Til/I/XXVI: diferenças entre revisões
< Til
Conteúdo apagado Conteúdo adicionado
Importação automática de artigos |
|||
Linha 1: | Linha 1: | ||
#Redirecionamento [[Til/II/XI]] |
|||
{{navegar |
|||
|obra=[[Til]] |
|||
|autor=José de Alencar |
|||
|seção=Primeiro Volume, Capítulo XXVI: O abecê |
|||
|anterior=[[Til/I/XXV|Primeiro Volume: Capítulo XXV]] |
|||
|posterior=[[Til/I/XXVII|Primeiro Volume: Capítulo XXVII]] |
|||
|notas= |
|||
}} |
|||
Em uma das escapulas que fez o Brás da escola, sucedeu encontrá-lo Berta, acocorado, a soprar as palmas inchadas e rosnando contra o Domingão, a quem ameaçava de longe com murros ao vento. |
|||
Consolou-o ela e o levou consigo até a casa para deitar-lhe panos de aguardente nas mãos e distraí-lo da exasperação em que o via. |
|||
De todas as pessoas que Brás encontrara nas Palmas, fora Berta a única de quem não o afastara o seu natural bravio, nem a aversão instintiva que lhe inspirava toda criatura humana com quem se achasse em contato. A gratidão, que logo mostrara pelo modo compassivo e meigo da menina, redobrou com aquele incidente. |
|||
Quis Berta, para livrar o pobre rapaz dos bolos e repelões do mestre, ensinar-lhe todas as manhãs a lição; e nesse desígnio preparou-lhe uma carta. Continuaram as cenas da escola; e repetiram-se as visagens e gaifonas à vista do til; porém desta vez em maior escala, pela liberdade em que estava o parvalhão do rapaz. No seu afã de imitar o sinal, que tanto lhe dera no goto, virava cambalhotas e corcoveava pela grama. |
|||
Trabalhava a enjeitadinha com toda a meiguice para aplicar às letras o boto engenho daquele órfão, ainda mais que ela desamparado da fortuna. Vão esforço, em que, não obstante, porfiava com uma perseverança incrível naqueles tenros anos e em tão humilde condição. |
|||
De seu lado também não descoroçoava o Domingão de meter o abecê nos cascos do Brás, ainda que para isso fosse necessário abri-los de meio a meio: |
|||
— Burro! gritava ele com uma voz de trompa, esgrimindo a férula. Ou te racho o quengo com este bodoque, ou pões em achas o guarantã!... |
|||
Afinal teve Berta uma inspiração. Desenganada de obter que o menino pronunciasse ao menos o a, deixou-o lançar-se aos costumados esgares e gambitos. Observando então o pobre sandeu com um dó profundo, pensava ela que Deus, em sua infinita misericórdia, concedia a essa alma tão atribulada e sempre confrangida por terrível angústia, um breve instante de alegria. |
|||
Nisso o Brás pulando como um boneco de engonço, passava a ponta do dedo mui de leve pelas sobrancelhas negras de Berta, por seus lábios finos, pela conchinha mimosa da orelha; e, apontando alternadamente para o til na carta do abecê, repinicava as risadas e os corcovos. |
|||
Iluminou-se de súbito o coração de Berta. A impressão estranhas que no idiota produzira aquele insignificante objeto, e cuja causa escapava à sua compreensão, não era a trepidação de um raio, tênue embora, de inteligência, que filtrava daquele cérebro denso como o frouxo bruxuleio de uma estrela através do nevoeiro? |
|||
A camada profunda que soterrava o espírito do Brás, tinha um interstício por onde coava-se alguma chispa, que rareava as trevas carregadas dessa noite sem manhã. E por singular coincidência o primeiro balbucio da inteligência bôta se dirigia a ela, como o primeiro vagido da criancinha no berço chama pela mãe. |
|||
Ninguém sabe o que passou então no íntimo de Berta, que tinha suas venetas, e de quem se referiam casos que a gente velha do lugar, e especialmente as pretas da fazenda, atribuíam a uma influência misteriosa e sobrenatural. |
|||
Associando-se a lembrança original do idiota, disse-lhe a menina, ajudando a palavra com mímica expressiva e apontando para a carta. |
|||
— Eu sou til! |
|||
Esteve Brás um instante pasmo e boquiaberto, sem compreender, apesar da ânsia com que afinal bateu palmas de contente e deitou a pular, regougando a sua parva risada. |
|||
— Eh!... eh!... eh!... Berta, umh!... Berta, umh!... |
|||
Daí em diante aquele sinal, que para o idiota era símbolo de graça, da gentileza e do prazer, tornou-se a imagem de Berta, e não se cansava Brás de o repetir, não por palavras, mas por acenos com os meneios mais extravagantes. |
|||
Dias depois, chamando-a ele pelo nome, a menina respondeu-lhe: |
|||
— Não me chamo mais Berta; meu nome agora é Til. |
|||
— Hanh!... fez o idiota com essa interjeição ou bocejo, que na sua bruta linguagem exprimia uma interrogação embasbacada. |
|||
— Til!... tornou Berta com a pronúncia clara e vibrante. |
|||
Forcejou o infeliz para articular o monossílabo; mas só a custo, e ajudado por Berta, o conseguiu. Causou-lhe isso tão intenso prazer, que a todo o instante proferia o nome, e amiudando-o trinava com ele, a modo dos pássaros quando em seu crebro gorjeio repicam a mesma nota. |
|||
Assim identificava com a carta pela estranha afinidade que inventara a estultice do menino, Berta recobrou a esperança que já a ia abandonando. |
|||
Um dia, Brás com violento esforço e após funda concentração, arrancou dos beiços grossos e flácidos estas palavras truncadas: |
|||
— Brás... bem Til... muito... muito!... |
|||
Sorriu-se Berta, e agradeceu-lhe com um carinho. |
|||
— E Til?... interrogou o idiota com ar ansiado. |
|||
— Til quer bem... |
|||
Com um repente, mostrou-lhe Berta a carta, pondo o dedo sobre o a . |
|||
— A este!... |
|||
— Pela primeira vez reparou o rapaz na forma da letra, que se lhe gravou na memória. |
|||
— Hanh?... tartamudeou ele ofegante. |
|||
— Afonso! |
|||
Arreganhou-se a estólida cara do idiota na terrível catadura de um sabujo de furor. Arrebatando o abecedário da mão de Berta, despedaçou-o para arrancar o a, que trincou nos dentes com sanha. |
|||
À princípio atemorizou-se a menina; mas logo, revoltando semelhante fraqueza as energias de sua alma, tranqüilamente e com ar de indiferença observou aquela cólera brutal, que atingiu a maior exasperação. |
|||
Como se esperasse justamente esse momento culminante do acesso, chamou Berta o idiota para junto de si com um aceno; e bastou-lhe pousar a mãozinha afilada sobre o ombro para aplacar-lhe a exacerbação. |
|||
— Til gosta deste! |
|||
Estas palavras, disse-as a menina mostrando com a unha rosada o b e repassando-as de uma voz tão doce, que derramou na alma ulcerada do mísero um ignoto consolo. Voltou ele para Berta os olhos baços, que iluminaram-se com um reflexo vítreo. |
|||
Compreendeu Berta a muda interrogação, e a satisfez. |
|||
— É Brás! |
|||
— Til?... balbuciou a voz trôpega, enquanto o dedo convulso apontava a letra. |
|||
— Sim! disse Berta. |
|||
Caiu Brás em um novo acesso, porém este de alegria, que chegava ao delírio. Atirando-se ao chão, estrebuchou de prazer, soltando gritos descompassados e risos sibilantes, que mais pareciam guinchos de um animal bravio. |
|||
Assim em torno dela, que era o til, Berta foi engenhosamente agrupando todas as letras do alfabeto, com os nomes das pessoas e objetos que a cercavam. Pondo em jogo as broncas paixões do idiota, e colhendo os rudes germes de idéia que se formavam em seu bestunto, obteve ela afinal transformar a carta do abecê em uma família, em um mundo, para a existência enfezada dessa mísera criatura. |
|||
Ao cabo de um mês, conhecia Brás todo o abecedário. Que inauditos esforços de paciência, que sublimes intuições não foram necessárias para vencer esse impossível! |
|||
Só Berta o poderia conseguir. A fascinação que exercia sobre o idiota era uma sorte de encanto e magia. Sua vontade movia aquele corpo, como se fosse o espírito que o animava. Brás sentia e pensava unicamente pela alma dela, que lhe transmitia as impressões no olhar carinhoso, na voz suave, no sorriso fagueiro. |
|||
Dir-se-ia que se tinha operado a misteriosa transfusão dalma do anjo na grosseira bestialidade do mostrengo. Quando nos acessos epilépticos, estrebuchando o infeliz em medonhas contorções, não bastavam as forças de três homens possantes para sopear os ímpetos formidáveis, nem as mais enérgicas aplicações para superar a crise violenta, o simples toque dos dedos de Berta ou sua fala maviosa, subjugava aquele furor e aplacava logo a horrível convulsão. |
|||
[[Categoria:Til|Primeiro Volume, Capítulo 26]] |
Edição atual desde as 18h48min de 24 de maio de 2012
Redireciona para: