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Entre as Nympheas/O Naufragio do Purus

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O naufragio do “Purús”
 

O Naufragio do Purus


 

A H. Inglez de Souza

I

Este é o sitio em que, ha vinte annos quasi, afundou-se o Purús, arrastando para o leito do rio algumas dezenas de cadaveres colhidos de surpreza.

O Amazonas aqui, como conservando ainda a triste memoria do luctulento successo, rola silencioso as suas aguas, cobre-se eternamente com o intenso crepe, accentuado e mesto, do vasto rio Negro.

Têm as margens a apparencia de um recinto de funeral: socegadas e desertas, monotonisam o quadro com a ininterrupta ostentação das suas ramalhudas verduras densíssimas.

Nenhum gorgeio de passaro percebo na larga mudez circumdante.

No alto, o ceu, apinhado de nuvens escuras, encobre-me aos olhos a risonha alegria do seu puríssimo azul, adoravel como as pupillas d’uma imagemzinha da Virgem, que minha Mae, em pequenino, ensinou-me a reverenciar com o contemplativo respeito das creanças absôrtas!

Passamos n’este mesmo instante sobre o logar onde atufou-se a elegante embarcação aventureira.

Um pensamento de saudade assalta-me o espirito, agora que deslisei rápido por cima do líquido sapulchro de tantos infelizes.

Relembro, com a forçosa evocação do meu passado, as confusas recordações da primeira edade e reproduzo na mente, consoante ás narrações da época, o pasmoso entrécho do hórrido espectaculo.

Vejo pessôas de todos os sexos e edades, em meio á densa escuridão da noite, bramindo apavorados gritos, impetrando o auxilio do ceu impassivel, amaldiçoando o momento final com o tôrvo desespéro das grandes afflições.

A bracejar contra a correnteza, lobrigo um ou outro naufrago n’aquelle pégo, quasi tão vasto como o do mantuano cantor. Uns, redobrando de esforços, conseguirão alcançar a margem anhelada; a mór parte, porém, certo fraquejará impotente na violencia das aguas e rolará inanimada aos profundos antros dos caimões!

N’um camarote, vencida, dominada por tredo somno, uma joven mulher angelical, esposa extremecida e extremosíssima, é surprehendida pelas aguas em sua descuidosa seminudez inconsciente e logo suffocada sem haver tempo de reconhecer o perigo por que passa com os seus, — com os parentes affectuosos e com o infeliz marido, o commandante austero, de quem separa-a, sem transigencias, a comprehensão do cumprimento do dever.

E ali morre, com o pobre coração retalhado de angustias e amaríssimas saudades, uma valente mulher de temperamento e actividade virís, guia e ama de muitos d’aquelles naufragos. É a heroica exploradora d’uma parte do rio Madeira, a veneranda mãe d’um punhado de homens honrados e de honestíssimas mulheres, — a idolatrada mãe d’aquella excelsa creatura que deu-me luz aos olhos e piedosos sentimentos ao coração!

II

Comprehendo agora perfeitamente a dôr que rasgou-te os puros seios d’alma, querida Mãe, quando correram a referir-te o hórrido successo.

Creança quasi irresponsavel, eu não tinha a percepção completa d’aquelles affligidíssimos desespêros em que te lançaste, com os olhos amarados de lágrymas adamantinas.

Entrei a brincar-te com os longos cabellos pretos, minha adoravel amiga, e um beijo tão sincero como a tua dôr deposeram-te na fronte ensombreada meus labios deslaçados em simples phrases sem valor.

Hoje, porém, ó Mãe, avalío com justeza a afflicção que em ti causou tão deshumano flagicio da sorte inclemente. Sondo, linha por linha, todos os arcanos do teu seio, ausculto-lhe as precipitadas palpitações soluçantes e lamentosas.

Choravas, inconsolavel e dolentíssima, porque deixaras de ter mãe.

Sinto conhecer-te a intensidade das penas, porque também perdi-te para sempre e só minha alma pode saber a força de toda a violenta dôr que, ha seis annos, confrange-a impiedosa, minuto a minuto, persistentemente, tantas são as vezes que de ti me lembro, inolvidavel mulher que foste a guia da minha infancia e a amiga insubstituivel da minha adolescencia!

 

Rio Amazonas — Rio Negro.