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Entre as Nympheas/A pesca do Deodato

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A pesca do Deodato
 

A pesca do Deodato


 
Ao Sr. J. T. Lobato de Castro
 

O tenente-coronel Fernandes salivou com estrépito para longe, afim de salvar a esteira que se estendia por baixo da maqueira e, ageitando no longo taquary pintalgado a cabeça de barro topetada de tabaco legitimo do Acará, proseguiu:

— É como lhes digo. A desobediencia aos preceitos da egreja traz sempre após si a necessaria e indefectivel punição. Bem o affirma o ditado: — Deus castiga sem pau nem pedra. É certo que, quasi sempre, a consequencia lógica da culpa atraza-se tanto, que o peccador impenitente prolonga uma existencia criminosa no meio da mais impassivel tranquillidade, como se possivel fôsse á justiça do ceu esquecer. Muitas vezes, porém, a pena succede-se á culpa sem notavel intermissão e, em todo o caso, o espirito prudente só tem novo ensejo para arrenegar do instincto maldoso do homem e colher no exemplo nova convicção da sabedoria celestial.

Calou-se, pigarreou, fitando com tenacidade, d’um modo quasi severo, o auditorio resumido e conspicuo: o Antonio Narceja, portuguez enriquecido n’um barracão á entrada do furo do Pagé; o Dr. Polycarpo Varella, juiz de direito, cuja recente remoção para Salinas filiava-se a memoraveis façanhas eleitoraes, nos confins do Paraná, ao expirar a situação conservadora, havia poucos mezes e Felix Jacaré, um cabôclo muito republicano, sapateiro de officio, avô do pequenito que dormitava-lhe ao cólo, esgaravatando machinalmente o nariz com o dedo titubeante, a cara suja, os labios breiados de assahy, como breiado estava o peito do camisão de riscadinho azul e branco.

Bateram nove horas n’um relogio pendente da parede caiada. Fóra, bramia o mar. Pela janella aberta entravam, com a brisa, exhalações salinas e esse borborinho confuso e melancholico das noites em plena roça. No tecto de vigamento visivel, trilavam grilos. E, por intercadencias, a luz do candieiro de porcelana pestanejava de leve, como se também por ella passasse o arripio mysterioso das coisas tragicas que ali se falava ou se o apavorasse o tom soturno das considerações philosophicas do tenente-coronel Fernandes.

— Tem muita razão, acudiu Antonio Narceja, offerecendo obsequiosamente um phosphoro acceso ao Dr. Varella, que sacára um cigarro de tauary.

— Conforme... obtemperou o Jacaré, cujo espirito de contradição era conhecido na villa.

— Vou dar-lhe um exemplo, compadre, retorquiu Fernandes, risonho e sereno.

Pigarreou de novo, tornou a salivar. Depois, ageitando-se na rede, emquanto os companheiros aproximavam curiosos os bancos, principiou.

*

Ha coisa de uns 25 ou 30 annos, vivia no Magoary um preto corpulento e encanecido, cuja edade ninguém poderia calcular e que toda a redondeza conhecia como sendo o mais ousado e feliz pescador da localidade.

Methodico, não passava um dia sem ir á pesca; afortunado, não atirava a tarrafinha sem depois puxal-a repleta de peixes! Era um assombro, um gosto admiral-o em acção! Parece que rejuvenescia-o o mar. Qualquer que fôsse o estado do tempo, era infallivel encontral-o todas as noites, pelas duas horas, descendo ao pequeno porto do barracão, a desencalhar a canôa e logo fazer-se ao largo.

E que saúde de ferro tinha elle! Jamais conhecera um incommodo, uma dôr de cabeça! Rijo como o acapú, afrontava os temporaes com a impavidez do fatalista. E pela madrugada, quem saisse á praia, não deixaria de descortinar muito ao largo, no mar alto, a pequenina luz intercadente da canôa do Deodato.

Era rendoso o officio. Quando voltava á casa, depois do nascer do sol, o pescador trazía atopetado o fundo da embarcação. Ninguém o vencia na arte da salga, de tal modo que o seu peixe encontrava sempre melhores offertas do que o dos demais pescadores da costa do Magoary, quando os procuravam os compradores que iam revender em Belém.

Mas tinha um defeito o Deodato: — era um impio. Deveria possuir a alma egual á cutis, porque desprezava as leis de Deus e zombava impertinente de todos os mysterios da religião e de todos os actos do culto catholico.

Em balde buscara algumas vezes o padre Simplicio — conheceram? — trazei-o á reflexão e demovel-o ao respeito pelo Senhor. De tudo escarnecia o infeliz e, o que é mais revoltante, possuia phrases curiosas, sophismas fustigantes, objecções irrespondiveis, para combater os conselhos do sacerdote. Tudo era inutil. Não havia razão que o impedisse de ir á pesca ao domingo e dia santificado como em qualquer outro de trabalho.

— Você ha de acabar mal, — avisava o padre, entre carinhoso e recriminativo.

— Milhor p’ra mim, — retorquia o hereje, sarcastico.

*

Ora, uma tarde, era vespera de não sei que dia santo grande. Creio que a Egreja rendia culto á Virgem sob a invocação de Senhora de Belém. Fazia um calor enorme. O ceu estava claro, limpo, muito azul e tranquillo, como tranquillo estava o mar. Na praia arenosa, as ondas vinham desdobrar-se preguiçosamente, n’uma languidez ineffavel. Mas, ali perto, nos mattos, estalavam os galhos, causticados pelo sol. E muito ao longe, na linha do horizonte, alguns pontos sombrios, a custo avistados a olhos nus, pareciam nuvens vagabundas no espaço ou podiam ser barcas de pesca paralysadas á mingua de brisa.

No barracão, Deodato, semi nu, fumava, destrançando as redes. De vez em quando, assomava a cabeça á porta, a inspeccionar o ceu.

Com a grande pratica que possuia, adivinhava, pressentia calma quasi completa para toda a noite. Era isto de certo que lhe dava esse pequeno rictus á commissura dos labios e lhe encrespava levemente a retinta fronte. Maior trabalho seria o seu, pois far-se-ia necessario o remar por longo tempo. Emfim, nem tudo podia ser feito á mercê dos desejos humanos... E volvia á faina, de todo absôrto, fumando sempre.

Á boquinha da noite, appareceu um visitante inesperado á porta do Deodato:

— Póde-se entrar?

Era o padre Simplicio.

Sob o pretexto d’uma visita casual, pelo facto de passar ali proximo, ao regressar da roça do Xico Sette, o sacerdote penetrava com o intuito de verificar se o pescador iria aquella madrugada entregar-so ao costumado trabalho.

A occupação do Deodato mudou-lhe a supposição em certeza.

— Não faça isso, homem de Deus; olhe que a festa é da padroeira da cidade. Nossa Senhora não lhe perdoará a falta de respeito...

— Ella bem que s’importa co’a minha vida! — respondeu o preto, com um encolher de hombros que também poderia significar ao padre Simplicio o fastio que as suas observações lhe causavam.

— E se eu lhe pedisse que ficasse em casa, que viesse á minha missa, em vez de ir amanhã á pesca; se eu invocasse a nossa amizade, afim de ser attendido...

Teve Deodato um sorriso franco, dilatado, apresentando entre a dupla polpa dos labios os largos dentes alvos e disse com uma convicção profunda, com um tom sarcastico e decidido:

— Eu ia mesmo, sim, senhor!...

Não houve razões logicas, pedidos, ameaças de penas eternas que o demovessem. O negro era teimoso. Retirou-se o padre amuado, quasi colerico, benzendo-se repetidas vezes no meio da escuridão do caminho, tauxiada de pyrilampos loucos e murmurosa do longinquo coaxar de rãs, nos lameiros.

*

Ficando só, Deodato franziu a testa e, mordendo o labio, lançou contra o padre a reprovação tacita d’um gesto energico dos braços. O diabo do padréca que tratasse dos seus negocios. E esta!

Depois, comeu frugalmente, como de costume, um pouco de tainha moqueada e logo atirou-se á rede, vencido pelo somno.

Aquella alma de incredulo estava entorpecida inteiramente. Do contrario, teria tempo de reflectir nas observações do sacerdote e quiçá algum sonho o prevenisse da sorte que aguardava a sua irreligiosidade. Mas o infeliz dormiu como uma pedra até que os gallos das roças proximas soltaram no ar socegado os seus cantos da madrugada, despertando-o.

Levantou-se o negro e, accendendo o farol, saíu com direcção á praia.

Trilavam grilos, como n’este momento em que lhes falo. Na noite calma, rebrilhavam estrellas, espelhando na superficie lisa do mar as suas cabecinhas irrequietas. Nenhuma aragem movia os arbustos, as arvores do mattagal. Coaxavam sempre as rãs, emquanto os sapos cururús dialogavam com enthusiasmo. E, ao longe, dominando esses mil arruidos da noite, vibrava ainda o cantar dos gallos, com um não sei que de profundamente triste, n’uma plangencia de alma condemnada.

Instantes depois, a canôa do Deodato fazia-se ao largo. Não havia sôpro de brisa. A calmaria era completa. Elle, desde a tarde, esperava aquillo mesmo.

Mas, apezar da edade, tinha ainda bons musculos o velho pescador. Remava á direita, remava á esquerda e o seu barquinho a pouco e pouco se afastava, impávido, cortando a vaga indolente.

Á pôpa, como de alcatéa, velava o farol, ia deixando pela esteira da embarcação um rastro luminoso, que se prolongava desmesuradamente, em direcção á terra.

Além d’este, nenhum outro signal de vida poderia enxergar-se mais em toda aquella extensão de costa nem sobre a linha do horisonte, do lado do mar alto. Quem se atreveria a ir pescar na madrugada do dia festivo consagrado á padroeira de Belém?

D’isto mesmo deveria recordar-se o Deodato, quando se achava já a mais de duas milhas de distancia, porque, fazendo meia volta ao corpo, olhou para traz e teve no rosto renegrido uma suprema expressão de ironia sorridente.

— Tolos! — rosnou, volvendo logo a remar com furia, cravando a vista nas redes colhidas ao fundo da canôa.

*

Meia hora depois, algumas pequenas nuvens sombrias tinham-se erguido lá muito ao longe, escalavam o ceu, vinham galgando distancias, desdobravam-se assombrosamente. Fitou-as o pescador, desconfiado.

— Ué! — exclamou. Vento ou trovoada?

Apezar da incerteza, ergueu o mastro, preparou a diminuta vela de muruxy. E estava contente, porque já não precisaria de empregar maior esforço. O remo já começava a cansal-o, que diabo...

Mas convinha aproveitar o tempo. Levantou-se ainda, tomou uma das rêdes e, com um gesto largo e facil, fel-a descrever um circulo por sobre a cabeça, lançando-a depois á distancia que reputou conveniente.

Colhendo-a, sentiu-a leve sobremaneira e não tardou em verificar que a estréa fôra de todo improductiva. Não viéra um só peixe!

Era estranho, porque aquelle sitio já tinha fama de rico em cardumes.

Longinqua fulguração de relampago fel-o erguer o olhar. As nuvens tinham subido ainda mais, haviam-se estendido em quasi dois terços do espaço, pareciam agora as pesadas colgaduras de uma camara ardente. Segundo relampago, muito distante, scintilou então. E uma pequena aragem soprou fresca do lado do poente.

Decididamente, ia cair a trovoada. Não podia Deodato perder um segundo: içou a véla, manobrou no sentido de aproveitar o vento. E assim afastou-se ainda mais de terra. Iria experimentar o mar a meia milha d’ali.

Quando, depois de lançar a rêde em outro sitio, se dispunha a puxal-a, pareceu-lhe estar extremamente pesada. Um sorriso de alegria entreabriu-lhe os grossos labios. E então? Elle bem sabia que aquillo era infallivel!

Mas imaginem o seu assombro quando, depois de longos esforços, conseguiu trazer á flôr da agua a rêde que julgava repleta e de repente sentiu-a tornar-se completamente leve, encontrando-a logo de todo vasia, sem uma unica pescada!

Deodato não era homem para impressionar-se, porém não deixou de achar bastante extranho similhante facto.

N’esse momento, o espaço illuminou-se com um grande relampago, seguido do estrugir medonho do trovão.

O vento augmentara, passava agora sibilando nas cordas do pequeno mastro, enfunando a véla com raiva, arrastando a canôa n’uma furia, n’uma vertigem, á luz dos relampagos successivos, no meio de coriscos que esfusiavam caprichosos por todos os lados.

Comprehendeu o negro que a trovoada ia ter maiores proporções do que as que lhe attribuira ao principio. Nada mais poderia fazer n’essa noite. Aquillo era praga do Simplicio, pensava. Bem descontente, resolveu regressar. Quiz passar o panno para bombordo, porém não teve a precisa ligeireza e o vento, já de todo impetuoso, quasi invencivel, arrancou-lhe das mãos o chicote da espia e n’um momento arrebatou a vela em farrapos, n’um redemoinho sibilante pelo espaço.

Só lhe restava o alvitre da resignação. E elle, habituado ás inclemencias, affeito a mil e uma tempestades, sentou-se sereno á pôpa, depois de abaixar o mastro: resolvera esperar o desenlace da crise.

O que presenceou então foi horrivel. Choviam raios á direita, á esquerda, por toda a parte. O ceu estava negro, agitado de ribombos infernaes, a cada minuto illuminado tetricamente, deixando a descoberto as grossas massas das nuvens fugidías.

E o preto, longe de assustar-se, ali estava na barca, de braços cruzados, sorrindo com cynismo. O mar tinha um aspecto que se casava com a attitude hostil do espaço. Por toda a parte erguiam-se compactas collinas liquidas, escancaravam-se horriveis, hiantes valles phosphorescentes. Não chovia ainda, mas o vento, que zunia aos ouvidos do negro incredulo, cuspia sobre elle milhares de gottas salitrosas tiradas ás ondas freneticas, trementes.

De subito, a amplidão toda se convulsionou, vibrou n’um estrepito pavoroso, repercutindo um som innominado, jamais percebido pelo Deodato em situações identicas. Avermelhado clarão illuminou tudo, revelou aos olhos do negro toda a magestade d’aquella scena para a pintura da qual, meus amigos, não tenho senão palavras inexpressivas e phrases sem colorido.

Ficou estarrecido o pescador. Sentira que a fragil embarcação era com vigor sacudida! Mas a força que assim operava não vinha decerto do embate das ondas. E a canôa tremia toda, rangia, vibrava incessantemente, como se um braço de Adamastor a agitasse n’uns empuxões cyclopicos e interminaveis.

— Que diabo é is...

Não pôde continuar. Deante d’elle, rodeado d’uma auréola de chammas, tresandando a enxofre, emergia Satanaz! Levantou-se indizivel alarido: os raios duplicaram o faiscar, ribombos estalaram mais cavernosos. Por seu turno, o vento engrossou ainda mais as vagas, que chegaram quasi a cobrir o barquinho.

Porém só durou um segundo o estupôr de Deodato. Qualquer outro homem succumbiria de medo. Elle, entretanto, como envergonhado d’esse instante de susto que tivéra ha pouco, arrastou-se com esforço, ergueu a meio o corpo ensopado e transido. Depois, levantando o olhar e o punho para o ceu, proferiu, ou antes bramiu feroz imprecação satanica.

O diabo, — porque era elle em pessoa que assim surgira do mar, — empunhara uma espia e, correndo, cabriolando por cima das ondas loucas, entrou a puxar o batel para o lado de terra.

Aquella corrida frenetica durou um momento. D’ali a pouco, barco e tripolante desfaziam-se de encontro ás pedras d’uma enseada, perto da capellinha do logar. Viram os meus amigos a acção da justiça de Deus?

Calou-se o tenente coronel Fernandes. Estava offegante, com os labios sêccos, o olhar animado.

Mas resoou no aposento uma gargalhada stentorica, que despertou o molequito no cólo do avô.

Era este proprio, o Felix Jacaré, quem zombara d’aquelle modo. Logo, com entonação escarninha, ponderou:

— Não creiam n’essa balela de seu c’roné. O tar Deodato não foi pescá, ficou na rêde muito socegado e despois sonhô essas coisa, ’hi ’sta. Seu padre Simpricio, antão, arranjô o resto...