Eneida Brazileira/XII
LIVRO XII.
Turno, lendo nos olhos dos Latinos,
Lassos do adverso marte e esmorecidos,
Que exigem-lhe a promessa, ignito e fero,
Mais se exaspera e mais. Qual, de afras brenhas
5Ferido o leão no peito, encrespa as garras,
Do collo folga a sacudir a juba,
Do caçador estala o fixo dardo,
Ruge-lhe impavido a cruenta bôca;
Tal cresce a furia do abrazado moço,
10Que embravecido ao rei dest’arte falla:
«Turno he prestes; não ha por que o recuse,
Nem retracte a palavra o Troa ignavo.
Já marcho: immola, ó padre, o ajuste assella.
Ou d’Asia o desertor eu só na Estyge
15Despenho (assista o exército em repouso)
E a querella commum vinga este braço;
Ou vencido me entrego, e mais Lavinia.»
Tranquillo então Latino: «[1]O’ bravo joven,
Quanto em brio te excelsas, mais me cumpre
20Temer por ti, pesar-te os casos todos.
Muito has valente a herança accrescentado;
Nem ouro falta e ânimo a Latino:
Possue Laurento e o Lacio outras donzellas
Não somenos. Verdades sem rebuço
25Desabridas me escuta, e não te enojes.
A filha (homens e deuses m’o cantavam)
A nenhum proco antigo unir cabia:
Mas por nossa amizade e parentesco,
Pelo chôro da espôsa o nó desfeito,
30Ao genro a fé quebrei com impias armas.
D’então vês quantos males hei soffrido;
Que transes tu mórmente. Já perdidas
Acções duas, de Italia nestes muros
Jaz a esperança; o campo alveja de ossos,
35Mana do sangue nosso o Tibre quente.
Que indicisão! que insania me trastorna!
Se, Turno extincto, associal-os devo,
Porque, elle salvo, a guerra não termino?
Os consanguíneos Rutulos, a Italia
40Que não dirá, se á morte (longe o agouro!),
Quando a filha me pedes, eu te exponho?
O lance he dubio; o velho pae condoas,
Que em Ardea lá te aguarda e lá te chora.»
Turno impaciente não se dobra: o achaque
45Mais se aggrava ao remédio. Apenas poude:
«Por quem es, brada, ó pae, de mim não cures;
Deixa-me a escolha de acabar com honra.
Eu tambem sei jogar a espada e a lança,
E aos golpes deste pulso escorre o sangue.
50Não tem cá deusa mãe que em névoa o encubra
Femínea, ou sombras vãs em que se esconda.»
Treme a raínha á condição da justa,
Retem desfallecida o ardente genro:
«Turno, por este pranto, se has de Amata
55O pundonor a peito (pois columna
Me es na velhice, e de Latino o imperio
E inclinada esta casa em ti se esteia),
Desse duello desiste: eis quanto peço.
Delle, Turno, o teu fado e o meu depende;
60A luz odiosa deporei comtigo,
Nem genro o salteador verei captiva.»
Á voz materna, em lagrimas Lavinia
Incende as faces, de rubor corando;
Fogo instantaneo o vulto lhe escandece:
65Tal fica o indio marfim na grã sanguínea,
Ou purpurêa a rosa entre alvos lirios.
Pregando olhos de amor na casta virgem,
Turno em marte flammeja: «Ó mãe, em summa,
Com tal chôro e preságio não me afflijas,
70Quando ao cru prelio desço: Turno alçada
Não tem na morte. Nuncio, Idmon, não grato
Leva ao tyranno phrygio esta mensagem:
Da Aurora crástina em puníceo coche
Ao roxear, os batalhões não mova;
75Armas descanse o Rutulo e o Troiano;
Decida o sangue nosso; em liça aberta
Desputemos Lavinia; e cesse a guerra.»
Dice, e parte; os frisões demanda, e os mira
Dos relinchos alegre: de Orythia
80Prenda honrosa a Pilumno, sobrepujam
No curso os ventos, no candor a neve;
De aurigas a mão côva os peitos logo
Fagueira trata, as crinas lhes pentêam.
De alvo orichalco e ouro a crespa cota
85Elle aos hombros circumda, a espada ageita,
O elmo rubri-cornuto, a enorme adarga:
Fez-lhe a espada ao pae Dauno o rei do fogo,
E a temperou candente n’agua estygia.
Do Aurunco Actor espólio, hasta robusta
90Péga, ao maior pilar do meio fixa,
E a brande a blasonar: «Ó tu, que nunca
Falhaste, lança, he tempo: Actor pojante
Manejou-te, ora Turno; dá que eu prostre
Válido, e arranque ao semiviro Phrygio
95E lhe espedace a malha, em pó lhe suje
O frisado cabello ungido em myrrha.»
Furente e em sanha, o vulto lhe scintilla,
Em braza ardem-lhe os olhos: como o touro,
Que a lucta ensaia horrífico mugindo,
100Tentando irar-se, aos troncos remettendo,
A cornadas os ventos desafia,
A arêa escarva, e á briga se aparelha.
Não menos fero nas maternas armas,
Enéas embravece e o marte afila,
105Folga do ajuste que dirime a guerra.
Lembrando o fado, Iulo e os seus consola
Do susto; ao rei deputa, e lhe assegura
Que acceita a paz e as condições confirma.
Assimque doura o Sol os altos cumes,
110Quando, ao surgir do pélago, os Ethontes
Luz de amplas ventas sopram; campo á justa
Medindo aprestam Rutulos e Teucros
Sob a grande muralha, e em meio focos
E aras gramíneas ás communs deidades;
115Parte, agua e lume trazem, de verbena
E véos de linho as fontes coroando.
Pilos na dextra, a legião d’Ausonia
Rue de atulhadas portas; phrygia e tusca
D’alêm instructas variamente as hostes:
120Como se Marte os chame a duro prelio.
Mnestheu ramo de Assáraco, fulgindo
Em ostro e ouro, entre milhares corre,
E o Neptunio Messapo e o forte Asylas.
Ao sinal, tomam pôsto, as hastas plantam,
125Encostam seus broquéis. O inerme vulgo,
Avidas mães, enfraquecidos velhos,
Por cumieiras derramam-se e por tôrres,
De janelas e eirados se debruçam.
Do monte, agora Albano, já sem nome,
130Lustre nem glória, attenta Juno a liça
E os exercitos ambos e Laurento.
Eis falla a deusa á diva irmã de Turno,
A qual, em paga do pudor virgíneo
Que o pae summo roubou-lhe, os resonantes
135Rios preside e lagos: «Sabes, nympha,
Das ribeiras adôrno, entre as Latinas
Que entraram do meu Jove o leito ingrato,
Só me es cara, e no Olympo colloquei-te.
Teu mal, Juturna, aprende, e não m’o imputes:
140O Lacio, emquanto aprouve á sorte e ás Parcas,
Hei protegido e a Turno; mas conheço
Que o moço lida com funesto auspício,
E que o termo fatal se lhe approxima.
A briga, o ajuste os olhos meus não soffrem.
145Se algo ousas pelo irmão, convêm que o faças:
Talvez melhore o fado.» Aqui Juturna
Se lava em pranto, e vezes tres e quatro
A punhadas maltrata o seio lindo.
«Não he tempo de lágrimas, diz Juno;
150Eia, o irmão de algum modo esquiva á morte,
Ou desmancha tal pacto e a guerra incita:
Esta empresa, eu t’a ordeno.» E a nympha deixa,
A quem tituba o coração dorido.
Com toda a pompa emtanto os rêis sahiram:
155Em quadriga Latino, em cuja fronte
Brilha um dourado sol de raios doze,
Do avô debuxo; em alva biga Turno,
Que dous hastis sopesa de ancho ferro.
Dos Romuleos o pae do arraial marcha,
160Fulgurando no escudo e arnez sidéreo,
E Ascanio ao pé, de Roma outra esperança;
Em veste pura, de uma cerda o feto
E intonsa o fecial aduz cordeira
Para as flagrantes aras. Ao nascente
165Elles virados, salso farro espargem,
Com faca marcam na moleira as hostias,
Libam taças no altar. O pio Enéas
Despindo o alfange, orou: «Testemunhai-me,
Sol, terra por quem tanto hei padecido,
170Omnipotente soberano padre,
E tu Saturnia déa, já mais branda;
Eu vos depreco; invoco a ti, Mavorte,
Arbitro das batalhas; fontes, rios;
E a vós do mar ceruleo e ethereos numes.
175Se acaso triumphar o ausonio Turno,
Os vencidos, convenho, a Evandro passem,
Daqui se aparte Iulo; nem com armas
Contra este reino os meus, revéis conspirem:
Se a victória coroa o marte nosso
180(Como antes cuido, e os deuses m’o concedam),
Eu não pretendo o imperio, e ao Teucro menos
O Italo sujeitar: em laço eterno
Lei justa invictos una os povos ambos.
No culto intervirei; na guerra o sogro:
185Tenha o solemne mando. A nova Troia
Funde-se, e o nome seu lhe dê Lavinia.»
Enéas finda; e começou Latino,
Seu olhar para cima e a dextra alçando:
«Á terra, Enéas, juro, ao pégo, aos astros,
190E aos gemeos de Latona e ao deus bifronte,
E ás potencias do abysmo e a Dite sevo;
Juro ao pae que a troar sancciona os pactos,
D’ara ás chammas que toco, aos numes todos,
Que, succeda o que fôr, jamais a Italia
195A paz ha de romper, nem fôrça alguma
Della me desligar; bem que um diluvio
Nas ondas solva o mundo, o céo no inferno:
Como este sceptro (e o sceptro aqui sacode)
Nunca enverdecerá com sombra e folhas,
200Pois extirpado, sem têr mãe que o nutra,
Depoz no bosque a ferro a coma e os galhos;
Arvore já, que industre mão de engastes
Ereos ornara aos regios paes latinos.»
Dest’arte as allianças confirmavam,
205Em presença dos próceres; e as rezes
Degolam para o fogo, e sôbre altares
As entranhas em pratos lhes palpitam.
Muito ha que o duello desigual parece;
E de mais perto os Rutulos em susto
210Observam como Turno a passo lento,
Livido e mudo o juvenil semblante,
Submissa a vista, as aras acatava.
Ao vêr a irmã Juturna que o murmúrio
Cresce, e desvaira o vacillante vulgo;
215Fingindo-se Camerte (por avoengos
E paterno valor, por si preclaro),
Semeando rumores corre as filas,
Destra aos Rutulos clama: «Não vos peja
Que por tantos se arrisque uma só vida?
220Em número e denodo iguaes não somos?
Eil-os presentes Arcades e Troas,
Da Etruria a fatal hoste infensa a Turno:
Cada qual seu contrário apenas temos.
Elle que aos divos se ale, aos quaes se immole,
225Vivo na voz da fama; e em ócio quedos,
Nós cá, perdida a patria, ao jugo estranho
De suberbos senhores nos rendamos!»
Isto afoguêa os moços; e um sussurro
Pelas turmas serpêa. Já mudados
230Laurentes e Latinos, que esperavam
Em seguro, a paz rôta e pugnar querem;
Do infortunio de Turno se amiseram.
Mais Juturna os instiga, e um sinal mostra
Que a proposito os animos conturba,
235Do prodígio embaídos: aguia fulva
No rubro ether caçava um sonoroso
Leve marinho bando; e a vôo ás aguas
Presto resvala, e empolga um cysne bello
Na ávida garra. Os Italos se alentam;
240E as aves todas, oh portento! a fuga
Ruídosas convertendo, em nuvem densa
Tapando os ares, o inimigo atacam;
Té que, cedendo á fôrça e á mesma carga,
Esmorece, e no rio a grave presa
245Das unhas larga, e some-se nas auras.
Todos, prestes á lide, o auspício acclamam;
E brada o augur Tolumnio: «Isto, isto, ó numes,
Tanto roguei-vos; o favor acceito.
Comigo, arma, arma, ó gente amedrontada,
250Quaes fracas aves, pelo atroz vindiço
Que estas praias devasta: elle não tarda
Vélas a dar corrido ao ponto fundo:
Cerrando as filas, defendei comigo
O rei vosso e da justa arrebatai-o.»
255Dice, e logo um zarguncho infesto arroja;
Os ares frecha o estrídulo corniso:
Soa o alarido; horrífico tumulto
Os cuneos turba, os corações escalda.
A hasta, a voar por entre nove esbeltos
260Irmãos, que de fiel tyrrhena espôsa
Houve o Arcadio Gylippo, alcança um delles,
De relumbrante arnez gentil mancebo,
Onde o cosido balteo o ventre pisa,
E a mordente fivela une as charneiras;
265Traspassa as costas e na arena o estira.
Acres, cegos do nojo, os irmãos rompem,
Remêsso ou gladio em punho; os de Laurento
Contra avançam: de novo inundam Phrygios,
E arreiados Arcadios e Agyllinos.
270Um só do ferro o amor domina em todos.
Saqueam-se aras; tolda os pólos torva
De rojões tempestade e chuva de aço;
Copas tiram, tições: Latino foge,
Da injúria aos deuses, da traição queixoso.
275Qual emparelha o coche, qual de um salto
Cavalga lesto, qual desnuda a espada.
Messapo, que annular deseja as pazes,
Ao Tusco Auletes em reaes insignias
Remette o bruto: a recuar de espanto,
280Atrás o triste rei de encontro ás aras,
Cahe de hombros e cabeça. Eis que Messapo
Do alto corsel malfere ao supplicante
Com trabal chuça, e férvido vozêa:
«Morre, esta he melhor víctima aos supremos.»
285Acode a chusma, e os quentes membros despe.
Chorineu, de um tição do altar pegando,
A Ebuso, que despede e um golpe acena,
Chammêa o rosto: luz comprida a barba,
O chamusco a cheirar. De chofre ás grenhas
290Deita-lhe a esquerda, mette-lhe o joelho,
Prosta-o sem tino, corre-lhe a estocada.
A Also pastor, que em frente arrosta e campa,
De alfange nu seguindo Poladírio,
O assuberba; Also, erguendo a machadinha,
295Lhe escacha a testa e o queixo, as armas rega
Dos esparsos miollos: ferreo somno
O urge, e os lumes em noite fecha eterna.
Mas, patente a cabeça, a dextra inerme
Leva, e aos seus brada Enéas: «Suspendei-vos:
300Que furor, que discordia vos despenha?
Ferido o ajuste, as condições compostas,
Devo eu só pelejar, deixai-me; os pactos,
Não receeis, confirmará meu braço:
Já destinam-me Turno os sacrificios.»
305Nisto, setta a zunir no heroe se encrava:
Que mão, que impulso a desparou, se ignora;
Se aos Rutulos um deus, se o mero acaso
Tal glória permittiu: suppressa a fama,
Do golpe e arrôjo tal ninguem jactou-se.
310Turno, ao partir Enéas, vendo os chefes
Consternados, fervente e esperançoso
Pede armas e corséis, no carro salta,
Menêa altivo as redeas. Vôa, immola
Muitos varões de prol, ou semimortos
315Os roda, ou sob o coche esmaga immensos,
De hastas se apossa que aos fugidos vibra.
Se o truculento Marte no Hebro frio
Pulsa o broquel e incita os corredores,
Elles, bufando pelo plaino livre,
320Zephyro e Nôto excedem; geme inteira
Ao seu tropel a Thracia; ao nume escoltam
A Ira, a Traição, do Susto o aspecto baço:
Tal em suor fumantes os cavallos
Braceja alegre Turno, e insulta os mortos;
325Sanguíneo orvalho esparge e vérte a roda,
Na lenta arêa a unha o cruor calca.
Mata a Pholo e Thamyris á mão tente;
A Sthenelo de longe, e a Glauco e Lades
Irmãos, que em Lycia Imbraso pae criara,
330E igualmente os armou, que a pé combatam,
Ou na equestre corrida as auras vençam.
Lá, do antigo Dolon guerreira prole,
Pompêa Eumedes, imitando em nome
O avô, no esfôrço o pae; que ousara, em paga
335De ir espiar o acampamento graio,
De Achilles para si pedir o coche:
Mas de outro modo lh’o pagou Tydides;
Elle aos frisões do heroe nem mais aspira.
Turno, avistando na planicie o filho,
340Joga-lhe um dardo pelos vacuos ares,
Pára, da biga pula, e ao semivivo
Que descahe sobrevem, no collo a planta
Lhe imprime, esbulha-o do punhal fulgente,
Na garganta lh’o tinge, e assim blasona:
345«Mede jazendo, ó Teucro, o solo hesperio
Que vinhas conquistar: dos que me affrontam
Eis o premio; dest’arte os muros fundem.»
A botes lhe ajuntou Sybaris, Bustes,
Chloreu, Dares, Thersílocho, e Thymetes
350Que aos trancos o animal da cerviz lança.
Qual, se do Egeu no pégo o Edonio Bóreas
Sopra sonoro e as ondas rola ás praias,
Do céo, por onde vara, espanca as nuvens;
Tal ao fogoso Turno as alas cedem,
355E fogem batalhões: o impeto o leva,
Batem-lhe o carro as fluctuantes plumas.
Phegeu não lhe supporta o orgulho e sanha;
Ao coche avança, aos rapidos ginetes
Retorce os freios e espumantes queixos.
360De rôjo e ás bridas preso, em descoberto
O apanha larga chuça, e a coira dobre
Rôta, a cutis lhe prova o golpe leve.
Elle se adarga, e já de estoque em reste,
Vôlto para o inimigo, auxílio pede:
365Mas o eixo despedido e a roda o impelle,
Cahe por terra; e entre a cota e o casco Turno
Decepa-lhe a cabeça, e troncho o prostra.
Emquanto ufano tudo arrasa e estraga,
Mnestheu e Achates fido e Iulo ás tendas
370A Enéas acompanham, que sanguento
No conto abordoava os tardos passos.
Raiva a luctar, e o meio quer mais prompto
Com que da haste quebrada a farpa arranque:
Abram de espada, e o golpe dilatando
375Catem-lhe o ferro, porque á pugna torne.
Era presente o Iasidis Iapis,
Dilecto amigo do extremoso Apollo;
Que ledo as artes suas lhe doara,
O augurio, a musica, as ligeiras settas.
380Elle, a fim que a seu pae retarde os fados,
Antes inglório conhecer as hervas
E exercer quiz a muda medicina.
N’hasta a bramir Enéas se estribava,
Cercado immovel de tristonhos jovens
385E de Ascanio a chorar. Peonia a loba
O habil velho traçando, em vão tentêa
E usa as de Phebo virtuosas plantas,
Em vão sonda com geito e prende o ferro
Com tenaz pinça: nem fortuna o serve,
390Nem seu mestre o soccorre; e mais no campo
Mais cruel medra o horror, mais perto avulta.
Já se ennovela o pó, já se ouvem rinchos,
No arraial chovem dardos; grita immensa
Dos combatentes soa e dos que morrem.
395Venus, a quem do filho as dôres pungem,
No cressio Ida colheu de flor purpúrea
Dictamo, caule de pubentes folhas;
Não da corça ignorado, se expedita
Frecha ao dorso lhe adhere. Em névoa escura
400Venus o traz involta: em vaso terso
De agua turva o infundindo, occulta o misto
Ella tempéra, e esparge-lhe os salubres
Succos de ambrosia e odora panacéa.
Inscio o longevo Iapis á ferida
405O banho applica: logo a dôr se extingue,
O sangue estanca; a setta por si mesma
Já segue a mão; restauram-se-lhe as fôrças.
«Presto, armas ao varão; tardais? primeiro
Grita Iapis e os animos inflamma:
410Não foi pericia minha ou arte humana
Que, Enéas, te curou; foi celso nume,
Que a façanhas grandiosas te reserva.»
Avido o Phrygio as canneleiras calça,
E as demoras detesta e brande a lança.
415Depois que enfia o escudo e a cota enverga,
De ponto em branco armado abraça o filho,
Ergue a viseira e o beija: «O vero esfôrço
De mim, Ascanio, aprende e o soffrimento;
De outros, a dita. Agora a dextra minha
420Vai segurar-te, o que reputo um premio:
Lá na idade madura não te esqueças
Do exemplo dos avós, nem de que houveste
Enéas por teu pae e Heitor por tio.»
Dice, e hasta ingente balançando parte;
425Das portas após elle turba infinda,
Antheu sahe e Mnestheu; largando os vallos
Flue toda a gente: cego pó se enrola,
E ao pulsar do tropel treme a campanha.
De adverso marachão destingue-os Turno:
430Gêlo aos d’Ausonia pelos ossos coa.
Primeira entre elles percebeu Juturna
O ruído, e vai-se trépida. Elle a vôo
Traz a atra nuvem pelo aberto plaino.
Quando, em siderea conjunção, borrasca
435Do mar ronca, os agrícolas presagos
Ai! se arrepiam, que ella estrago e damno
Aos pomares prepara e ás sementeiras;
Sopra o vento, e um sonido ás praias chega:
Tal o chefe rheteu move as esquadras,
440E em cuneo as cerra e densa. Ao grave Osiris
Fere e trunca Thymbreu, Mnestheu a Archecio,
Achates a Epulon, a Ufente Gyas;
Tomba o augur Tolumnio, o que o primeiro
Vibrou dardo infractor. Os céos atroa
445Amplo alarido, e aos Rutulos agora
Fuga pulverulenta as costas vólta.
A nenhum dos que fogem, dos que atiram
Distante, ou perto o investem, não se digna
De derribar o heroe: só busca a Turno,
450Por Turno clama, entre a caligem basta.
A virago Juturna, apavorada,
Por entre os loros a Metisco, auriga
De Turno, ao longe do timão sacode:
Monta, e maneja e dobra undantes bridas;
455Finge a voz de Metisco e a fórma e as armas.
Qual de rico senhor por tectos e atrios
Fusca andorinha adeja, cata e indaga
Para os gárrulos ninhos o cibato,
E ora por vacuos pórticos, chilreira,
460Ora por tanques humidos revoa;
Tal a trote Juturna, entre inimigos
Percorre tudo no ligeiro carro,
Do irmão fazendo alardo: á lucta o esquiva,
Por desvios o aparta. Enéas obvio
465Lesto os rodeios corta, e á pista a vozes
De hostes esparsas pelo meio o chama:
Sempre que a Turno olhos desfere e emúla
O curso dos alípedes cavallos,
Juturna o evade retorcendo o coche.
470Ah! que obrará? fluctua em varios estos,
E differentes cuidos o arrebatam.
Leve armado, Messapo dous virotes
Na sestra acaso tinha; um vibra e acerta:
Pára, escuda-se o Teucro, e a perna encurva;
475Mas levou-lhe o farpão cimeira e plumas.
Surgem-lhe as iras; da traição coacto,
Mal sentiu que os frisões e o coche o evitam,
A Jove attesta e as aras violentadas,
Acerbo invade com propício marte,
480E, sem descrime na fatal matança,
As redeas sólta á colera terrivel.
Qual deus, quem ha, que em verso me declare
Que estragos na campina e mortos cabos
Derramou Turno agora, agora Enéas?
485E permittis, ó céos, que entre si luctem
Povos que tem de unir-se em laço eterno?
Ao Rutulo Sacron não tardo o Anchíseo
(Pugna que em seu furor deteve os Teucros)
De lado, onde he mais prompta a morte, o ferro
490Mette, e a caixa do peito e as costas vara.
A Diores e Amyco irmãos desmonta
A pé Turno, um de espada aguda vindo,
Um de hasta longa; e de ambos as cabeças
Talha, e sangue estillando ao coche as prende.
495O Dardanio a Talon, Cethego, Tánais,
Que investem juntos, mata, e o pobre Onythes,
Nome echionio, de Peridia nado:
Turno, uns irmãos da Lycia, a Phebo cara,
E a Menetes Arcadio, á guerra avesso;
500Moço em Lerna piscosa afeito ás redes,
Sem dos grandes saber do pae na choça,
Que de renda um campinho semeava.
Como dá sôlto o incendio em sêcca mata
E crepitantes louros; como espumeos
505Estrepitosos rios despenhados
Com vastadora quéda ao mar caminham:
Taes os dous campeões rutulo e teucro
Se precipitam; já fluctua interna
Raiva; já corações que o não cuidavam
510Rasgam-se; os golpes desmedidos fervem.
Enéas a Murrano, que arrotava
Lacios avoengos de real prosapia,
Com seixo enorme em turbilhão derriba:
As rodas volvem-no entre o jugo e os loros,
515E ingratos brutos com patada crebra
Conculcam seu senhor. De Hyllo, que immano
Fremente ameaça, ás temporas douradas
Contorce Turno um dardo, que pelo elmo
No cerebro se encaixa. Não o evitas,
520Creteu, valente Graio. Nem de Enéas
A Cupenco seus deuses resguardaram:
De encontro o peito ao ferro, ah! nada embarga
O ereo broquel. Tambem laurentes agros
Viram-te, Eolo, vasto chão cobrindo:
525Morres tu, que as phalanges não poderam
Grajugenas prostrar, nem do priâmeo
Reino o eversor Achilles: no Ida excelsas,
Excelsas casas em Lyrnesso tinhas;
Tens a méta em Laurento e a sepultura.
530Tudo he baralha, os Teucros, os Latinos,
Briga tudo; Mnestheu, Seresto bravo,
E o picador Messapo e o duro Asylas,
Alas de Evandro e batalhões toscanos:
Com summo esfôrço cada qual porfia;
535Larga, incessante, encrua-se a batalha.
Aqui Venus formosa inspira ao filho
Que assalte os muros, e a Laurento oppressa
Com mortandade subita consterne.
Elle, que, a Turno investigando, os lumes
540Deita em redor, quieta e impune avista
A perfida muralha; e em marte acceso
Traça plano maior. Mnestheu, Sergesto,
Seresto forte chama; e n’um outeiro,
Onde reune os seus de escudo e lança,
545Do alto brada: «Obedeçam-me de prompto;
Jupiter he por nós, executai-me
Não frouxos o repente. Hoje a cidade,
Causa do mal, e de Latino os reinos,
Se o freio me refusam não submissos,
550Destruo, assolo os tectos fumegantes.
Esperarei que a Turno já vencido
A justa apraza? Da nefanda guerra
Eis, cidadãos, a summa, eis o remate:
Sus, reclame-se o pacto a ferro e fogo.»
555Dice; e, formando em cuneo a densa mole,
Ataca os muros. A escalada, o incendio
Cresce: uns ás portas, retalhando os guardas,
A discorrer; o alfange a esgrimir outros;
O ar de tiros se obumbra. Entre os primeiros
560No muro Enéas mesmo a dextra ferra;
Grita e accusa a Latino; os céos attesta
Que á batalha he forçado, que hostilmente
Os de Italia o aggrediram duas vezes,
Duas tambem ás convenções faltaram.
565Dentro lavra a discordia: espavoridos
Uns abrir ao Troiano as portas querem,
E ao muro o mesmo rei comsigo arrastam;
Armam-se outros e insistem na defensa.
Tal, se na cresta o latebroso pomes
570O rustico enche de vapor amargo,
Trépido errando o enxame em cereos vallos
Zumbe, a colera aguça: olor nos tectos
Forte recende, um murmurinho cego
No ouco soa, e no ar se engloba o fumo.
575Mais quebranta os Latinos um desastre,
Que a cidade revolve e em lucto abala:
Vendo a raínha do inimigo a entrada,
Pelas casas o incendio, e que nem Turno
Comparece nem rutula phalange,
580Morto o mancebo no conflicto julga,
E em turbida agonia a triste clama
Que de mal tanto e crime he fonte e causa;
Vocifera sem tento, e furibunda
Rasga o manto púrpureo, e atando um laço,
585De alta viga pendeu com morte informe.
Corre a fatal notícia: as roseas faces
A filha dilacera e as flavas tranças;
Mestas em tôrno as damas esbravejam;
O pranto a régia estruge. Divulgada
590A cruel fama, os corações prosterna:
A cidade em ruína, a espôsa extincta,
Latino attonito espedaça as vestes,
E as cãs em pó denigre enxovalhadas;
Muito se accusa de não têr a Enéas
595De grado recebido e acceito genro.
Remoto o bellaz Turno, menos lesto,
Já dos frouxos cavallos descontente,
Persegue uns trasmalhados: eis que as auras
Trazem-lhe terror cego e vozeria,
600E os ouvidos attentos lá percebem
Murmuro desalegre e som confuso:
«Ai! que rumor tamanho[2], lucto quanto
Rue dos oppostos perturbados muros?»
Dice, e as bridas retem, sem tino estaca.
605Mas a irmã, que em Metisco disfarçada
Regía o coche, lhe tornou: «Sigamos
A via, Turno, que a victória indica;
Braços ha na cidade que a defendam.
Se ataca Enéas e atropela os nossos,
610Com fero estrago os seus tambem rendamos:
Não te irás inferior na glória e feitos.»
Turno: «Irmã, respondeu, muito ha conheço;
Es tu que arteira, desmanchando o ajuste,
Na acção te ingeres: não me enganas, deusa.
615Quem te enviou do Olympo a tantas lidas?
Vens do irmão assistir ao cru trespasso?
Que resta? que inda espero da fortuna?
Ante os meus olhos, só por mim chamando,
Murrano acaba, o meu melhor amigo,
620De atroz ferida; o caro Ufente expira,
Por não testemunhar a affronta nossa:
Possue-lhe o corpo e as armas o inimigo.
Soffrerei, duro transe! os tectos rasos,
Sem que a Drances refute a dextra minha?
625Vêr-me o Lacio dar costas! fugir Turno!
Pois morrer tanto custa? Vós ó manes,
Já que os céos me aborrecem, protegei-me:
Alma insonte e sem mancha, á Estyge baixo,
Dos meus grandes avós não terei pejo.»
630Nisto, Saces no espúmeo alado bruto
Entre as filas hostis, frechada a cara
Mostrando, implora a Turno: «Es nosso amparo,
Turno; dos teus ha dó. Fulgúreo Enéas
De exicio ameaça as fortalezas nossas;
635Já voam fachos. Em ti só fitamos
Os olhos, Turno, em ti: na escolha mesmo
De genro ou de alliança el-rei tituba;
E a raínha fiel, desesperada,
Suicidou-se a final. Messapo e Atinas
640Sustentam sós ás portas o conflicto;
Ferrea hirta messe, densa turba os cérca:
Tu no deserto prado o coche rodas!»
Turno, ao se afigurar tam varios casos,
Tacito e quedo embaça; lucto, insania,
645Vergonha, amor, estuam-lhe no peito,
Furias e o conscio brio. Assimque as trevas
Dissipa e a mente acalma, conturbado
A vista em braza revirando aos muros,
Do seu carro contempla a gran’cidade.
650Eis que um vortice flammeo, ao céo montando,
Ondêa entre os soalhos de uma tôrre,
Que elle erguera de traves bem compactas
Com rodas e altas pontes. «Não me estorves;
O fado vence, irmã: já já corramos
655Onde elle e um deus nos chama. Com Enéas
Braço a braço, a tragar a morte acerba
Disposto, irmã, não me verás sem honra:
Ah! deixa-me antes em furor cevar-me.»
Dice, e do carro apêa: entre armas e hostes,
660Largando a irmã chorosa, pelo meio
Dos Teucros rompe com veloz carreira.
Qual, se por furacão do monte a penha
Róla avulsa, ou das chuvas aluída,
Ou por vetustos annos solapada,
665De pricipicio em pricipicio aos tombos,
Selvas no impeto arrasta, armentos, homens;
Tal, com vasta ruína, aos muros Turno
Se despenha, onde o sangue alaga a terra
E de espessos farpões os ares zunem.
670Acena e grita: «Ao ferro dai, Latinos,
Tregoas, e ao dardo ó Rutulos: a sorte
Qualquer que fôr, he justo que o tratado
Eu por vós desempenhe e só peleje.»
Todos se arredam, largo espaço abrindo.
675Seu nome ouvido, accelerado Enéas
As fortalezas desampara; as obras
Interrompe de chofre, alegre exulta,
E horrendo em armas toa: o Athos, o Eryx,
Mesmo o Apennino padre, assim bramindo
680Folga, e azinhos balança coruscantes,
E altêa ás auras o nivoso cume.
Phrygios, Latinos, quantos as muralhas
Frangiam com vaivens ou propugnavam,
Os olhos convergindo, o arnez dos hombros
685Lassos depõem. Do encontro o rei pasmava
De heroes que, nados em distantes plagas,
Entre si valorosos combatiam.
Vazio o campo, á desfilada, lanças
De longe elles vibrando, o marte encetam,
690E ereos broquéis resoam, geme a terra:
Crebros talhos de espadas já redobram;
Ardil, valor, fortuna, se confundem.
Se no celso Taburno ou Sila immensa
Dous touros fronte a fronte hostis concorrem,
695Os maioraes se assustam; mudo o gado,
Surdo as novilhas tugem, sem que atinem
Qual, dono da manada, ao bosque sigam;
Luctam renhidos enganchando os cornos,
Mesclam-se os golpes; muito sangue inunda
700Collos e espadoas; brama a selva e muge:
Dos heroes Teucro e Daunio assim retinnem
Broquéis e cotas, e o fragor rimbomba.
Ouro e fio a balança, os fados de ambos
Jove nas conchas libra, examinando
705Quem na lide succumba e vergue ao pêso.
Turno então, ferir crendo impune, esgrime,
Com todo o corpo sôbre o gladio cresce;
De susto um e outro campo exclama attento:
Mas a perfida folha estala e falha;
710E ao vêr, sem mais recurso o moço ardente,
Ignota empunhadura e a dextra inerme,
Como Euro foge. He voz que, ao primo assalto
Montando o coche, em vez do patrio ferro,
Do auriga arrebatou sem tino a espada:
715Ella bastara a dispersar os Teucros;
Mas, á prova das armas de Vulcano,
Se desfez como gêlo o mortal gume,
E em pedaços brilhou na fulva arêa.
Turno deita veloz pela campina,
720E mentecapto aqui e alli voltêa:
Lá fecham-no em coroa os Phrygios densos,
Arduos muros alêm, cá vasto lago.
Acre Enéas o acossa, e bem que ás vezes
Lhe impeça e aggrave os joelhos a frechada,
725Urge ao medroso o pé com pé fervente:
Qual, se em rio o sabujo encontra o cervo
Incluso, ou do espantalho de punícea
Penna acuado, late e o corre e caça;
Da ribanceira e insídia espavorido,
730Safa-se elle, anda e vira; o vívido umbro
Hiante o alcança, quasi quasi o aferra,
E, como se o pegara, os queixos range,
E a vã dentada o illude; a grita e os ladros
Retumbam na lagôa e em tôrno ás ribas,
735Toa ao tumulto o céo. Na fuga Turno
Exprobra e os seus nomêa, exige e pede
A nota lamina. O rival commina
Morte, se alguem lhe acode, o estrago e exício
Da cidade, e ferido insta, amedronta.
740Cinco vezes gyrando e regyrando,
Leves premios de jogos não pleitêam;
Da vida e sangue trata-se de Turno.
Sacro a Fauno, um zambujo havia acaso
De amara folha, aos nautas veneravel;
745Onde o náufrago os dons pregar sohia
Aos deus, e as vestes suspender votivas:
Porque em plano combatam, sem descrime
A arvore santa os Phrygios extirparam.
A hasta Enéas impelle, que ás raizes
750Se lhe apega tenaz: quiz arrancal-a
Com summo afinco e despedil-a a Turno,
A quem chegar a curso não podia.
Este louco de medo: «Ha mágoa, ó Fauno;
Retem a lança. eu te oro, amiga Tellus:
755Sempre honrei vosso culto, e a guerra eneia
Profanado vos tem.» Não foi baldia
Sua oração; que sôbre o tronco o Phrygio
Curvo labuta, e não lhe vale o esfôrço
Do lenho a desfechar o morso rijo.
760Emquanto mais se estriba e insiste, a diva
Daunia, em fórma do auriga, o irmão soccorre,
Dá-lhe a espada. A ousadia irríta a Venus,
Que baixa e da raiz despega a lança.
Refeitos de armas, de ânimo sublimes,
765Este afouto no gladio, aquelle n’ hasta,
Do anhêlo Marte no lidar proseguem.
Emtanto o rei supremo a Juno falla,
Que de uma nuvem roxa observa a pugna:
«Que resta, espôsa, e traças? Tu confessas,
770Deve indígite Enéas, manda o fado
Séde no Olympo têr, subir aos astros.
Que urdes? que esperas em geladas nuvens?
A um deus violar convem com mortal golpe?
Render a Turno a espada (o que ousaria
775Sem ti Juturna?) e acorçoar vencidos!
Basta, cede ao meu rôgo: não te roa
Tacito enfado; a revelar-me o peito
A tua doce bôca se acostume.
Veio o termo: agitaste o mar e a terra,
780A discordia incendeste, em lucto infando
Invôlta a régia, as nupcias perturbaste:
Não mais, agora o vedo.» Cessa o padre;
E submissa contesta a irmã Saturnia:
«Teu querer conhecendo, eu constrangida
785Abandonei, senhor, a Turno e o mundo;
Senão, curtindo ultrages, não me viras
Neste ar sózinha, mas na acção, de flammas
Cingida, em prelios consumindo os Phrygios.
Sim, a ajudar o irmão suadi Juturna;
790Louvei que por salval-o ousasse tudo,
Mas não que de arco e settas contendesse:
Da implacavel Estyge á fonte appello,
Jura tremenda aos superiores numes.
Desisto alfim; batalhas já me enojam.
795Favor obsecro não sujeito aos fados,
Pede-o Italia e dos teus a majestade:
Casamentos embora a paz componham,
E leis o pacto assellem; não permittas
Que os Latinos indígenas, perdido
800O antigo nome, Teucros se appellidem,
Nem mudem lingua e trajo. Eterno viva
O Lacio, os rêis Albanos; herde Roma
O italico valor, propague e brilhe:
Troia acabou, tambem seu nome acabe.»
805Surrindo o arbitro summo: «Irmã, lhe torna,
Segunda prole de Saturno, de iras
Estos volves no peito? O rancor cego,
Eia, amaina: de grado e ás preces tuas
Tudo concedo. Falla e usanças patrias
810A Ausonia guarde, o nome seu conserve:
Consorciados fiquem-se os Troianos;
Farei que, em rito iguaes e em sacrificios,
Formando um povo, a mesma lingua tenham.
Virão do misto sangue ausonio e teucro
815Homens pios que aos deuses se avantagem;
Nem haverá nação que te honre tanto.»
Juno eis annúe alegre, a mente aplaca;
Do ether já se retira e a nuvem deixa.
Outra cousa então Jove em si versando,
820Resolve separar do irmão Juturna.
Ha duas pestes, por cognome Diras,
De um parto vindas com Megera estygia
Da escura Noite, que as liou de serpes
E azas lhes deu ventosas. Ante o solio
825De Jove sevo e ao limiar assistem,
E o medo afilam dos mortaes, se alquando
Morbos elle prepara e o trago horrendo,
Ou pune as gentes com terrivel guerra.
Jupiter uma lá de cima expede,
830Que ominosa a Juturna se offereça.
Ella, n’um turbilhão, qual frecha voa,
Que despara o cydonio ou partho nervo;
Arma incuravel que no fel untada
E cru veneno, alígera estrugindo,
835Improvisa atravessa as leves sombras.
Desce a filha da Noite: e, mal que enxerga
Os exercitos ambos, no pequeno
Passaro contrahiu-se que a deshoras,
Pousando em cemiterios e ermas grimpas,
840Cruja importuno e lugubre nas trevas:
De Turno em cêrco a peste assim revoa,
Guincha aleando, e lhe verbera o escudo.
Turpor novo o arripia, hirto o cabello,
Tronca a voz na garganta. A irmã, que ao longe
845Distingue a Dira e as estridentes pennas,
As madeixas lacera, de unhas rasga
E afeia o rosto, e o seio com punhadas:
«Como ha-de agora, Turno, a irmã valer-te?
Ai! que me resta que te alongue a vida?
850Posso a tal monstro oppôr-me? Eu deixo o campo
Já já. Não me aterreis, obscenas aves;
O som letal e esse adejar conheço;
Não me enganam de Jove as duras ordens.
Paga-me generoso a virgindade!
855Fez-me eterna? oh pezar! se eu mortal fôsse,
Os desgostos findava, e aos tristes manes
Iria acompanhar o irmão querido.
Nada jamais sem ti me será doce,
Nada, meu Turno. Um boqueirão me engula,
860E em seu profundo centro abysme a deusa.»
Cobre a cabeça então com verde manto,
E gemebunda se sumiu no pégo.
O troço arbóreo coruscando Enéas,
Insta com feroz peito: «Que demoras,
865Turno? arrependes? não correr, mas cumpre
Luctar com sevas armas. Várias fórmas
Toma, usa embora todo o esfôrço e manha;
Sobe de surto aos astros, ou te occultes
Nas terreaes entranhas.» Abanando
870Elle a fronte: «Esses feros não me assustam;
Jupiter sim e os inimigos deuses.»
Nem mais, e encara antiga pedra enorme,
Agrario marco, estôrvo de litigios;
Pedra, carga bastante aos mais robustos
875Doze homens dos que a nossa idade cria:
Com tremor agarrando-a, heroe se empina
E na corrida a impelle; mas ignora
Se anda ou corre, se péga o ingente marco,
Se o move e arroja: faltam-lhe os joelhos,
880Coalha o sangue. No vácuo roda a pedra,
E, sem que o termo alcance, o impulso esfria.
Como em sonhos, se languida modorra
Nos preme os olhos, ávida carreira
Tentando em vão, no meio esmorecidos
885Succumbimos; a lingua e a voz nos falha,
Falham no corpo as fôrças: tal, por onde
Seu valor Turno ensaia, o impede a Furia.
Cem cuidos versa: os Rutulos contempla,
Olha a cidade; enfia, e da imminente
890Lança estremece, de evadir-se o meio
Nem contra seu rival já vê recurso,
Nem mais a auriga irmã, nem mais seu carro.
Em quanto hesita, o lanço Enéas mede,
A hasta vibra fatal, forceja e sólta:
895Nunca assim fremem do mural trabuco
Jogadas rochas, nem trovão rebrama:
Qual furacão letífera voando,
Da cota as orlas e os extremos orbes
Do septêmplice escudo a estrugir fura,
900E a coxa lhe traspassa. Ao bote o moço,
Inflexa a curva, tomba; os seus altêam
Mesto clamor; remuge inteiro o monte,
E na selva o lamento amplo reboa.
Turno olha humilde, súpplice ergue a dextra:
905«Bem mereço, he teu jus, perdão não peço;
Mas, se de um pae (de Anchises te relembres)
Commove-te a velhice, a Dauno eu rógo
Me entregues, senão vivo, ao menos morto.
Venceste, e viu-me emfim a Italia toda
910As palmas levantar: Lavinia he tua;
Os odios não requintes.» O acre Enéas
Pára, os olhos voltêa, a mão reprime:
Iam-no as preces quasi enternecendo,
Quando o infeliz talim se mostra ao hombro
915E a cravação do cingidouro fulge,
Despojos de Pallante, a quem menino
Prostrara Turno com letal fereza,
E essa devisa infesta em si trazia.
Da cruel dôr no monumento os olhos
920Mal embebe, enfuriado o heroe vozêa:
«Que! tu me escaparás dos meus com presa!...
Nesta ferida immola-te Pallante,
Pallante vinga-se em teu impio sangue.»[3]
No peito aqui lhe esconde o iroso ferro:
925Gêlo os orgãos lhe solve, e n’um gemido
A alma indignada se afundou nas sombras