Eneida Brazileira/Notas ao Livro VI
NOTAS AO LIVRO VI.
Este[1] livro, onde o poeta patenteou o seu talento creador, annullando a opinião daquelles que lhe negam esta faculdade, merecia um extenso commentario: abstenho-me de o fazer tal, porque outros cabalmente desempenharam a tarefa. La Cerda, La Rue, sem fallarmos dos anteriores, com Warburton, Heyne, Desfontaines, Delille, mais ou menos, todos juntos nada deixam que desejar a respeito da explicação da philosophia de Virgilio. M. Villenave he felicissimo em suas notas a este livro: resumida mas claramente, expõe elle as opiniões do poeta sôbre o dogma platonico da alma universal, sôbre o systema da metempsychose por Pythagoras, sôbre as idéas mais puras que possuía da divindade, e sôbre os pontos principaes desta pasmosa composição, como seja o purgatorio, donde parece que o christianismo tomou a doutrina respectiva. Para não ser prolixo, e para não amontoar trabalhos alheios, contento-me de remetter o leitor ás obras allegadas, as quaes citam outras[2]; e quem se quizer satisfazer com menos, pode consultar em especial o padre La Rue, que tem tanta voga nas nossas escolas. Este explana muitos lugares da história e da fábula, muitas opiniões e tradições que toca o poeta, e por isso me despenso de o fazer; e só tratarei do pouco em que não concordo com os críticos, pois em geral com elles me conformo ácêrca do livro VI.
179-182. — 185-189. — Bondi censura a Annibal Caro o descarnado da passagem correspondente; e na verdade he antes um resumo que uma versão poetica. Caro porêm não cahe tanto em semelhante defeito como pareceu ao seu émulo. Este, para talvez justificar a sua usual prolixidade, opina que o estilo do outro he em demasia rapido e conciso, proprio do lyrico e não do epico. Que a epopéa peça um tom majestoso e certa gravidade em seu andamento, he incontestavel; mas a concisão, necessaria em todos os generos, casa inteiramente com essa majestade e compasso. Para se isto conseguir, não he forçoso prodigar palavras e periphrases: cumpre escolher os vocabulos, medir bem os periodos, as pausas do verso, estudar mesmo o effeito da combinação das syllabas e letras, dos accentos e consonancias. Pode um periodo ser curto e proprio do epico; e uma versalhada interminavel para nada presta. Bondi confundiu a concisão com a seccura. De mais, postoque Virgilio de ordinario seja compassado e magnífico, não raro toma o tom da elegia e da ode, como observa Mr. Patin, douto professor da Faculdade de letras de París; e eu digo que tambem o da pastoral, e que esta variedade he mais um dos encantos do seu poema. Ora, todos esses diversos estilos deve imitar o traductor. — Sem embargo de ser Bondi fiel e de evitar alguns dos defeitos de Annibal Caro, a este dou eu a preferencia.
440-474. — 452-485. — Virgilio creou nos infernos um lugar para os amantes infelizes, e alli he que Enéas se encontra com Dido. Alguns fanaticos para com Homero, e entre elles Mme Dacier, preferem a este encontro o de Ulysses com Ajax no livro XI da Odysséa. «Só Ajax, diz Ulysses, se conserva desviado, com raiva da victória que levei, quando nos desputámos as armas de Achilles...» E depois de têr em vão pretendido dobrar e apaziguar o heroe, Ulysses accrescenta: «Apezar da sua colera, elle me teria fallado como lhe falei; mas eu estava impaciente por contemplar outras sombras.» Quem não vê que estas últimas palavras tiram todo o interêsse que poderia têr o silencio de Ajax? Ao contrário, em Virgilio, o silencio de Dido sóbe ao[3] cume do sublime pela sua irrevogabilidade; e uma circumstancia que ainda confirma a resolução da sombra indignada, e em que tem os criticos feito pouco reparo, he o acolhimento que recebe do marido Sicheu em um retiro umbroso. Esta reconciliação he ternissima e da mais bella moral: o amor illegítimo a tinha manchado e perdido; o amor conjugal perdoa a infeliz, e lhe desculpa uma falta que ella não commetteria jamais durante a vida do seu primeiro consorte.Oh! alma sensivel do cantor da Eneida!
620. — 639-640. — Na meia idade corria a fábula de que o demonio, adjurado por um santo a lhe declarar qual era o mais bello verso de Virgilio, immediatamente respondeu: «Discite justitiam moniti et non temnere divos.» Esta maxima comtudo a alguns tem parecido mal collocada no Tartaro, porque os condemnados eternamente, não podendo mais aproveitar-se della, não haviam mister a advertencia. Esses criticos porêm não viram que Phlegyas, ao proferil-a, não a dirigia aos precitos, mas no desejo transportava-se ao nosso mundo, querendo que a maxima fôsse util aos homens: Mr. Villenave, que refuta uma tal objecção, a proposito allega o omnes admonet que vem dous versos atrás.
667. — 688. — Virgilio aposenta nos Elysios o poeta Museu, anterior a Homero, e não Museu autor de Hero e Leandro, que foi posterior. A confusão dos dous Museus deu occasião á crítica de Scaligero e outros, que pretendem que o epico romano preferia os versos de Museu aos do maior poeta da antiguidade; porêm Menage, com alguns doutos, observou que Enéas só podia vêr nos infernos os poetas mortos antes do saque de Troia; que o antigo Museu, dito filho de Apollo, do tempo de Cecrops II, podia achar-se nos Elysios, e não Homero que viveu quasi dous seculos depois de Enéas. Esta justissima observação não pareceu peremptoria a Mr. Villenave; o qual diz que naquella ficção podera Virgilio annunciar que um dia Museu veria a chegada do principe dos poetas gregos; e que, se o latino não pode ser tachado de ingratidão, ao menos he lícito pensar que deixou escapar o ensejo do reconhecimento. O crítico não advertiu que, na ficção da prophecia de Anchises, só se trata dos descendentes de Iulo e Enéas e dos heroes romanos, e não se podia metter Homero entre elles, pois nem era descendente de Enéas, nem Romano. Anchises encarregou-se de apresentar ao filho as almas dos seus netos, e não dos grandes poetas; e Museu alli serviu só de guiar Enéas e a Sibylla ao sítio em que passeava Anchises. O alto respeito que Virgilio tinha para com seu mestre, foi assás provado pelas imitações que delle fez ás claras, e pela confissão de que era mais facil arrancar a clava das mãos de Hercules do que roubar um só verso a Homero; dito que, atravessando os seculos, chegou até nós.
756. — 778. — Começa aqui um dos meios epicos mais fecundos, inventado pelo poeta e ao depois imitado pelos mais afamados: as cousas célebres concernentes a Roma, acontecidas desde o tempo de Enéas até o de Augusto, Virgilio põe na bôca de Anchises como em uma prophecia; e desta maneira, tratando de successos tam antigos, teve a opportunidade de fallar dos modernos e mesmo dos contemporaneos. Ha nesta prophecia um bellissimo resumo da história; guarda porêm o autor, com a sua costumada parcimonia, certos factos notaveis, para os dar gravados no broquel de Enéas em o livro VIII, imprimindo assim mais variedade no poema. Commentar esta falla de Anchises equivale a escrever uma quasi história; trabalho de que não sou capaz, e que aliás se acha espalhado pelos commentadores e criticos de maior nomeada. Esta minha nota he só para refutar uma de Delille, sempre infeliz quando cita a Camões.
«O quadro da futura grandeza de Roma, diz elle, e esta revista de toda a posteridade de Enéas, sam uma creação sublime do poeta latino. O Tasso, Camões, Milton e Voltaire, imitaram a Virgilio. Mas, na Jerusalem libertada, os destinos da casa d'Est, que sam preditos a Reinaldo, não tem historicamente assás importancia para autorizar o emprêgo do maravilhoso; e o mesmo se pode asseverar da glória de Portugal encerrada em pequenissimo quadro, e cujo esplendor foi de pouca duração..... De todos os imitadores do poeta latino, Voltaire foi sem dúvida o mais feliz; tendo a vantagem de pintar a epoca mais memoravel do espirito humano, e seu estilo tem muitas vezes todo o brilho da côrte de Luiz XIV.» Ferido por estes palavrões, um Francez, Mr. Villenave, assim o impugna: «O seculo de Luiz XIV foi sem dúvida uma epoca memoravel, mas não a mais memoravel do espirito humano. E o que he um estilo que tem todo o brilho da côrte de um rei?»
Toca-me agora confutar a idéa de que Tasso não se devia servir do maravilhoso a respeito da casa d'Est. Cada um busca celebrar as cousas do seu paiz, e ainda que ellas pareçam aos estrangeiros pequenas, sam grandes aos olhos dos nacionaes: ora Tasso Italiano, em vez de cantar um principe e uma casa real da sua terra, não devia, como patriota, omittil-a para cantar, por exemplo, a casa de França. Delille, não contente de afrancezar a antiguidade na sua paraphrase da Eneida, ainda folgava de que o Tasso tivesse estrangeirado a sua Jerusalem; ou que tivesse posto de parte um meio que lhe subministrou Virgilio, e com que elle ornou o seu poema, em comparação do qual a Henriada, cumpre confessar, não tem sobejo valor. — Se todavia a pequenez da casa d'Est excusa um tanto o máo juizo do crítico, a apreciação dos Lusiadas he miserabillissima. A epoca de que trata Camões principalmente (digo principalmente, porque elle canta e celebra toda a glória portugueza) he por certo a mais importante na história da navegação, vale mais do que o seculo de Luiz XIV: o descobrimento da nova róta das Indias por Vasco da Gama, unido ao da America por Colombo e á do Brazil por Cabral, mudou a face do mundo, ao commercio deu uma extensão prodigiosa, e augmentou os gozos da vida por toda parte; fez cahir nações, levantou outras; he o acontecimento que marca os tempos modernos. Quanto a ser a glória portugueza de pouca duração, distingo: se Delille chama glória só a conquista das Indias e de outros paizes, he exacto que pouco depois a nação portugueza cahiu pelo dominio hespanhol; mas se a palavra comprehende, como deve comprehender, a honra que resulta de todas as suas façanhas, essa glória portugueza, longe de ser de curta duração, já durava seis seculos não interrompidos quando a cantou o seu immortal poeta. A história de França não apresentava uma tam longa serie de successos gloriosos até áquella epoca. — Insisto nesta digressão, porque não he só Delille, he moda, sôbre tudo seguida pelos franchinotes viajantes, menosprezarem a nossa raça, tanto a da Europa como a da America. Uma nação, da qual nasceu a brazileira, hoje com sete milhões de habitantes, sendo a terceira em população na America e a segunda em importancia política, tem a sua glória indelevelmente escrita nos annaes do mundo; alêm de que ninguem pode abrir um mappa do nosso globo, sem nelle encontrar muitos nomes de paizes d'Africa e Asia attestando a parte que o pequeno reino do occidente da Europa tem tido no movimento geral da civilisação. He pena que Delille nos não marcasse as leguas quadradas, a população e os annos de celebridade que deve ter qualquer nação, para poder cantar um poeta os seus feitos heroicos. Camões da mesma pequenez do seu paiz tirou motivo para o louvar na sua magnífica oitava XIV do canto VII e em outras. — De passagem direi que não imitaram a Virgilio neste lugar sómente os que menciona Delille: afora Camões, Tasso, Milton e Voltaire, fel-o Ercilla, fizeram-no tambem Côrte-Real, Sá de Menezes, Mausinho e Gabriel Pereira; mas estes ultimos quatro poetas, cujas epopéas equivalem ás da França, á excepção do Telemaco e dos Martyres, não sam conhecidas senão em Portugal e Hespanha, entre os seus descendentes da America meridional, e por bem poucos literatos das outras nações. Se nellas ha menos gôsto que na Henriada, ha mais poesia e imaginação.
759. — 781. — Aprender por conhecer he corrente nos classicos: Constancio o dá por antiquado; o que não admira, porque no seu conceito uma boa porção dos vocabulos deve ser esquecida. Modernamente o meu amigo Dr. Lopes de Moura usou deste verbo na sua traducção das obras de Walter Scott. O nosso illustre compatriota he riquissimo na linguagem; mas, segundo m'o tem dito muitas vezes, não poude corrigir os seus escritos, pela pressa com que trabalhava para acudir ás necessidades da vida. Hoje está elle mais folgado pela pensão que lhe dá do seu bolsinho o Snr. D. Pedro Segundo; mas infelizmente, quando a munificencia imperial o allivia, a velhice o alcança, e não lhe permitte mais um trabalho assíduo. Oxalá que este bello exemplo de generosidade fique aos vindouros, e que não herdemos dos nossos parentes Portuguezes, a par de louvaveis costumes e leis, o desprêzo para com os escritores desvalidos da fortuna.
883. — 920. — Tendo-me eu contentado de remetter o leitor aos que deste livro tratam, porque para o commentar seria mister compôr um de philosophia e outro de historia romana; nesta passagem não me soffro sem dizer alguma cousa, que a admiração me arranca. Havendo Anchises, na sua prophecia e na resenha que faz das almas que tem de reger os vindouros, commemorado os factos e os heroes de que mais se jactavam os Romanos, chega a final ao seculo de Augusto; e, como ha pouco tinha fallecido Marcello, filho de Octavia, até alli considerado successor ao imperio, o poeta põe na bôca do propheta os louvores de M. Claudio Marcello, ascendente do mancebo, e por uma transição facil involve nesses louvores os daquelle genro de Augusto, e toca na recente morte com uma delicadeza inexprimivel. Que arte! que sublimidade não encerra a passagem terminada por estas immortaes palavras: Tu Marcellus eris! Em toques taes he que Virgilio he incontestavelmente o primeiro dos poetas; e em taes modelos he que os moços devem aprender os reconditos segredos da poesia.
892-901. — 931-939. — A' imitação de Homero, dá-se aqui ao Somno uma casa com duas portas, uma córnea e a outra eburnea: pela eburnea sahiam as visões falsas; pela córnea, as sombras verdadeiras. Como Virgilio faz sahir Enéas pela eburnea, dizem os commentadores que nisto indica o poeta e confessa mesmo que a descida aos infernos se deve numerar entre as fábulas. Talvez esta fôsse a mente do autor; mas tal opinião eu não a vejo provada. Quer Enéas sahisse pela porta de marfim, quer pela de corno, tinha sempre de servir-se de uma que não lhe pertencia; porque elle, tendo descido aos infernos em corpo e alma, nem era sombra verdadeira para servir-se da porta de corno, nem era falsa visão para servir-se da de marfim. Pode pois dizer-se que, devendo elle por fôrça dalli sahir por uma, o poeta escolheu aquella. — No último verso deste livro, que he o mesmo que o 277 do III, denota o poeta o uso antigo de ancorarem os navios com a pôpa virada para a terra, onde eram seguros por calabres. Mr. Jal assim discorre a pag. 14 do Virgilius nauticus: «O verso Anchora de prora jacitur, stant littore puppes, que se acha no fim desta parte do poema tam magnificamente epica, como uma nota alli sómente lançada pelo autor, para se recordar de que deve conduzir os Troianos a Gaeta e ancorar os navios no pôrto, teria sido substituido por um que não repetisse o do liv. III; pois não podia querer que uma dobrada negligencia marcasse a conclusão deste livro, admiravel pelo estilo e perfeito em suas partes. E digo uma dobrada negligencia; porque, alêm de ser uma repetição, o verso contêm no segundo hemistichio, sem que seja uma belleza, a palavra littore que se lê no verso precedente.» Razão tem Mr. Jal; e o que diz aqui desta repetição, tambem o diz elle das outras que ha em toda a Eneida, as quaes seriam corregidas, se a morte não atalhasse o poeta em uma idade pouco avançada. — Todos os versos repetidos na Eneida, eu os traduzo differentemente, conservando comtudo o sentido, e só variando nas palavras.