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Esaú e Jacó/LIX

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Tudo se explicou à noite, em casa da família Santos. O ex-presidente de província confessou as esperanças de uma investidura nova; a esposa afirmou a eminência do ato. Daí a publicidade da notícia, que pouco antes D. Cláudia só dizia em segredo. Já não havia segredos que calar.

Paulo soube então tudo, e Pedro, que conhecia alguns preliminares, acabou sabendo o resto. Ambos naturalmente sentiram a separação próxima. A dor os fez amigos por instantes; é uma das vantagens dessa grande e nobre sensação. Já me não lembra quem afirmava, ao contrário, que um ódio comum é o que mais liga duas pessoas. Creio que sim, mas não descreio do meu postulado, por esta razão que uma coisa não tolhe a outra, e ambas podem ser verdadeiras.

Demais, a dor não era ainda o desespero. Havia até uma consolação para os dois gêmeos; é que a moça ficaria longe de ambos. Nenhum deles teria o gozo exclusivo ao pé da porta. Não há mal que não traga um pouco de bem, e por isso é que o mal é útil, muita vez indispensável, alguma vez delicioso. Os dois quiseram falar à amiguinha, em particular, para sondá-la acerca daquela separação, já agora certa, mas nenhum conseguiu este desejo. Vigiavam-se, isso sim. Quando lhe falavam, era sempre juntos, e de coisas familiares e ordinárias. O gesto de Flora não traduzia o estado da alma; este podia ser lépido, melancólico, ou indiferente, não vinha cá fora. Em verdade, ela falava pouco. Os olhos também não diziam muito. Mais de uma vez, Pedro deu com ela fitando Paulo, e gemeu com a preferência, mas também ele era preferido depois, e achava compensação; Paulo então é que rangia os dentes, figuradamente. Natividade, toda entregue à sua recepção, que era a última do ano, não acompanhou de perto as agitações morais daquele trio. Quando deu por elas, chegou a senti-las também.

Pouco a pouco, a gente se foi dispersando. Não era muita, e dominava a nota íntima. Quando a maioria saiu, ficou só a porção mais íntima, três ou quatro homens a um canto da sala, falando e rindo de ditos e anedotas. Não conversavam de política, e aliás não faltaria matéria. As moças, pela segunda ou terceira vez, trocavam as impressões do grande baile recente. Também falavam de músicas e teatros, das festas próximas de Petrópolis, da gente que ia naquele ano, e da que só iria em janeiro. Natividade dividia-se com todos, até que, podendo ficar alguns instantes com Aires, confiara-lhe o seu receio acerca do amor dos filhos, e ao mesmo tempo o prazer que lhe trazia a esperança de uma longa separação de Flora. O conselheiro não desdizia do receio, nem da esperança.

— É uma esperança que o Batista seja nomeado e leve a filha daqui, disse ela.

— Certamente, mas...

— Mas quê?

— Certamente a levará, mas a senhora pode não conhecer bem aquela menina.

— Penso que é boa.

— Também eu penso assim. A bondade, porém, não tem nada com o resto da pessoa. Flora é, como já lhe disse há tempos, uma inexplicável. Agora é tarde para lhe expor os fundamentos da minha impressão; depois lhe direi. Note que gosto muito dela; acho-lhe um sabor particular naquele contraste de uma pessoa assim, tão humana e tão fora do mundo, tão etérea e tão ambiciosa, ao mesmo tempo, de uma ambição recôndita... Vá perdoando estas palavras mal embrulhadas, e até amanhã, concluiu ele, estendendo-lhe a mão. Amanhã virei explicá-las.

— Explique-as agora, enquanto os outros parecem rir de algum dito engraçado.

Efetivamente, os homens riam de algum dito ou trocadilho; Aires quis falar, mas reteve a língua, e desculpou-se. A explicação era longa e difícil, e não era urgente, disse ele.

— Eu mesmo não sei se me entendo, baronesa, nem se penso a verdade; pode ser. Em todo caso, minha boa amiga, até amanhã ou até Petrópolis. Quando espera subir?

— Lá para o fim do ano.

— Então ainda nos veremos algumas vezes.

— Sim, e, se me não vir a mim, quero que veja os meus rapazes, que os receba e estime. Eles o têm em grande conta; não lhe fazem senão justiça. Pedro acha que o senhor é o espírito mais fino, e Paulo o mais rijo da nossa Terra...

— Veja como a senhora os educa, ensinando-lhes a pensar errado, disse Aires sorrindo e fazendo um gesto de agradecimento. Eu rijo?

— O mais rijo e o mais fino.

Os últimos habituados da casa vieram dar boa noite à dona. Dez minutos depois, Aires despedia-se do casal Santos.

A noite era clara e tranqüila. Aires recompôs uma parte do serão para escrevê-la no Memorial. Poucas linhas, mas interessantes, nas quais Flora era a principal figura:

“Que o Diabo a entenda, se puder; eu, que sou menos que ele, não acerto de a entender nunca. Ontem parecia querer a um, hoje quis ao outro; pouco antes das despedidas, queria a ambos. Encontrei outrora desses sentimentos alternos e simultâneos; eu mesmo fui uma e outra coisa, e sempre me entendi a mim. Mas aquela menina e moça... A condição dos gêmeos explicará esta inclinação dupla; pode ser também que alguma qualidade falte a um que sobre a outro, e vice-versa, e ela, pelo gosto de ambas, não acaba de escolher de vez. É fantástico, sei; menos fantástico é se eles, destinados à inimizade, acharem nesta mesma criatura um campo estreito de ódio, mas isto os explicaria a eles, não a ela... Seja o que for, a nossa organização política é útil; a presidência de província, arredando Flora daqui, por algum tempo, tira esta moça da situação em que se acha, como a asna de Buridan. Quando voltar, a água estará bebida e a cevada comida. Um decreto ajudará a natureza”.

Isto feito, Aires meteu-se na cama, rezou uma ode do seu Horácio e fechou os olhos. Nem por isso dormiu. Tentou então uma página do seu Cervantes, outra do seu Erasmo, fechou novamente os olhos, até que dormiu. Pouco foi; às cinco horas e quarenta minutos estava de pé. Em novembro, sabes que é dia.