Epístola familiar

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São Paulo, 11 de Dezembro de 1866.

Meu querido Gedeão
Das Tramoyas Cansanção.



Ha muito, presado amigo,
Dos meus males doce abrigo,
Pretendia eu novas dar-te
D’esta Patria do Deus Marte;
Porém sempre perseguido,
Pelo fado fementido,
Yivo tão atropelado,
De trabalho estenuado,
Que nem sei como mastigo
As torradinhas de trigo,
Com que dou conforto ao peito

Já das magoas tao desfeito.
Bem sei eu, que a velha historia,
Por querer turbar a gloria
Aos preclaros descendentes *
Dos heroes armipotentes
—Cubas, Pires e Buenos—,
Que venceram Turcos, Brenos,
Chinos, Persas, Anglicanos,
Fanfarroens heroes hespanos
—Sancho Pansa e Dom Quixote—,
A bodoque e chifarote,
Quer, por força, que o Deus Marte
Fosse nado em outra parte.
Eu, porém, protesto e juro,
Do que digo bem seguro,
Que a extrangeira historia mente;
Porque Marte é desta gente,
Inda mais, dizer-te quero,
Contra a voz do mundo fero,
Que as victorias d’esta terra
Quer lançar do lodo á berra,
Que São Jorge, o gran guerreiro,
Aqui viu a luz primeiro;
Que São Pedro, o pescador,
Aqui foi agricultor;
E São Paulo; o cabalista,
Pela fama, foi Paulista.

Isto dito, á pressa embhora,
Tractar vou de mim aghora.

Sabes tu, bom Gedeão,
Como vive o cidadão,
Que, mettido entre fidalgos,
Como lebre ao pé de galgos,
Anda sempre amedrontado,
Que lhe-vão, sobre o costado,
Dar de rijo, com pujança,

Por amor da temperança;
Pois o pobre, por mania,
Vive sempre em gritaria
Contra os fóros da nobreza,
Que, arrogante, fera e teza,
Yai malhando na gentalha,
Que, pisada, rosna e ralha...

De saude nao vou bem;
De dinheiro... nem vintem;
De namoros... menos mal;
Pois que, sendo jovial,
Não receyo ser ferido
Pela setta de Cupido.
E, demais, meu Gedeão,
N’esta era do Balão,
Deve o homem namorar,
Que é negocio bem casar.

Quem pretende hury formosa,
Que, em belleza, excede á rosa,
Na candura á neve algente,
Ou do sol á luz nitente,
Anjo excelso de primores,
Mas sem dote... sem valores...
Será tudo, até beocio,
Nunca homem de negocio.

Tartaruga com dinheiro !...
Isso é vaso de outro cheiro;
Que bem vale o sacrifício,
Que redunda em beneficio;
Nescia ou tola, malcriada,
Ha de ser idolatrada;
Que, á hum noivo calculista,
Nada ha que dê na vista.
O desfructe é distração,
A sandice reflexão,

A feiura sympathia,
Seja torta, velha ou tia;
Pois lá diz o velho adagio,
Dos tartufos apanagio,
—Que o dinheiro tudo encobre
E defeito é só ser pobre—.

Por seu lado, as taes matronas,
Apesar de velharronas,
Soccorridas do postiço,
Que, de alcaides é feitiço,
Fazem dar volta ao miolo
Do sagaz tartufo ou tolo.

Vê-se aqui cada magriça,
Com formato de linguiça,
Repimpada atroz perúa,
Roçagante pela rua,
Embrulhada em fino raz,
Preza ao braço de um rapaz,
Tam himpante, tam pimpona,
Que parece huma Amazona,
Ou singrante Náo de Aveiro
Rebocada por Saveiro!
Que rotunda matronaça,
Para quem parece escaça
Toda a terra Americana,
Desde o Prata até Goyana!

Sem postiço a magricela
Dá seus ares de gazela,
De raposa ou velha gata;
Mas, vestida, oh, que Fragata!
Tem postigos, portinholas,
Suspensorios, sugigolas,
Ferros, mastros, cordoalhas,
Encrespadas maravalhas,

Bordas falsas, cabrestantes,
Soifdas, boyas e oitantes,
Bujarronas, vela-grande,
Em que o vento audaz se-espande;
Chaminé, carvão e gaz,
Breu, azeite e agua-raz;
Por botinas duas lanchas ;
Os dois pés servem de pranchas;
Lenha, estopa, o alcatrão,
Tudo embaixo do Balão !

A garbosa rapázia
Não se-deixa em calmaria:
Cabelleiras, gabinardos,
Chapéos pretos, niveos, pardos,
Pince-nez de toda a casta,
Parvoice muito vasta,
Calça larga, á porcalhota,
Gravatinhas de janota,
Tudo tem, com abastança
Quem se-trata com chibança.

Viva a moda, meu amigo,
Morra tudo que é antigo !

Deixa a roça, Gedeão,
Basta já de ser poltrão,
Anda: vem para a cidade,
Traz a tua F’licidade,
A Marica, a Josephina,
Bella rosa purpurina.
Quero vel-as estufadas,
De tundás com almofadas,
Rochunchudas e galantes,
Quaes repolhos ambulantes.
Segue a moda e o progresso;
Volta as costas ao regresso.

E' a moda o salvaterio
Dos que a-buscam com mistério
Da velhota inconsolavel,
Do janota desfrutavel,
Que campando de galante
Mostra a todos que é pedante ;
Do pansudo sem juizo,
Que com ella cobra o sizo.
Té no proprio Pio nono,
A moda ferrou tal mono,
Que de humilde franciscano
O-tornou republicano !....
E mais tarde, por magana,
Revirou-o com tal gana
Que dos Reis, irmão querido
Fez o Papa fementido.

Modas ha com tal fartura,
Que parece já loucura;
Chapelhinhos á franceza,
Babadinhos á turqueza,
Largas mangas à romana,
Penteados á sultana,
Capotinhos, sedas frouchas,
Franjas, pentes, rendas, trôchas;
Lindas flores indianas,
Molas d’aço, barbatanas,
Para erguer seios cahidos
E fazer guapos vestidos.

N’estes tempos, meu querido,
E’ que vale ser marido.
Vê lá tu, que és hum mestraço,
Com teus risos de madraço,
Se não é hum grande achado
Este meu enunciado.
E si pescas da sciencia,
Nota bem a consequencia:

Sahe o marido, coitado,
Pela esposa fulminado,
Vai á loja da Madama,
Que é modista d’alta fama,
Compra leques, luvas, cheiros,
Traz comsigo seis caixeiros,
Carregados de chocalhos,
Que não valem cascas d’alhos,
E, de amores transportado,
Sem se-ver pobre e pellado,
Chama a Eva portentosa,
Que vem toda vaporosa,
De cabello esparralhado,
Vestido longo arrastado,
Bocejando com desdem,
Como quem mil contos tem.
Ergue os olhos molemente,
Encara o pobre demente,
E, com ar de gran Sultana,
Brada ao tal José-Banana:
“Inda aqui nao vejo tudo!
“Que é da capa de velludo ?
“0 vestido de chalim?
“0 toucador de marfim?
“O corpinho decotado?
“O mantellete bordado.
“Pois hei de ir ao Cantante
“Sem pulseira de brilhante?
“Ande. Vá buscar o resto,
“Que, se nao, já lhe protesto,
“(Isto diz rufando as patas)
“De o-mandar plantar batatas !..."

E que tal, meu Gedeão,
Te-parece este sermão ?

Vou casar-me, quanto antes,
Para ter d’estes instantes.

Depois d’isto a consequencia,
Que nos-mata a paciencia ;
Muito filho malcriado,
Muito cueiro perfumado,
Choros, berros, gritaria ;
Vem depois estripolia,
As escholas, os collegios,
E mais outros privilegios,
Que o papae ha de pagar,
Sem tugir, nem resmungar.

Quando quer a negra sorte,
Hum capricho da consorte,
Que, por artes do demonio,
Ou encantos de Trophonio,
Torce a orelha e poem cabana
Ao marido, que é pastrana;
E com labia e com geitinho
D'elle faz hum coitadinho.....
 
De outras cousas, Gedeão,
Inda cá tenho porção.

De politica não fallo,
Pois que é sino sem badalo,
Em que vae qualquer tareio
Bepicar com seu martello:
E’ negocio de velhacos,
Que só serve para os Cacos.

Do Papado nada digo,
Vivo alheio, charo amigo,
A' batina e á corôa,
N’isto sempre andei atôa.

Faço ponto, Gedeão;
Até outra occasião.

Não te-zangues da maçada,
Que já vae mui prolongada;
E dispoe, si assim te apraz,
Do teu velho

Barrabraz.

(Publicada no Cabriâo de 16 de Dezembro de 1866).