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Eneida Brazileira/Notas ao Livro X

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NOTAS AO LIVRO X.


Mr. Amar admira este concílio, pela pompa e majestade do estilo, pela escolha dos epithetos, pela grandeza do assumpto. Comquanto seja eu apaixonado do poeta, não concordo com o crítico em achar muito a baixo desta scena a do livro primeiro das Metamorphoses, e menos concordo em que o autor era apenas um homem espirituoso e de talento, não um verdadeiro genio. Certo he que Virgilio he mais exacto e judicioso, mais conciso e de uma sensibilidade mais exquisita; comtudo, a abundancia, a variedade e a imaginação de Ovidio sam taes, que só um grande poeta as pode possuir. Ovidio tem sua maneira, como tambem Virgilio; e ambos encantam e prendem, postoque por meios diversos. Se aquelle tivesse moldado sempre os seus quadros pelos das Georgicas e da Eneida, teria talvez sido um escritor mais perfeito, mas não seria tam recommendavel pela sua pasmosa invenção.

6-117. — 6-117. — O talento oratorio, ainda mais saliente nos ultimos livros, apparece em toda a fôrça nestes bellissimos discursos: o de Jupiter he breve e energico, imperativo e grave; o de Venus he respeitoso, comedido e pathetico; o de Juno, ao contrário, vehemente e impetuoso, todo cheio de interrogações, mais para accusar e reclamar os seus direitos, do que para se defender. Nada ha mais sublime que o silencio do ar e do céo, do mar e da terra, quando Jupiter vai annunciar a sua vontade suprema, assim como o estremecimento do Olympo todo ao aceno do soberano, que jurava pela Estyge. — Em algumas escolas do Brazil, mestres imperitos ensinam que botar por lançar, de que me sirvo no verso 48, he um plebeísmo; sendo corrente nos classicos, tanto prosadores como poetas, e até com este verbo formaram-se palavras hoje muito em uso, por exemplo botafóra, botafogo. Veja-se Moraes e Constancio.

146-214. — 146-214. — No livro V trata-se dos Troianos que tem de brilhar durante a guerra; no setimo, dos mais illustres do partido de Turno; aqui, dos mais conspicuos Latínos que vieram em soccorro de Enéas. Observe-se que, entre os auxiliares, o de que se falla com mais interêsse he Pallante; o qual deve representar um grandissimo papel e influir tanto no desfecho.

219-250. — 219-250. — Mr. Amar, desculpando o poeta com não ter tido tempo de aperfeiçoar a sua obra, diz: «Enéas devidamente pasma (stupet) do que se passa em[1] tôrno delle. Uma nau que se transforma em devindade maritima, e na manhã seguinte se faz habil orador, e se recorda a proposito do seu antigo mister, he das cousas que, mesmo naquelle tempo, não se viam todos os dias, e mostram aliás que em materia de pias maravilhas, tanto entre os antigos como entre os modernos, o mais difficil he o primeiro passo.» Esta crítica tem o vício de provar de mais: a ser admittida, a conclusão seria que, ao menos em as epopéas, nunca tem lugar uma metamorphose qualquer; poisque em todas ha mais que inverosimilhança, ha impossibilidade. Mas, nas obras de imaginação, tem-se deixado passar estas liberdades, quando a ficção he ingenhosa, para com a variedade causarem prazer ao leitor. E em uma nação educada com as idéas do paganismo, cujos sectarios criam em Jupiter convertido em touro e em outras que jandas transformações, essas impossibilidades não pareciam taes; da mesma fórma que os homens de fé acreditam hoje em milagres, de que zombam os espiritos fortes. Horacio, com o seu costumado criterio, queria que semelhantes metamorphoses não se fizessem em um drama, á vista dos espectadores, porque não podiam ser executadas a ponto de illudir os olhos; mas dá largas á narração. Ora, uma vez admittida a mudança das naus em nymphas, não he mais inverosimil que fallem como as outras deusas do mar; e Delille, que he desta opinião, accrescenta que, se Apollonio introduz a fallar um pao da nau Argos, por ser um carvalho da floresta de Dodona, muito menos inverosimil he que, já nympha do mar, discorra a nau de Enéas, a qual tambem era de carvalhos da floresta de Cybele. Estas razões porêm não valem tanto como as fundadas nas crenças e preconceitos populares, que permittiram ao poeta assim ennobrecer e celebrar as embarcações que ao Lacio haviam transportado o seu heroe; alêm de que elle não fez mais que adoptar as tradições: prisca fides facto, sed fama perennis. Já se tem dito, e repetirei que para lêrmos certos pedaços dos antigos, he proveitoso que de algum modo nos tornemos da sua religião e nos vistamos das suas preoccupações. Estou convencido de que Virgilio, aindaque tivesse vivído para emendar a Eneida, não teria riscado esta ficção.

273. — 271. — Rubejar, proposto pelo Dr. Simoni, me parece necessario, ou ao menos util: o nosso roxear differe, como o roxo do rubro. Esta occasião, em que me aproveito de uma lembrança sua, tómo-a para agradecer em público ao mesmo senhor a fineza de me offerecer um dos seus Carmes dos sepulcros; obra cheia de bons pensamentos e de lições moraes.

287[2]-307. — 286-306. — O desembarque de Enéas e dos auxiliares he descripto com termos technicos e com toda a propriedade, mórmente quando Tárchon arroja á praia a nau, que fica pendente da pôpa e vasa n'agua a tripolação: o crescenti aestu e o unda relabens pintam admiravelmente o rôlo e a ressaca da onda. Consulte-se o Virgilius nauticus de pag. 33-36, onde Mr. Jal traz as mais adequadas observações. Desejos tive de as copiar; mas desisti, porque, para pôr tudo que me parece interessante nessa obra, mister seria transcrevel-a por inteiro.

344. — 342. — Começa Enéas o combate, e um dardo, que lhe revirou Numitor, fere a Achates na coxa; o que mostra o jus deste guerreiro ao título de grande e de fiel que lhe dá o poeta, poisque elle não podia pelejar sempre ao lado do amigo, sem correr iguaes aventuras. Chamam-no frio, porque não se lhe especifíca uma acção de valentia, a não ser a morte de Epulon, guerreiro sem renome. E na verdade, fazendo o poeta brilhar a Mnestheu no liv. IX e em outros lugares, a Ascanio em matar o cunhado de Turno, a Gyas em dar cabo de Ufente, amigo íntimo e da maior confiança do mesmo Turno, a Seresto em ajudar a Mnestheu e Ascanio a repellir a Turno e pôl-o em retirada; tendo sim exaltado a Tárchon, a Pândaro e Bicias, a Pallante, a Euryalo e Niso, e a outros do seu partido, parece que devera guardar uma proeza para o companheiro inseparavel do heroe; companheiro, em quem o autor quiz representar Patroclo; mas quanto fica abaixo de Homero! — Concordando com os criticos nesta censura, estou bem alheio da opinião dos que acham insignificantes os cabos a quem Enéas commandava em chefe. Na Iliada, onde a ausencia de Achilles durante mezes deixou aos Gregos o campo livre e a obrigação de o substituirem, poude Homero ministrar a Ajax, a Diomedes, a Ulysses, a Merion, a Patroclo e a muitos outros, opportunidade a estrondosas valentias; mas na Eneida isso não era possivel em grande escala, sendo a ausencia de Enéas de quatro dias, e tendo elle ordenado á sua pouquissima gente que se defendesse das trincheiras e não se arriscasse a combater fóra. O que devemos admirar he a arte com que, vendo que a inacção esfriaria o interêsse, sustenta-o ingenhosamente, não só pelo arrôjo de Niso e Euryalo[3], como pela temeridade dos gigantes; a qual deu lugar ao valor de Mnestheu, de Seresto, e mesmo de guerreiros já velhos que defendiam seus muros, e faz apparecer a assombrosa intrepidez de Turno, como a necessidade e o geral desejo da vólta de Enéas. Effectuada ao quarto dia, apparece elle de manhã á vista do seu campo, e ganha uma victória antes de anoitecer. Nesta pressa, vê-se bem que, se o poeta se demorasse a pintar combates singulares e as façanhas de cada socio, não havia tempo de descrever a batalha, nem realçar o valor e proezas do heroe e do seu rival; o que essencialmente requeria o assumpto. Os conflictos pois da Eneida não sam como os da Iliada, mas como convinha que fôssem, dado o plano do poema. A destruíção de Troia era o fim de Achilles; o de Enéas, a fundação de uma nova: isto basta a provar que a Eneida não nos devia entretêr com tantos combates á maneira da Iliada, e que Virgilio obrou com descernimento. 680. — 678. — Deste passo em diante entra Mezencio com seu filho. Turno, tendo matado a Pallante, havia desapparecido por industria de Juturna; a qual, para o subtrahir ao braço do Troiano, o fez correr após a figura delle até chegar a uma nau onde o phantasma se havia refugiado, e nessa nau o transportou a Ardea. Remoto o general dos Rutulos, o substitue Mezencio; e, depois de assinalar-se com prodigios de valor, veio ás mãos com Enéas. Este o ia immolar, quando o brioso Lauso apara o golpe, o ataca, e morre víctima da piedade filial, não querendo ouvir os avisos do mesmo Enéas, que o mata com pezar. O que sabido por Mezencio, veio de novo encontrar-se com o vencedor de Lauso, e acaba tambem. Este pedaço he um dos melhores que a poesia antiga e moderna tem creado; mas o Troiano he arguido de contradictorio, porque, sendo pio, não lhe cabia dizer cousas picantes a Mezencio. Note-se porêm que Enéas só se mostra inexoravel desde a morte de Pallante; Pallante, que lhe fôra confiado por Evandro, a quem o heroe devia a alliança de Tárchon e os meios de conseguir a empresa; por Evandro, que tinha sido o hóspede e amigo de Anchises. A colera, tam natural em taes casos, he desculpavel; e o poeta deu mais uma prova de sabedoria no escolher o momento, sem faltar á verosimilhança, de attribuir ao seu Enéas a impetuosidade e furor de Achilles. Para gozar do titulo de pio, no sentido de certos criticos, seria necessario que se deixasse immolar, ou apenas se defendesse daquelles que procuravam arrancar-lhe a vida! Qual he o homem, por mais pio e humano, que algumas vezes não tenha rompido em amargas invectivas? Sendo Mezencio um formidavel campeão, que mesmo ferido pelejava galhardamente, e queria ou morrer ou matar, he bem natural que Enéas o mandasse adiante; o que tanto menos lhe devia custar, quanto mais odioso era o tyranno aos Tyrrhenos, seus alliados.




  1. No original, está en.
  2. No original, aparece a numeração de verso 207 em vez de 287.
  3. Eurialo no original.