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Fausto (traduzido por Agostinho de Ornelas)/II

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Diante das portas da cidade
 

 
(Sahem passeantes de toda a casta)
 
OPERARIOS

Para que vão vocês por esse lado?

 
OUTROS

Vamos além, do caçador à casa.

 
OS PRIMEIROS

Nós cá vamos andando até o moinho.

 
UM OPERARIO

O meu conselho é ir té a cascata.

 
OUTRO

O caminho p'ra lá não é bonito.

 
OS SEGUNDOS

O que fazes então?

 
TERCEIRO

Sigo com os outros.

 
QUARTO

Vamos antes á aldêa; achamos certo
Excellente cerveja, bellas moças
E tambe:n o melhor divertimento.

 
QUINTO

Tu, meu grande ratão, comem-t'as costas
Pela terceira vez? Lá nesse sitio
Não gósto de brincar, tenho meu medo.

 
CREADA DE SERVIR

Nada, não quero, p'ra a cidade torno.

 
OUTRA

Achamol-o de certo lá nos alamos.

 
A PRIMEIRA

Que me faz isso a mim? Pôe-se a teu lado,
Só comtigo é que dansa lá na eira;
Que parte tenho eu nos teus namoros?

 
A OUTRA

Fica certa que hoje só não anda;
Disse-me que o amigo tambem vinha.

 
ESTUDANTE

Apre, como se mexem estas moças!
Amigo, chega cá, vamos seguil-as.
Cervejasinha forte, bom tabaco,
Uma boa pequena, eis o meu gosto.

 
RAPARIGAS DA CIDADE

Olha, pois tu não vês esses rapazes!
É mesmo uma vergonha; ter podiam
Tão boa companhia, e vão correndo
Apoz daquella gente, de creadas!

 
SEGUNDO ESTUDANTE (ao primeiro)

Anda mais devagar, vem atraz duas
E muito bem vestidas, a visinha
Lá vem de quem eu gosto; muito séria,
Mas acceitam-nos certo a companhia.

 
PRIMEIRO

Nada, meu charo amigo, isso é massada.
Depressa, não nos fuja a outra caça;
A mão que uma vassoura empunha ao sabbado,
Com mais carinho affaga no Domingo.

 
BURGUEZ

Cá a mim não me agrada o Burgomestre:
Agora des que o é, faz-se attrevido
E cada dia mais. Pela cidade
O que tem elle feito? A peor vae tudo:
Força é obedecer mais do que nunca,
E tambem ir pagando mais que outr'ora.

 
MENDIGO (canta)

Minhas bellas senhoras, meus senhores,
Tão bem vestidos, de tão bom par'cer,
Dignai-vos de olhar as minhas dôres.
Vêde e alliviae meu padecer!
Não seja vão meu supplice cantar,
Dá de bom grado o coração contente.

Esmolas fartas espero eu juntar
Em dia que festeja toda a gente.

 
OUTRO BURGUEZ

Nada melhor conheço em dias santos
Do que é conversar sobre batalhas,
Quando longe de nós lá na Turquia
Os povos entre si brigam raivosos.
Pôe-se a gente á janella, bebe um copo,
Vê correr rio abaixo as barcas cheias,
E volta á noite para casa alegre,
Paz e tempos de paz abençoando.

 
TERCEIRO BURGUEZ

Visinho, tem razão, assim eu penso:
Abram-se embora os outros as cabeças,
Façam andar lá tudo em polvorosa,
Mas cá por casa fique tudo à antiga.

 
VELHA (ás raparigas)

Eia, como vão secias as meninas!
Quem não ha de ficar de boca aberta?
Mas nada de soberbas, ora escutem
Arranjar-lhes eu posso o que procuram.

 
RAPARIGA BURGUEZA

Agueda, vamos! tenho um medo immenso
De na rua fallar com bruxas destas.

Noite de Santo André mostrou-me aquella
O meu futuro amante, em corpo e alma.

 
A OUTRA

E o meu me fez vêr em crystal puro,
Á militar, com muitos companheiros;
Olho p'ra toda a parte, miro a todos,
Mas até hoje não logrei encontral-o.

 
SOLDADOS

Castello roqueiro
De muros altivos,
Donzella formosa
De modos esquivos,
Quizera ganhar!
É empreza arriscada
Mas bem compensada!

 

O nosso trombeta
Lá vae recrutar,
É para morrer
Ou para gosar.
Isto é que é viver,
É que é conquistar!
Donzellas e torres
Hão de s'entregar,
É empreza arriscada
Mas bem compensada,

E nós, oh soldados,
Avante marchar!

 
Fausto e Wagner
 
FAUSTO

Já de gelo libertos os regatos
E arroios estão, da primavera
Ao quente e vivo sopro. Reverdece
No fundo valle a esprança de colheita,
E o gelado inverno já sem força
Ás agrestes montanhas se retira.
Dalli envia, fugitivo, apenas
De saraiva chuveiros impotentes,
Que matizam de branco o verde prado.
Mas essa mesma alvura o sol não soffre;
A creadora força em toda a parte
Opera vigorosa, varias córes
Em tudo renovando; na campina
Faltam flôres ainda, em logar dellas
Homens tem enfeitados. Dest'altura
Volta-te p'ra a cidade. Variegada
Turba lhe sae da porta escura e funda.
Festejando o Senhor resuscitado
Todos hoje contentes se assoalham;
Pois tambem elles mesmos resurgiram:
Do sombrio recincto das moradas,

De officinas e fabricas que os prendem,
Da compressão dos tectos deprimidos,
Da estreiteza das ruas acanhadas,
Da veneranda noite das Egrejas,
Eil-os todos á luz restituidos.
Olha como ligeira se dispersa
Por campos e jardins a turbamulta,
Como do rio em toda a superficie
Tantas barcas alegres vogam. Cheia
Quasi até se alagar a derradeira
Lá se solta da margem. Nas distantes
Veredas das montanhas serpeando,
Brilham ao longe fatos domingueiros.
Já me chegá o rumor que vae naldea;
Este é do povo o verdadeiro empyreo,
Grandes, pequenos, satisfeitos folgam;
Aqui sou homem, posso eu aqui sel-o.

 
WAGNER

Senhor Doutor, o passear comvosco
Não é honra sómente, que é proveito;
Mas confesso que aqui só não quizera
Perder-me, pois detesto quanto é rude.
As musicas campestres, gritos, jogos,
São me profundamente aborrecidos.
Vêde como se agitam quaes possessos
E dizem que é prazer, chamam-lhe festa!

 
Camponezes debaixo das tilias.
 
(Danças e cantares)
 

Para o bailarico vestiu-se o pastor
De jaleca nova, de fitas de cór
Guapo trajar;
Debaixo das tilias já todos estão
Quaes doidos saltando sobr'o verde chão,
Lala,lala,la
Lari ra la la la!
Rabeca a tocar.

 

Á pressa se chega, e no peito bello
De fresca pastora foi lh'o cotovêlo
De leve roçar,
A moça mirando-o com ar irritado
Lhe grita, não seja você malcreado,
Lalalalala
Larira, la la la,
Cá vir-se esfregar!

 

No baile já tudo contente saltava,
Á esquerda, á direita com fogo bailava
Saias pelo ar;
De faces accesas as moças arfavam

No braço dos pares repouso tomavam,
La la la la la
Larira la la la!
A bom conchegar.

 

Não seja comigo você confiado
Que não sou daquellas que tem enganado
Com doce fallar;
Mas sempre a foi elle p'ra o lado levando,
Debaixo das tilias ao longe soando,
La la la lala
Larira la la la!
Rabeca e gritar.

 
VELHO CAMPONEZ

Ora, senhor Doutor, mui bem vos fica
Não desdenhardes hoje a nossa festa,
Andar homem tão douto entre este povo.
Pois tomae por favor a bella taça
Que de fresca bebida aqui vos encho.
Bebo á vossa saude e é meu desejo, .
Que não só vos mitigue a sede ardente,
Senão que tantos dias Deus .ajunte
Aos vossos, quantas gotas leva o copo.

 
FAUSTO

A bebida que alegra acceito grato,
A vossa saudação a todos torno.

 
(O povo apunha-se em torno)
 
VELHO CAMPONEZ

É na verdade cousa mui bem feita
O appar'cer assim n'um dia alegre,
Quem outr'ora p'ra nós, em negros dias,
Certo refugio foi. Aqui estão muitos
Vivos que vosso pai na extremidade,
Soube arrancar á devorante febre,
Pondo termo aos estragos do contagio.
E vós tambem, então ainda mancebo,
Dos enfermos as casas visitaveis ;
Mais de um 'cadaver as deixou p'ra sempre
Mas foi-vos dado de escapar illeso,
A duras provas resististe. Auxilio
Divino vos salvou, vós, nosso auxilio.

 
TODOS

Eia! á saude do provado sabio,
Que muitos annos nos ajude ainda.

 
FAUSTO

Diante do altissimo curvae-vos,
Que ensina a soccorrer, que manda auxilio.

 
(Segue com Wagner)
 
WAGNER

O que não sentes tu, oh grande homem,

Quando honras te rende o povo em chusma !
Feliz quem de seus dotes tal proveito
Pode tirar. O pae aos tenros filhos
Com respeito te mostra, alvoroçada
A turba acode e ávida pergunta:
Emmudecem os cantos, danças param,
Quando tu passas, e formando alas,
Os barretes ao ar atiram todos;
Por pouco que não cahem de joelhos
Como se vissem vir o Sacramento.

 
FAUSTO

Só mais dous passos té aquella pedra! —
Alli do passear descansáremos.
Muita vez meditei aqui sosinho
E atormentei-me com jejuns e rezas.
Rico d'esp'ranças e na crença firme,
Com lagrimas, suspiros, mãos erguidas,
Julguei o termo em fim daquella peste
Alcançar do Senhor. Como um escarneo
Da turba o applaudir sôa-me agora.
Oh! se podesses ler dentro em meu peito
Quam pouco filho e pae louvor mer'ceram!
Meu pae, homem de bem, porém obscuro,
Sincero d'intenções, mas a seu modo,
A natureza e sua sacra esphera.
Com phantastico ardor investigava ;
Encerrado em cosinha tenebrosa,

Rodeado d'adeptos, e segundo
Receitas infinitas, os contrarios
Procurava fundir. Um leão vermelho,
Pretendente attrevido, desposava
Com o candido lyrio em banho tepido;
Um e outro depois com viva chamma,
De retorta em retorta transmutava.
No vidro então surgia matizada
A rainha gentil, de varias cores:
Era o remedio; a morte os pacientes
Ceifava; se algum tivera cura
Ninguem sequer por isso perguntava.
Assim nestas montanhas, nestes valles,
Com drogas infernaes, peores estragos
Do que a peste fizemos. Dei eu mesmo
A muitos o veneno. Succumbiram
E sobrevivo eu, e presencêo
Louvor ao assassino tributado.

 
WAGNER

Como podeis com isso atormentar-vos ?
Bastante homem não faz quando pratica
Qual lh'a ensinaram cuidadoso a arte?
Se tu, como mancebo, teu pai honras,
As licções que te der submisso esculas;
E se depois, já homem, à sciencia

Um passo fazes dar, tambem teu filho
A maior perfeição leval-a pode.

 
FAUSTO

Oh feliz, quem a esp'rança nutre ainda
De surgir deste mar immenso de erros!
D'aquillo que não sabe o homem carece
E o que sabe, utilisar não pode.
Mas com tristezas taes não perturbemos.
Dest'hora os dons bellissimos. Contempla
Como no resplendor do sol cadente
Reluzem, rodeadas de verdura,
Essas choças na serra desparzidas.
Recua o astro e cede, o dia acaba;
Mais longe corre o sol dar nova vida.
Oh! não me erguer da terra aza nenhuma
Para seguir traz delle sempre, sempre!
Veria em eterna tarde radiosa,
Aos pés tranquillo mundo, as altas serras
Todas em fogo accesas, fundos valles
Em placido repouso, e em veios d'ouro.
O arroio de prata serpeando:
De monte agreste os escarpados corgãos
A divina carreira não sustaram,
Abrir-se -hia o mar co'os seios tepidos
Ao attonito olhar. Lá yai sumir-se
O Deus emfim no seio do oceano;
Mas nova aspiração em mim acorda,

Sigo ávante a beber-lhe a luz eterna,
Tendo o dia ante mim e atraz a noite,
Os ceus sobré a cabeça, aos pés as ondas.,
Um bello sonho emquanto o sol s'esvae!
Ai, que ás azas do espirito tão facil
Não hão de associar-se azas corporeas!
E todavia a todo o ser nascido
Acima e ávante impelle o sentimento,
Se sobre nós no espaço azul perdida
Entôa a cotovia o canto agudo,
Se sobre os pinheiraes d'altivas rochas
Paira a aguia estendida, e por lagôas
Ou por plainos o grou procura o ninho.

 
WAGNER

Horas tenho tambem de phantesia,
Mas d'aspiração tal jamais fui conscio.
De bosques e de prados cedo farto
Nunca invejei aos passaros as azas.
Como o prazer do 'studo outro nos leva
De livro em livro, d'uma a outra pagina!
Assim se tornam bellas, tediosas
Noites d'hinverno e calorosa vida
Os membros nos aquece, e ai, se acaso
Um douto pergaminho desenrolas,
É o ceu que sobre ti baixar se, digna.

 
FAUSTO

Só d'uma aspiração tens consciencia
Oh, não queiras jamais sentir a outra!
Duas almas habitam no meu peito
Uma da outra separar-se anceam ;
Uma com orgãos mat'riaes se afferra
Amorosa e ardente ao mundo physico;
Outra quer insoffrida remontar-se
De sua excelsa origem ás alturas.
Oh! se no vasto ar vagam espiritos
Entre a terra e o ceu regendo o espaço,
Baixem té mim desse dourado ambiente
E a nova, varia vida me transportem!
Ah sim, se fosse meu, magico manto
Que me levasse a terras desvairadas,
Pela mais rica veste o não trocára
Nem por manto de rei, vaidoso o déra.

 
WAGNER

Não evoques a grei bem conhecida
Que em torrentes no ar anda espalhada,
E de todos os lados aos humanos
P'rigos infindos sem cessar prepara :
Do norte corre o penetrante sopro
Sobre ti com mil linguas aceradas;
Do oriente vem arido e secco
Teus pulmões. devorar ; Já do deserto

Adusto agora os manda o meio dia,
Ardores sobre ardor accumulando ;
Agora veem do Oeste com chuveiros
Que a ti e os campos ao depois inundam.
Faceis escutam de ferir gostosos,
Promptos acodem a enganar affeitos.;
Como vindos do ceu se nos inculcam
E quaes anjos nos fallam, quando mentem.
Ora voltemos, já escurece tudo,
O ar torna-se frio, a nevoa desce,
Horas da noite valem mais'em casa.
Porque páras assim, que olhas attonito ?
O que pode atterrar-te no crepusculo?

 
FAUSTO

Vês aquelle cão negro como corre
Por searas e estevas?

 
WAGNER

Vejo-o ha muito,
De pouca monta me par'ceu ser elle?

 
FAUSTO

Attenta bem, que julgas tu que seja?

 
WAGNER

É um gozo, que a pista de seu dono
A seu modo procura impaciente,

 
FAUSTO

Pois não reparas que em 'spiral correndo,
De nós em torno, mais e mais se' chega ?
E um rasto de fogo, se não érro,
Pelo trilho lhe segue?

 
WAGNER

Nada vejo
Mais que um gozo negro, a vista illude-vos.

 
FAUSTO

Parece que em subtis, magicos laços,
Prisão futura, nossos pés enreda.

 
WAGNER

Vejo-o saltar em roda receoso,
Por ver em vez do dono dois extranhos.

 
FAUSTO

Eis que s' estreita o circulo, approxima-se.

 
WAGNER

Que phantasma não é já vês, é um gozo.
Hesita, rosna, sobre o ventre roja,
Agita a cauda são caninos usos.

 
FAUSTO

Chega-te'a nós — Aqui !...

 
WAGNER

É mesmo um gozo:
Se paras, pára elle; se lhe fallas,
Procura marinhar por ti acima;
Perde seja o que for, virá trazer-t'o
Apoz do teu bastão saltará n' agua.

 
FAUSTO

Tens de certo razão, rastos não vejo
D'espirito, o que faz é tudo ensino.

 
WAGNER

Ao cão, se habilmente o ensinaram,
Té o homem prudente se affeiçõa..
De todo o teu louvor de certo é digno
Elle do 'studioso o melhor socio.

 

(Entram pela porta da cidade)