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Exposição Feita Perante os Membros da Comissão Nacional Portugueza do congresso Internacional dos Orientalistas

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Associação Promotora dos Estudos Orientaes e Glotticos

EXPOSIÇÃO

FEITA PERANTE OS MEMBROS
DA
COMMISÃO NACIONAL PORTUGUEZA
DO CONGRESSO
INTERNACIONAL DOS ORIENTALISTAS
 
CONVOCADOS PARA CONSTITUIREM UMA ASSOCIAÇÃO PROMOTORA
DOS ESTUDOS ORIENTAES E GLOTTICOS EM PORTUGAL
 
POR
 
G. DE VASCONCELLOS ABREU
 
BACH. EM MATH., ETC.
 

Laboremus

 

 
LISBOA
TYPOGRAPHIA LUSO-BRITANNICA DE W. T. WOOD
28—Rua direita das Janellas Verdes—28
1874

DISCURSO

 

Meus Senhores

 

Um dos acontecimentos mais notáveis d’este anno de 1873 é o que se deu em Paris em setembro: a realisação do primeiro «Congresso internacional de Orientalistas.»

A iniciativa foi individual e por isso mais arrojada e honrosa, e da maior gloria o resultado brilhante que a coroou.

O sr. Léon de Rosny, com a actividade do seu caracter trabalhador, com a energia dos trinta e seis annos e inspirado por um talento poderoso, respeitado pela sua sciencia renonhecida, concebeu e levou a cabo tão grande obra.

Coadjuvaram-no homens de boa vontade, artistas, sabios, todos unidos em egual empenho sem outro interesse que não fosse o da sciencia e o da arte que serviam. Mencionarei , sem escolha, alguns nomes: os srs. Schoebel, Madier de Montjau, Le Vallois, Halévy, Foucaux; e em especial o sr. Cernuschi, que muito concorreu para a parte que dizia respeito á arte e industria japoneza e chineza, pondo á disposição do sr. Léon de Rosny uma preciosissima collecção de bronzes, d’entre os quaes se notou a estatua colossal de Buddha, obra prima da estatuaria japoneza, e um vaso dos sacrificios dos reis Tchangues (dynastia extincta 2000 annos antes de Christo), devido á quasi prehistorica habilidade industrial e artistica da raça chineza.

Os trabalhos do congresso começaram a 1 de setembro e foram encerrados a 12, no amphitheatro da Sorbonna. Durante estes 12 dias houve vinte e seis sessões (!) todas ferteis em resultados d’entre os quaes é por certo, pelo seu alcance moral, o primeiro, o acto de justiça por onde o Congresso iniciou os seus trabalhos, chamando os fundidores, os compositores — trabalhadores infatigaveis e obscuros sem os quaes não haveria sciencia e portanto não haveria industria, não haveria civilisação — chamando d’esses homens que, mortaes, têem tornado eternas as producções dos genios e assegurado a immortalidade ás obras de seus irmãos os trabalhadores da sciencia, chamando aquelles que tão dignamente têem concorrido para o desenvolvimento do Orientalismo. chamando-os e dando-lhes medalhas e diplomas e fazendo-os victoriar pelos espectadores, que, unanimes e commovidos, applaudiam a reparação devida.

O fim dos congressos scientificos é um fim prático: Não deixar isolados e por assim dizer desconhecidos e infecundos os trabalhos, os descobrimentos do mais humilde investigador; trazer á téla da discussão os modos de ver de cada um dos grandes e pequenos trabalhadores para eliminar o inutil e assentar o verdadeiro; propôr novos problemas, indicar novos meios de investigação, expôr novos pontos de vista e caminhar para a unidade de pensamento deixando a mais lata independencia á ideia de cada um dos investigadores.

Neste primeiro congresso ácercado Orientalismo lançaram-se as bases dos congressos futuros cuja realisação, podemos assegurar, ha de ser brilhante e poderosamente civilisadora.

Seria para desejar, que os proximamente immediatos se reunissem nos paizes (não direi de raça latina, que não sei qual é o objecto que exprimem estas duas palavras), nos paizes de lingua latina; não por orgulho, nem por despeito desleal e ingrato para com a Alemanha sobre tudo, á qual tanto deve a civilisação em geral e o Orientalismo em especial; mas para nos incitarmos, para entrarmos de todo no logar que nos compete nesta communhão intellectual, já pelo nosso passado, já pelas nossas aptidões e, principalmente, para nos unirmos mais estreitadamente e darmos animo e coragem á Italia para proseguir nos seus trabalhos tão honrosamente encetados, para enraizarmos na Espanha esta arvore de fructos de paz, para acordarmos em Portugal a vida que lhe foge na corrente de indifferentismo que o inunda e para que todos, unidos á França, a acompanhassemos reconhecidos pela sua iniciativa audaz, pelos seus esforços perseverantes e pela luz que ella, mais que nenhuma outra nação, sabe espalhar generalisando as grandes ideias, propagando a sciencia.

Por esta fórma os immensos trabalhos que se devem á Alemanha, e os valiosissimos que se devem á França, sobre o Orientalismo, tornar-se-iam conhecidos mais rapidamente, o seu fructo seria melhor aproveitado, o seu exemplo mais depressa e mais proficuamente seguido.

Era conveniente, pois, que o Congresso de 1874 se reunisse em Roma, que o de 1875 se reunisse em Madrid, e que o de 1876 se reunisse em Lisboa. Estas ideias, em parte, não foram estranhas ao Congresso; primeiro que tudo, porém, julgou-se preciso firmar o bom exito d’elle, tornar solido este pensamento e não o comprometter para futuro. A votação caiu sobre a Inglaterra; e acceitos os offerecimentos do sr. Douglas delegado da «Commissão nacional ingleza», escolheu-se logo, para presidente do proximo congresso de 1874, ao sr. Birch egyptologo distincto, cujos trabalhos de organisação já começaram.

O sr. Léon de Rosny teve primeiramente a ideia de limitar a discussão aos estudos japonezes; a reunião, porém, de homens conhecedores de cada um dos ramos do Orientalismo tornava necessario plano mais vasto, programma mais desenvolvido.

Uma commissão nomeada para este fim traçou-o rasgadamente e por fórma, que o seu trabalho é mais um marco do progresso do Orientalismo do que um simples programma.

Antes de vos dizer quaes foram os trabalhos do Congresso, o que farei n’um breve resumo, peço licenca para fazer notar que o Orientalismo não é objecto de mera curiosidade; que não é assumpto para entretenimento e occupação de horas de ocio. O Orientalismo é a somma dos conhecimentos linguisticos, ethnologicos e historicos ácerca dos povos, do Oriente, antigos e modernos. Por elle se tem renovado a face do mundo porque a serie de estudos, que n’esta parte dos conhecimentos humanos se tem feito ha cerca de oitenta annos, tem mostrado ao homem donde elle vem e para onde deve caminhar, tem trazido a este seculo a tolerancia que faltou aos seculos passados, tem apagado as heresias theologicas e tende a apagar as heresias sociaes das doutrinas modernas que são neste seculo como as heresias theologicas no seculo XVI.

O Orientalismo é para a sociologia (permitta-se-me a comparação que só não tem de verdadeira uma parte, por que o Orientalismo pertence á sociologia, e a chimica é sciencia independente da biologia), o Orientalismo dizia eu, é para a sociologia o que a chimica é para a biologia. O estudo comparativo dos costumes, das religiões, das mythologias, das philosophias dos povos da antiguidade, tem prestado incontestaveis serviços á geographia, á anthropologia, tem confirmado as grandes leis da sociologia e explica phenomenos que a historia não conhecia e outros que ella apenas relatava; rasga os horisontes do passado, arranca á noite dos tempos as estrellas mais brilhantes — e trazidas para mais proximo de hoje, ellas, soes esplendidos, dissipam as trevas e mostram, á luz clara de seus raios, as sociedades primitivas surprehendidas no seu viver mais intimo.

O Orientalismo quebrando a lage tumular das nações mortas ha alguns mil annos, descobrindo o viver prehistorico dos nossos antepassados e conhecendo pelas linguas archaicas o segredo da formação da linguagem, ensina-nos como se combinaram os elementos da sociabilidade humana para produzirem os grandes compostos das civilisações, que precederam a grega e a romana donde, pela edade média, provém a de toda a moderna Europa e a de todo o mundo civilisado d’esle seculo, cuja maior gloria será a constituição definitiva da sociologia.

Se os trabalhos de Copernico, as leis de Kepler e o descobrimento da lei da gravitação são admiraveis porque constituiram a astronomia e deram impulso á physica, que, immobilisada pela concepção dos quatro elementos durante toda a edade media, só se constituiu como sciencia depois do grande descobrimento feito por Newton; se os trabalhos de Lavoisier, de Bertholet, de Richter e outros, em fins do seculo XVIII estabelecendo a lei das proproções definidas, a lei das proporções multiplas e a dos equivalentes crearam a sciencia maravilhosa da chimica; se desde o principio d’este seculo o nome de Bichat ficou immortal por elle ter fundado a biologia; se a lei da evolução e dos tres estados ou phases das concepções humanas, descoberta por o infeliz, quanto digno de respeito, Augusto Comte é sublimo pelos seus resultados moraes e por ter cavado os alicerces para o grande edificio da sociologia; não é, por certo, menos admiravel, menos maravilhoso nem menos sublime o descobrimento do sanskrito, o deciframento dos cuneiformes, a interpretação dos hieroglyphos e a dos Vedas na ordem historica e philosophica e nos seus resultados sociaes. Os nomes de Prinsep, Wilson, Colebrook, Wilkins, William Jones, Anquetil Duperron, Champollion, Burnouf, Bopp e outros serão eternos na memoria dos homens, e os seus traballhos de gloria immorredoira.

Bem funesta, tristemente fatal, será a cegueira dos que não virem o grande alcance d’estes estudos que dão nova, completamente nova face á anthropologia, á exegese, á critica, á historia, e chamam os philosophos para o campo para onde já Bacon lhes apontava.

Bem funesta, tristemente fatal, será a cegueira dos que á frente dos destinos de uma nação não pensarem que se o homem subjuga a natureza é, porém, escravo da ideia.

Estudos tão vastos como estes designados sob o nome de «Orientalismo» não parece podessem ser tratados em doze dias. Custa a conceber que a actividade humana podesse vencer a velocidade do tempo. Soube porem vencel-a. As sessões eram de manhan, á tarde, e até algumas tambem de noite. De doze dias souberam aquelles homens fazer vinte e seis. E, neste ainda tão breve espaço, occupou-se o Congresso, sob o ponto de vista linguistico, ethnographico e religioso, da Asia toda, da Oceania, da Grecia e da Costa mediterranea da Africa; expoz os objectos mais curiosos da artee da industria japoneza e chineza; registrou pormenores interessantissimos ácerca dos povos primitivos e dos immigrados, no Japão e na China, na India, na Malaysia, no Egypto e no Sul da Europa Oriental, mostrando a irreductibilidade dos differentes grupos ethnicos; combateu a classificação de linguas agglutinantes devida a Max-Mueller, desfazendo a synthese em que o grande glottico e profundo indianista tinha envolvido todos os idiomas que não são chinezes, nem irano-indo-europeus, nem semitas, comprehendendo elle prematuramente e d’um modo quasi, senão de todo, arbitrario e vago em um só grupo as linguas da America, de quasi toda a Africa, da Asia oriental, da Oceania e de parte da Europa inclusive o basco ou vasconço; deixou de parte a unidade incontestada dos povos áryas ou irano-indo-europeus, cuja identidade lexica e grammatical, cuja estructura de idiomas revela o estado intellectual, moral e social das raças civilisadoras da Persia, da India e da Europa; deixou a independencia aos grupos japonez, chinez, turanno-finno-mongolico, dravidico e malayo; discutiu as religiões do Egypto, da Persia e da India, dando toda a liberdade e respeitando com toda a tolerancia aos que acceitam a ideia d’um monotheismo e espiritualismo primitivo, e aos que defendem a evolução do fetiehismo passando á astrolatria (como se encontra e se vê do naturalismo vedico), ao polytheismo, ao monotheismo, á metapbysica, pondo frente a frente os que crêem na religião revelada e a julgam sobrenatural e os que consideram as religiões como phases da concepção do mundo caindo na metaphysica, soltando-se do theologismo e finalmente irrompendo, por virtude da sciencia positiva, positiva e scientifica ella tambem e a unica tolerante cujo ideal é ao mesmo tempo real — a Humanidade. O congresso realisou mais na parte prática o grande desideratum «de um alphabeto internacional para transcripção do japonez em caracteres europeus» derramando no futuro, pela imprensa, as mais nobres ideias modernas no longinquo paiz do extremo oriente, o Japão, faminto de progresso, ardendo na sêde de civilisação.

A este congresso se seguirão outros, cada um em differente paiz da Europa. A Portugal ha de chegar a sua vez. È preciso, portanto, que Portugal se prepare para se mostrar digno d’esta honra, e não se deixe ficar fóra da communhão dos povos que o chamam e o convidam a entrar nas luctas intellectuaes. É preciso desenvolver em Portugal o Orientalismo. E para este fim nos reunimos aqui hoje sem termos outras pretensões senão as de homens de boa vontade.

Reunimo-nos aqui, não como orientalistas, mas como homens que se constituem em «Associação para promover os Estudos Orientaes e Glotticos em Portugal.»

Fômos nós, senhores, os que subscrevemos, em Portugal, para o Congresso internacional que se realisou nos doze primeiros dias de setembro em Paris. É a nós que incumbe trabalhar para que em Portugal se organise uma associação com todos os elementos necessarios para que os estudos relativos ao Oriente e á sciencia da linguagem, hoje uma esperança, ámanhan sejam um facto determinado na lei escripta e realisado na organisação dos nossos estudos.

Muitas sociedades hoje prosperas têem começado menos auspiciosas do que nós. É digno de consideração e sincero reconhecimento o espontaneo e obsequioso offerecimento que o sr. Rivara, e o que o sr. Léon de Rosny, em cartas dirigidas ao Delegado do Congresso, em Portugal, o sr. Silva, fizeram, pondo ás nossas ordens todas as suas obras. E é sobremodo para incitar brios, criar enthusiasmo e dar animo a todos os que se ufanarem do nome portuguez, ter-se mais promptificado o sr. Léon de Rosny a vir aqui fazer algumas conferencias e a concorrer, para a constituição da Associação cujas bases devemos hoje lançar, com todos os sacrificios que elle e os seus amigos possam fazer, dando-se por contente com a realisação do nosso intento.

Quando um homem como o sr. Léon de Rosny faz d’estes offerecimentos a homens, que, como nós, formam a «Commissão nacional portugueza do Congresso internacional dos orientalistas» é obrigação de taes homens, é nossa obrigação mostrarmo-nos dignos da offerta e de futuros obsequios.

E’ certo que teremos o apoio, não só do jovem e sabio japonista, mas de todas as «Commissões nacionaes» de todo o congresso emfim.

Não podem ser mais auspiciosos os começos. Dentro em pouco podemos ter uma bibliotheca, um archivo, um museu digno de uma sociedade de orientalistas, e dentro de alguns annos, se formos homens de energia, poderemos dizer que em Portugal existe essa sociedade, poderemos dizer que nos cabe a gloria de termos acordado o espirito d’este povo adormecido mas apto para os grandes emprehendimentos, poderemos dizer que fizemos a primeira das revoluções — a da instrucção, poderemos dizer que concorremos para o engrandecimento d’esta nação.

A Italia vao no bom caminho. A França tem já um passado brilhante e glorioso no que respeita a todos os ramos do Orientalismo; é ella a grande propagadora, foi até em parte a grande mestra da Europa. A Alemanha é o grande fóco d’esta luz immensa. A Inglaterra, a Russia trabalham activas. Preparemo-nos nós em Portugal, que estamos mais atrazados do que a França ha cincoenta annos no que respeita ao Orientalismo; preparemo-nos, já que a indole socegada do nosso povo nos deixa gozar da paz que falta á Espanha.

Assim ella se levante nobre e digna d’este concerto dos povos da Europa, possa entrar nas luctas intellectuaes robusta e energica, e achar-nos a seu lado dignos do respeito d’ella e merecedores em tudo do grande nome de europeus.

Lisboa, 29 de dezembro de 1873.