Emoção

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Não sei que estranho frisson nervoso percorre-me às vezes a espinha, me eletriza e sensibiliza todo como se meu corpo fosse um harmonioso teclado de cristal vibrando as sonoridades mais delicadas.

Um ombro aveludado e trescalante a frescura aromática, que pelo meu ombro levemente roce na rua, num encontro fortuito, produz-me um estado tal de volúpia, dá-me tão longa, larga volúpia, que me vejo por entre incensos, festivamente paramentado como o sacerdote que ergue o cálix acima da cabeça, ao alto do Altar-Mor dos templos doirados, sentindo que um aluvião de almas crentes o adora de joelhos.

A mão fina, ideal, calçada em luva clara, de formosa mulher que por entre a multidão aparece e desaparece, como uma estrela por entre nuvens, bem vezes, também, me alvoroça e agita o sangue.

E sigo, radiante, triunfal, rei, essa nobre mão enluvada, à qual eu em vão pediria o ouro, a riqueza afetuosa de um gesto carinhoso - a essa delicada mão avara e milionária que,para mais avara tornar-se ainda, se fora esconder na maciez elegante da luva fresca, vivendo dentro dela afagada, confortada, palpitando talvez por encontrar a mão feliz que vibrará de amor ao seu contato.

Então, assim, a emoção que desperta todos os meus sentidos, no curioso giro que faço com o pensamento acompanhando a feminina mão fidalga, não é uma emoção de indiferença, por certo, mas uma emoção de despeito.

Estranhamente, como força hercúlea que me prendesse à terra, chamando-se à iniludível Realidade, desço das inauditas, siderais, regiões a que subira.

Vejo-me logo, então, profundamente vencido no tempo, e, no meu rosto, à maneira dos fundos sulcos que as charruas abrem nos campos, imprevistas rugas se evidenciam, como se eu tivesse de repente envelhecido um ano.

Da Dor poucas vezes sinto só o que ela tem de selvagem, de rugidora.

Emoções delicadas, sutis, que me doem também fundo na alma, porque me melancolizam, deixam-me um ritmo de música, uma afinada dolência de suavíssimos violinos, e que por fim delicia.

É como se alguém vibrasse de brando as cordas de um instrumento e ele, trêmula, amorosamente, ficasse a gemer no mais meigo, no mais doce dos dedilhados acordes...

A emoção é que me faz amar os eucaliptus altos, afilados, retorcidos convulsamente, como a dor dum gigante.

É ainda essa mesma emoção que me faz perceber e ouvir o misterioso som dos metais: o claro riso diamantino da Prata e o trovejante rumor do bronze.

O que o mundo chama fatalidade, negras e assoberbantes catástrofes, como um incêndio, não posso bem com nitidez que emoção me causa.

Realmente, num incêndio, todas aquelas chamas são maravilhosas!

Não sei que raro, que estupendo Rembrandt veio de surpresa encharcar de um rubro violento, sanguinolento e flamejante, todo aquele belo edifício que, há pouco, era um rendilhado palácio ou uma igreja gótica, um Louvre em Pompas ou um faiscante chalet d’esmalte.

E não sei até como essas chamas formando miríades de fantasmagorias, ilusionismos, entre os quais às vezes perpassa a deliciosa cor azulada, aveludada, de poncheiras colossais, não devoraram tudo logo a um tempo!

Têm sido, talvez, benévolas, piedosas demais as chamas, porque há já bastante horas que o fogo alastrou, minou, rastejou, como um verme de incêndio, pelos alicerces do edifício e só agora que os trovejamentos desabem, as paredes caem, como se fossem de cera, milhares de fogozinhos correm eletricamente como microscópicos insetos luminosos pelo luxuoso papel das paredes, enquanto todo o resto da madeira estala e range , num crac-crac seco, caindo desmantelada como os mastros e vergas de um navio que afunda na fúria dos aceanos, sob o rijo estourar das tormentas.

Alucinamento, nevropatia, embora, eu não sei bem, na verdade, se um incêndio me apavora ou me delicia, - o que sei é que intimamente me sobre-excita.

Também o Mar, a emoção que experimento ao vê-lo, verde, amplo, espelhado, dá-me uma saúde virgem, uma força virgem.

Sínto o gozo repousante de sondá-lo, de descer à imensa profunda necrópole gelada onde uma florescência de algas vegeta; e, ao mesmo tempo, diante do Mar, sinto o peito alanceado de incomparável saudade de países vistos através do caledoscópio da imaginação, dos sonhos fantasiosos - países lindos e felizes , floridos trechos de terra, ilhas tranqüilas, províncias loiras, simples, de caça e pesca, donde a sombra amorosa da pa benfazeja fosse como uma sombra doce, protetora, de árvore velha, e onde, enfim, a Lua tudo imaculasse numa frescura salutar de pão alvo ...

A emoção, a sensibilidade em mim, quase sempre desperta uma meditativa amargura, uma grande e mística dolência do passado, que enevoa tudo - como o indefinido mistério perfumado dessas soberbas mulheres de Versailles, carnações fidalgas e perfeitas que estremeceram de luxúria e apaixonadamente amaram pelos velhos parques abandonados, rojando sobre as areias sonoras das alamedas a cauda astral das vestes de Deusas.