mr. Joyense de Daudet, porque mr. Joyeuse acordava dos seus sonhos de ventura e em Amaro esse sonho é normal, dura os dias que dura o anno, durará os annos da sua vida.

Chamam-no de louco... Mas é essa loucura o ideal do homem, é a Felicidade Suprema ! Ver tudo roseo, ser o factor do movimento, guiar os astros e os foguetes, casar os noivos, ser a alma genitrix do Universo... Que válem a par desse estado d'alma as nossas pequeninas e fugazes felicidades ?

Já o disse Sheridan, que o louco...

XII


Suspende, penna que quando philosophas ès mais massante que um sermão de frade.


O tio João é outro, outro bohemio da vida ao ar livre que merece ir para a galeria dos Sabinos, dos Ilás, dos Trinakilos, dos Bemloces, das Nha Ignez Sutis.

Preto como um carvão. Lustroso como um par de botinas engraixadas.

Uns olhos velhacos ; velhacaria de raposa velha no falar e nos modos. Um modo de olhar com o rabo do olho, de cabeça baixa.

Veste farrapas e do cocuruto, onde a carapinha é mais emmaranhada do que o estylo do sr. Wenceslau de Queiroz, nunca sahe o chapeu; uma nesga de feltro pesado de sebo.

Tio João sabe viver. Tem a sua philosophia. Considerou que esta vida merece realmente o que della disse o patusco Salomão e resolveu leval-a de troça. Viu que cada um a cava d'um modo, uns com a enxada, outros com a lingua, outros com a gazua ; resolveu caval-a com o úrúcungo.

E' um modo de viver que talvez Erasmo não censurasse.

Com pequenas variantes, de instrumento e de meio, Florizel von Reuter não vive de outro modo. Nem o viveu Beethoven. Donde se vê que até a immortalidade pode Tio João aspirar. Mas não o faz.

Em vez da gloria prefere um nickel e daria a immortalidade em troca de dois.

Foi quanto lhe demos, um dia, no largo, para que cantasse.

Tio João não se fez de rogado.

Arrepanhou o peito da camisa e no peito nú ajustou a cuia co úrúcungo.

— P'ra que essa cuia no peito, Tio João ?

— P'ra fazer: hum, hum, hum, siô moço.

E demonstrou o explicado vibrando a corda d'onde tres notas simples tiravam um rythmo soturno e abafado.

E cantou n'uma voz de bohemio em ressaca, quebrada e baça :

Vancê disse que eu sou feio
Tenho nariz esborrachado
Que diria se suncê visse
O nariz do meu cunhado

Em torno uma rodinha se formava; chegou Valdo. Miss Farfalla appareceu á janella, branca cor de neve.

D. Quietinha e d. Dhalia que sahiam da igreja encaminharam para elle os seus passos, acompanhadas de Gusmão, muito lampeiro no seu fraque moderno. D. Lili tambem veiu, toda rosea, toda requebros cheios de graça, uma risada prestes a esvoaçar da boquinha gorducha, um «beijo de frade» escarlate, berrando na negrura do cabello.

E o negro, ancho d'aquelle auditorio repinicava o arame com arte consummada, grunhindo quadrinhas sobre quadrinhas.

Negrinha, minha negrinha
E' verdade não é mentira
Você anda se arregalando
E eu aqui lambendo embira.

— Bravo! bravo !

— Outra, Tio João, outra !

A rapoza fazia uns tregeitos, modulava uns accordes e de sandava outra, e outra, e outra, uma fieira. O commentario refervia, em surdina, cochichado.

— Já conhecia esse instrumeuto, Miss Farfalla ?

— Não, nem de nome; mas como é engraçado !

D. Lili mirava o com curiosidade.

— Si eu pudesse — disse — eu tinha este preto no quintal, n'uma corda, como um macaco; tão curioso, não?

Valdo aproveitou a vasa para distribuir pilulas.

— Conheci um russo que tocava isso maravilhosamente, com o pé. Vi no Polytheama, em S. Paulo. Tocava tudo, até as operas de Wagner. E' serio, não estou falando de caçoada não.

Nisto o Amaro desemboccou no largo e mal viu o ajuntamento correu para elle, a dirigir o serviço.

— Aaah! aaah !

Abriu um caminho por entre o povo e, bem de fronte ao virtuose, se faz a rir, n'um riso immenso espalhado pela cara inteira.

Tio João fitou nelle os olhos velhacos: e sorriu compassivamente, elle, o roto. E se poz a dançar para que o outro dançasse.

E outro dançou, julgando fazer dançar á raposa.

— Dança urso, dança urso — cantava Tio João repinicando a corda.

E o outro, groteseo, ridiculo, dava uns pulos desengonçados que destampavam a risada na rodinha inteira, mas alegre, feliz, director, ali tambem, de mais aquelle serviço, causa daquelles movimentos, factor dos tregeitos do neguo, dos sons de árúcungo dos versinhos, das risadas de Lili, das petas de Valdo, do fraque de Gusmão, alegre, feliz, um riso immenso derramado pela cara inteira.


XIII


Lá pela republica o cambio sahio.

Bolato trouxera uns cobres de Taubaté, cobres felizes que proliferaram.

A chance bafejou a todos. As carteiras se recheiaram.

Até Valdo ganhou, e bastante, mas depois soubemos que ganhou de mentira. O Rockfeller de dias antes cahiu do pedestal e as admirações convergiram todas para o heróe das grandes boladas, Gusmão.

A' noite já se não dizia — perdi tanto.

O verbo conjugado era bem mais doce, bem mais agradavel de se pronunciar. Foi o Eucilhamento da republica. Miragens aureas, despezas fabulosas, saques sobre o futuro.

Valdo comprou meia garrafa de espirito de vinho ; Mario uma libra de assucar ; Gusmão um garrafão de garapa. O dinheiro corria em rios, para os taboleiros de cocada, para as casinhas de peixe frito, para o estomago dos jabúrús, para o molock do panno verde.

Compraram-se maços e maços de cigarro, cinco caixas de phosphoro !

Fumaram-se alguns charutos. Engraixaram-se os sapatos. Foi um delirio de nababo. E a escorraçada bancarrota que nos andava espiando voltou a rondar a casa.


SEPTENARIO DOS QUE TEM 18
ANNOS

Noitinha. Um luar que briga no ceu com a luz moribunda do dia.

Repica o sino, dlen, dlon, dlen,.. chamando em voladas de voz metalica o povo ao septenario.

As calçadas até alli cheias de gente em pacata digestão esvasiam-se ; recolhem se as cadeiras das portas.

Mulheres affluem de todos os cantos enleadas em chales escuros, de mantilhas, de capa.

Homens sisudos enfarpella dos de preto tiram as ultimas fumaças do cigarro e entram para a egreja.

Magotes de moças, psi, psi, psi, gorgeando risadinhas e cochichos, derramam na massa escura do beaterio punhados de notas vivas.

Veste uma o branco, outra tem a blusa vermelha, aquella vae amarellinha como um canario, já d. Exquise està toda lilaz e Dudu, inteirinha d'azul.

Grupinhos se formam em caminho, desfazem-se, fundem-se um no outro. Este espera aquelle. Aquelle parou porque Fifi foi correndo buscar o leque esquecido. E este cá, porque fez roda ? E' que a Lálá está refazendo o laço da botina.

Os rapazes rondam perto ; estão sempre onde estão as moças, arrastados por essa força que junto aos estames sempre traz os pistillos.

Valdo, Rafa, Gusma, Bola, estão à porta, rentes, na brecha.

Miss Farfalla passa, atamine fauve.

— Como está mimosa hoje, não?—cochicha o commentario—dà uma sensação de Europa, de cottage inglez, não é?

D. Dhalia entra, frufrufrufru, blusa morango esmagado, saia papoula.

—Imponente hein ? jarra de Sevres com grandes chrysanthemos vermelhos.

— Já d. Quietinha é o mesmo Sevres mas cheio de violetas e margaridas.

D. Quietinha passa, silenciosa, n'u silencioso vestido branco, o olhar baixo, o andar leve.

Seguem-na magotes de poro, gente feia, caipiras, negros, beatas remechendo rosarios sob o manteu — perfeitos bezourões de campo em caminho para a toca.

Subito, outra moça, Lili—a risonha, toda d'azul moribundo tocado a ardozia raspada.

— Hein? um chique !.. Faz-me sempre recordar, esta menina, tres expressões francezas: grassouillete, caillete e poteleé.

— E a mim, quando vejo d. Stellia sabes o que? aquella imagem do Ricardo—palmeira humana.

— E tem vida longa...

D. Stellia chegava, toda de preto, olhando com os olhos meio cerrados atravez do pince nez de ouro, elegante, flexuosa.

Acompanhava-a um b jou de creatura, ar d'ingleza, delgadinha, fluette, em casimira clara.

E vieram outras e outras. E vieram mais homens e mais beatas. A igreja enchia-se. E vieram padres, nedios, abbaciaes, de palito na bocca, arrotando.

O largo s'esvasiava. Uma ou outra beata, arrumando ainda chale, desemboccava d'algum corredor, n'uma pressa, n'um açodamento de barata em vespera de chuva.

Os rapazes enchiam a salinha dos milagres. Pudera ! si as moças estão todas de fronte, o olhar posto no santo, rabo dos olhos na salinha...


TO FLIRT—Grelar


O Flirt é instituição exclusivamente yankee. Estudando-o Emile Faguet nega a possibilidade da sua aclimação fora da yankia. Flirt, lynchamento, constituição federal, trust, hu mour, e ks wa k, são coisas que importadas emboloram na viagem e chegam cá insipidas e estereis. O Fairl veio nos importado e embolorou ; mas soffreu ao chegar umas adaptações que o tornaram genero de tão vulgar consumo como o phonographo. E teve uma extracção immensa, tão grande como a da funesta invenção de Thomaz Edison

Flirt não é o velho namoro. Este é o genero de que o flirt é uma das especies mais interessantes. O namoro é sediço e traz a ideia da porção de coisinhas ridiculas que faziam o encanto dos nossos bisavós, a folhinha de malva, o ramilhete de forget me not, a mecha de cabello amarrada com fitinha verde, os suspiros, o «vel-a e amal a foi obra d'um momento», o «sou um desgraçado, Elvira !» e outras antigualhas de resequido sabor. O flirt é uma correspondencia, uma palestra intima entre dois pares d'olhos. Só, sem mais nada, sem consequencias de especie nenhuma. Si entram em scena os apertos de mão demorados, os contactos discretos, o dialogo dos pés, já o fllrt deixa de o ser. O flirt só joga com dois pares de olhos e está nisso a sua grande superioridade. Não ha barreiras que o interceptem. On flirt, quand me me !

E' americano, e por isso pratico. Entra na categoria dos sports. E' o iawn tennis dos olhos.

O namoro exige sempre uma mesma pessoa e isso é massada, faz o pobre namorado andar a n'uma eterna na dobadoura, de nariz farejante, procurando — A.

O flirt não, só requer um par d'olhos e belleza em sua possuidora. Onde quer que o encontre zás !... está armado o flirt.

Que importa que os firtados de hontem fossem castanhos, que os de ante-hontem veraes e que os d'amanhã sejam, talvez, azues? Os de hoje são negros, a sua dona é formosa: o flirt como opportunista que é, não pede mais, isso basta.

Este systhema tem immensas vantagens, não faz do sportman um magro cão veadeiro, de naiz cahido, sempre farejando a mesma caça. Toma a que encontra e onde a encontra. Findo o flirt não ha mais nada entre ambos ; quando muito a impressão d'uma vaga saudade ; continuam ambos livres como d'antes com ampla liberdade de cada um pelo seu lado flirtar quem quizer ou repetir a dose, caso surja nova occasião e haja mutuo assentimento.

Traduzido em vernaculo, ou melhor, vestido em calão, dá —grelar, ou ainda comer mamão ; mas este é uma degenerescencia do flirt, pois que o classificou assim uma flirteuse eximia :

— O mamão come-se de tres maneiras ; com a bocca, quando si é noivo ; com os pés quando não se está de botina nova ; e com os olhos quando não se pode comer nem do primeiro nem do segundo modo.

Donde se deduz que comer mamão não é bem flirt. Fiquemos com o grelar que o traduz com mais propriedade.

Um rapaz vê outro de olhos grudados n'uma moça ; pergunta

— Està grelando?

— Está

— Ahi, damnado.

Esse «está» significa que, embora de olhos postos no santo, humilde, murmurando rezas, de instante a instante ella funde o seu olhar no olhar delle, n'um movimento rapido e cheio de expressão. Os olhos delle bebem aquelle olhar n'um gole poupado, e ficam outra vez immoveis em posição, a espera de outro, nessa immobilidade do sapo quando engole uma mosca. O outro vem logo, o terceiro não demora, e o quarto, e o quinto e assim se vão seccedendo, os olhares della, num rosario delicioso de vezes.

Aquella fusão de olhares é o suprema do encanto do flirt. Toda a alma, todo o corpo de um entra a habitar por um segundo a alma e o corpo do outro. E' a communhão de dois desejos, de dois sentimentos, de duas fugazes ternuras ; é a confidencia instantanea do que o cerebro pensa e a palavra não diz.




O melhor meio de vencer uma difficuldade



Para o flirt como para a photographia a condição primordial é a mise ou point. E' mister que os olhos possam se encontrar com desembaraço, cousa não muito facil na igreja, onde são innumeros os espelhos sem aço. Em geral ao Flirteur incumbe essa tarefa, mas ha um methodo novo que tem produzido optimos resultados. E' o systhema de Raffa (S.G.D.G). Diz seu inventor :

Voce chegae colloca-se bem visivel ; ella te vê logo, mas como são muitos os espelhos ella levanta-se, senta se, ajoelha se, levanta de novo, vae conversar com fulana, approxima se de sicrana, recua, avança ; de repente pára, fica quieta : é que se collocou, está focalisado e voce pode grelar socegadamente.

Mulher é como paca, vira, meche até encontrar a toca.

Este systhema é optimo : poupa ao homem uma grande massada, alem do cafuné que lhe faz no amor proprio. Ellas não oacham tal,mas paciencia, nem tudo são rosas e, como diz Lao-Tsé-Yang, en tempo de chuva não ha pecego sem bicho.

FINIS

Esta lenga-lenga ja vae massçando ; é bom que cheguemos logo ao hic jacet. E é bom funebre o hic jacet désta historia..

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O bote ia repleto, cheio até a bocca, não comportando mais nem uma cabeça d'alfinete... Assalta-o a borrasca... Ha trovôes, raios, relampagos...

Ondas enormes ameaçam sorvel-o... Os tripolantes estalam os musculos nos remos, no desespero de se desvencilhar do perigo. Tudo em vão! Uma onda veiu, uma onda gigantesca, que abriu rente da fragil embarcação um abysmo de immensa bocca negra... Ouviu-se um grito lancinante de suprema dor e Gusmão, valdo, Bolato, Marcolino, Zequinha e raffa se viram devorados pelo barathro.

Et i'historie finit, faute de personnages

Esta obra entrou em domínio público pela lei 9610 de 1998, Título III, Art. 41.


Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1929 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.
  1. Marcelino de Santos