Encarnação (José de Alencar)/IX
Soprava a viração da noite.
O primeiro lufo, cortando o ambiente cálido e estagnado, e derramando no ar uma onda de frescura, rugitou pela folhagem das mangueiras.
Com a rajada, as rótulas se tinham afastado de modo a mostrar no quadro da janela o interior do aposento.
No centro havia uma mesa de charão com um vaso de rosas, colhidas naquela tarde. Amália vira quando Hermano as cortara da haste e pensou então que eram uma oferenda do marido à esposa querida. Naturalmente iam ornar o seu toucador.
Junto do vaso estava aberta uma caixa de carvalho com preparos e utensílios de flores artificiais; e na beira da mesa uma peanhazinha de bronze que mantinha direita na sua haste de arame uma rosa de pano ainda por acabar.
Hermano sentado ao lado com um livro aberto lia a meia voz; e embora o sussurro de suas palavras se perdesse nos rumores da noite, podia Amália mesmo de longe ver-lhe o movimento d os lábios. Mas não foi nada disto o que feriu a alma da moça, quando a veneziana aberta patenteou-lhe aquela cena.
Em face de Hermano e também sentada como ele, Amália viu, cheia de espanto, uma mulher. Era moça e de rara formosura. Na posição que tomara, o seu talhe moldado por um vestido simples e justo, de seda azul à princesa, desenvolvia-se com um garbo indefinível.
A madeixa de cabelos negros sombreava o níveo fulgor do semblante, cujo delicado perfil pareceu a Amália ser talhado em um jaspe macio e diáfano, tão suave era o tom dessa carnação.
Descansava sobre a mesa um dos braços, cuja perfeição estética aparecia no esvazado da manga, e tinha a fronte ao de leve reclinada para a espádua, como uma flor que se realça para haurir a luz e os orvalhos do céu.
Amália compreendeu essa expressão de êxtase.
Pensou que a moça interrompera o seu trabalho de florista para embeber-se no encanto de ouvir as palavras de Hermano, o qual também abaixara o livro para contemplá-la e encher-se de sua beleza.
Do primeiro relance Amália não viu senão uma maulher naquele aposento, que pertencia a Julieta; não sentiu senão o golpe de tão indigna profa nação; e foi este sentimento que lhe despedaçou a alma em um grito de dor, e atirou-a convulsa e fulminada sobre o cômoro de grama.
A cólera a reanimou. Ergueu-se e foi então que viu tudo. Seu olhar repassado de ódio correu todas as linhas daquela estátua harmoniosa como o faria o severo buril de um escultor; e não achou uma aspereza, um lisim. Ela poderia notar naquela fisionomia a fixidez de expressão, que a amortecia; mas era precisamente essa elação do amor, a maior sedução da rival de Julieta, a sua beleza ideal e celeste.
Um criado velho, o Abreu, entrara no aposento. Arranjou os objetos que estavam sobre a mesa; colocou ali uma salva com serviço de chá para duas pessoas; e reparando nas rótulas abertas pelo vento, fechou-as com o trinco.
Amália não viu mais nada senão a luz coada entre as lâminas das venezianas.
Não se imagina a indignação que sublevou sua alma, quando refletiu naquele acontecimento.
Se um homem amado por ela, depois de ter-lhe jurado fidelidade, a enganasse vilmente, não o puniria com o desprezo que tinha por Hermano nesse momento.
Era uma traição torpe e infame a que havia cometido esse marido. Não lhe bastara esquecer a mulher, faltar ao seu juramento. Fez mais: insultou a sua memória, cobrindo com o véu de uma constância exemplar outro amor, que ele próprio se envergonhava de mostrar ao mundo.
Amália identificava-se com a esposa traída; supunha Julieta rediviva em si e erguendo-se implacável para castigar o pérfido marido.
Mas como? Morrendo outra vez; porém morrendo eternamente para ele; rompendo a cadeia que os unia, e abandonando-o a essa infeliz, como um sobejo da traição.
Nos dias que seguiram esta cena, Amália foi má. Sua alma se tinha saturado de fel; os sentimentos afetuosos eram recalcados por um despeito violento.
Anunciara-se a estréia de uma companhia italiana no Teatro Lírico.
Amália assistiu à representação. Queria vingar Julieta cobrindo de desprezo a todos os homens, especialmente os homens que fingiam o amor. Desejava sobretudo encontrar Henrique Teixeira para exprobrar-lhe a indignidade do amigo.
Os cantores eram medíocres; fossem embora insignes, Amália não lhes prestaria atenção naquela noite. Abriu o binóculo, e correu-o pelos camarotes, não para apreciar os trajes como costumava, mas para os criticar e às donas também; para dar alvo a seu pungente sarcasmo. Em um camarote fronteiro descobriu Hermano e perturbou-se. Que vinha fazer aquele homem ao espetáculo? Antes, devia este fato surpreendê-la; agora não; era tão natural!
A mulher que em uma das noites passadas ela vira no aposento da esposa traída, a rival de Julieta, com certeza estava no teatro; e o indigno amante só viera para acompanhá-la, e gozar da admiração produzida por sua beleza.
Amália notou que Hermano, apesar de estar só no camarote, deixara o lugar fronteiro à cena, e sentara-se no outro voltado para o fundo da sala. Parecia escutar atentamente a ópera; mas olhava com insistência para a segunda ordem.
Acompanhando a direção desse olhar, Amália fitou um camarote diagonal ao seu. Havia ali uma mulher vestida com muito luxo.
A saia de gorgorão verde com rendas finíssimas atufava-se por entre as grades.
Estava de costas. A moca não podia enxergar-lhe o rosto, que se retraía com o movimento do corpo ao voltar-se. Descobria, porém, uma madeixa de cabelos negros; e descansando sobre o acolchoado de veludo escarlate um braç o alvo e torneado pelo mesmo molde do outro, que vira na mesa de charão.
Esta observação irritou a indignação de Amália. Antes de terminar o espetáculo ela deu-se por incomodada e realmente estava. Quando já se retiravam, apareceu Henrique Teixeira; a moça não lhe deu atenção. A vontade que tinha de lançar-lhe em rosto a traição do amigo cedera a outro sentimento, ao pudor. Agora tinha vergonha de conhecer essa intriga vil e de ocupar-se com ela.
Quando se esmerava na cantoria, Amália tomara o hábito de recordar os trechos de ópera que ouvia no teatro. Assim fixava as suas observações de véspera; imitava as belezas, e corrigia o seu método. Por isso ao acordar lembrou-se do piano já tão esquecido; e depois do almoço dirigiu-se à sala. Se ao recolher-se perguntassem que ópera se tinha cantado, ela com certeza não poderia responder. Agora, porém, recordava-se perfeitamente; fora a Lucia de Donizetti. A música ficara-lhe no ouvido.
Abriu a partitura e cantou a parte de soprano. Disse admiravelmente o delicioso allegro da fonte; mas na grande ária da loucura excedeu-se. Não era o delírio da noiva escocesa que a inspirava; era o desespero de Julieta, a dor da esposa traída.
Estava aberta uma das janelas, e o sol entrando pela sala chamejava nos espelhos e cristais. A claridade impacientou Amália; estava triste, e achava insuportável essa alegria do céu que vinha importuná-la. Ergueu-se para fechar a janela, onde a esperava uma surpresa.
Hermano, de pé, à sombra de uma árvore, escutava o canto, em profundo recolhimento. Sua fisionomia denotava que ainda depois de ter cessado a voz, ele ouvia dentro d´ alma o eco, e esperava o seu retorno. Tinha na mão um jornal e estava sem chapéu, como quem fora surpreendido em casa, a meio da leitura, e viera pressuroso, não lhe importando sair de cabeça descoberta.
Quando Amália recobrava-se da emoção, Hermano erguia a fronte; pela primeira vez o olhar doce, profundo e exuberante desse homem encontrou o seu; e subjugou-a.
Ela estremeceu como se recebesse um insulto; e arrebatadamente, num assomo de cólera, bateu a janela.
O que ela sentia era não ser homem para nesse mesmo instante precipitar-se do sobrado, saltar o muro, e açoitar as faces daquele insolente.