Fausto (traduzido por Agostinho de Ornelas)/IV
Batem? Entrae! Quem vem atormentar-me?
Sou eu.
Entrae!
Has-de o dizer tres vezes.
Pois outra vez, entrae.
Assim agradas-me.,
Havemos de entender-nos, tenho esp'rança.
Para curar-te da melancholia,
Aqui me tens vestido á cavalleira,
De carmezim com passamanes de ouro,
De pluma no chapeu, manto de seda
E ao lado pendente a aguda espada;
Um conselho te dou, sem mais preambulos,
Que vás ataviar-te deste modo,
E livre venhas vêr qual seja a vida.
Seja qual fôr o trajo, sempre as penas
Hei-de sentir deste viver mesquinho.
Sou já mui velho p'ra brincar sómente,
E muito moço p'ra não ter desejos.
Em que me póde contentar o mundo?
Priva-te, priva-te! eis a lenda eterna
Que aos ouvidos de todos triste sôa;
Que toda a nossa vida, com voz rouca,
Cada hora repete. Com a aurora
Horrorisado acordo; amargo pranto
Sobre o dia derramo que em seu curso
Nem um desejo poderá fartar-me,
Nem um sequer; que o pressentimento
De futuro prazer turva invejoso,
E o crear de minha activa mente
Ha-de empecer, da vida co'as miserias!
Quando á noite no leito vou lançar-me,
Novo soffrer me punge. Não me é dado
Tranquillo repousar. Sonhos tremendos,
Atterrando-me, o somno me angustiam.
A divindade que meu peito habita,
De meu ser agitar pode o mais fundo ;
Mas minhas forças todas dominando
Do mundo externo nada mover pode.
É me assim cruelissima a existencia,
A' vida um peso, a morte suspirada.
A morte poucas vezes é bemvinda.
Ditoso aquelle a quem no ardor da lide
Os louros da victoria em sangue tinge,'
O que depois de valsa doudejante
É nos braços da amante arrebatado.
Tivera eu, ante o grandioso espirito,
Transportado d'amor, cahido exanime!
Nessa noite houve alguem, que certo liquido
Escuro não bebeu.
A espionagem
Parece ser teu gosto favorito.
Sem ser omnisciente, sei bastante.
De tormenta mental tão temerosa,
Se doce, amigo som veiu salvar-me ;
Se suaves memorias acordando,
Inda crenças da infancia me cegaram;
Maldigo agora o que seduz a alma
Com illusões, engodos que fascinam;
O que neste antro triste e tenebroso,
Com ardilosa força a traz captiva.
Maldicta seja a opinião subida
Que de si mesma forma a mente cega,
Maldictas essas falsas apparencias
Que aos sentidos mentem, esses sonhos
De gloria, e de nome immorredouro.
Maldictos sejam bens com que a fortuna
Nos affaga a avareza, as terras pingues,
O arado que as sulca, a mão que o guia!
Affeições de familia, esposa, prole,
Sede maldictos ; sê maldicto Mammon,
Que a emprezas audazes nos incitas
Com teus thesouros vis, e em ricas sallas
Fofos coxins para a indolencia apprestas.
Succo fervente de purpureos cachos,
Gosto summo de amor, sede maldictos.
Maldicta seja a esp'rança, a fé maldicta,
E mil vezes maldicta a paciencia!
Ai, ai,
Destruiste
O mundo tão bello,
Com mão attrevida;
La cae derrocado!
Em terra um semideus o tem prostrado.
Nós tristes levamos
Ao nada os destroços,
Saudosos choramos
Perdida belleza.
Mortal poderoso,
Fal-a reviver;
No peito orgulhoso
De novo nascer.
Carreira da vida
Enceta de novo,
Com alto pensar,
Eternas canções
Te vão celebrar.
Dos minimos meus
As vozes escutas,
Chamando-te á vida,
Aos gozos, ás luctas!
Da solidão que gela
Em ti sangue e vigor,
Do mundo ao vasto espaço
Te chamam com ardor
Deixa de te entreter com tua magoa
Que te roe as entranhas qual abutre.
Na peor companhia ao menos sentes
Que és homem como os mais. E não te digo
Com isto, que no vulgo vás sumir-te.
Não é muito o que posso, mas se queres
Junto comigo percorrer o mundo,
A teu dispor me tens; desde já prompto
Companheiro sou teu, e se convenho,
Tambem serei creado, humilde famulo.
Que te hei de tornar em paga d'isso?
Tempo temos sobejo p'ra tratal-o.
Nada, não quero. O demo é egoista!
Que por amor de Deus não faz serviços
A outrem. Dize o que por paga exiges;
P'ra tomar tal creado é mister tento.
Obrigo-me a servir-te cá na terra,
A teu menor aceno obedecendo,
Se, quando no outro mundo nos toparmos,
O mesmo me fizeres.
Pouca monta
O outro mundo tem p'ra mim; se esté
For um dia ruinas, muito embora
Venha outro depois. É desta terra
Que brotam meus prazeres, minhas penas
Este sol allumia. Quando delles
A separar-me chegue, então súcceda
Seja o que for. E nem saber m'importa
Se ha odio ou amor na outra vida,
Nem se existe lá n'essas espheras,
Região superior ou fundo abysmo.
Pensando assim, bem podes arriscar-te;
Façamos o contracto. Com delicia
De meu poder verás as maravilhas.
Dar-te-hei o que homem nenhum viu.
Que me has de tu dar, pobre diabo?
A mente humana e seu immenso anhelo
Acaso compr'ender podem teus pares?
Manjares tens que não saciam, ouro
Que nos corre das mãos qual vivo azougue,
Jogo a que se não ganha; tens mulheres
Que sobre o peito meu, com meigos olhos,
A outrem se promettem, tens da gloria
O divino prazer, vão meteoro
Que rapido s'esvae. Mostra-me fructos
Que antes de colhidos se corrompam,
Plantas que nova folha sempre vistam.
Não me atterra a incumbencia, posso dar-te
Tambem d'esses thesouros. Mas, amigo,
O tempo alfim lá chega em que somente,
Algum prazer gosar em paz queremos.
Se jamais repousar eu socegado
Em leito d'indolencia, morra logo!
Se com lisonjas tanto m'illudires,
Que chegue a estar comigo satisfeito,
Se com deleites logras seduzir-me ;
Seja esse meu dia derradeiro.
A aposta offreço.
Topo.
Pois 'stá dito.
Se disser ao momento quando foge:
És tão bello, demora-te, — encadea-me,
Succumbo satisfeito. Então repique
Por mim a campa de finados, cesse
O serviço que fazes, sê liberto;
Pare o relogio e o ponteiro cáia,
De minha vida soe a hora extrema.
Attenta bem, nós não o esqueceremos.
Terás todo o direito de lembral-o ;
Tal decisão não a tomei de leve.
Como vivo sou escravo, que m'importa
Sel-o teu ou de outrem?
Hoje mesmo
Ao jantar do Doutor farei serviço.
Uma cousa — por quanto ha t'o peço,
Dá-me duas regrinhas assignadas.
Escriptura tambem queres, pedante,
A fé de homem honrado não conheces ?
Não é bastante que a palavra dada
Para sempre me ligue em toda a vida?
Emquanto o mundo arrastam mil torrentes
Terão promessas força de prender-me?!
Mas é esta a illusão que temos n'alma,
Quem ousará jamais soltar-se d'ella?
Ditoso o que no peito traz verdade,
Não lhe hão de pesar os sacrifícios!
Pergaminho porém sellado e escripto,
É phantasma que atterra os mais affoutos.
Já na penna a palavra morre, a cera
E o couro curtido então dominam.
O que exiges de mim, maligno espirito?
Papel ou pergaminho, bronze ou marmore,
Que escreva com cinzel ou com uma penna ?
Deixo-te livre a escolha.
P'ra que has de
A tal ponto empolar tua facundia?
Qualquer papel nos serve, se assignares
Com um pingo de sangue.
No capricho
Consinto, se com elle te contentas.
É o sangue um licor especialissimo.
Medo não tenhas que viole o pacto.
Com minhas forças todas desejava
Aquillo que prometto. Infatuára-me .
Excessiva soberba; á tua egualha
Conheço pertencer: o grande espirito
Cruel me desdenhou e a natureza
Ante meus olhos seus arcanos vela.
O fio das idéas tenho roto,
E muito ha já, que o saber m'enoja.
Da sensualidade nos abysmos,
Inflammadas paixões me tranquillisem;
Em denso veu de encantos envolvidas
Todas as maravilhas se me offreçam!
Do tempo na torrente caudalosa,
No pelago da vida nos lancemos!
Victorias e revezes, pranto e riso
Se sigam, alternando-se incansaveis;
Só lidando sem fim, se prova o homem.
Nem medida, nem termo se vos marca.
Se de tudo as primicias só quizerdes,
Somente alguma flor provando rapido,
Bom proveito vos faça o vosso gosto.
É deitar mão de tudo e sem modestia!
Entendes-me ? Não curo de prazeres.
Ao delirio me voto, aos mais pungentes
Deleites : odio que ama, dor que alegra.
A nenhum soffrimento, dor nenhuma,
Fique extranho meu peito, já sarado
Da ancia do saber. O que é partilha
De toda a humanidade, no meu seio
Quero sentir, e perceber na mente
As idéas mais altas, mais profundas;
Enthesourar no peito os Bens e Males
Que dos homens são sorte, dilatando
Té o delles meu ser e succumbindo
Como elles a final.
Olha, acredita-me
A mim que ha milhões de annos que mastigo
Este duro bocado. Nenhum homem,
Do berço á sepultura, jamais logra
Ir o velho fermento digerindo.
Acredita um de nós, foi este todo
Feito só para um Deus! A luz eterna
De todo o sempre o cerca, densa treva
Por morada nos deu, e a vós somente
O tempo repartiu em dia e noite.
Porém eu quero!
E o dizel-o é facil !
Uma cousa recêo, a vida é curta
E muito longa a arte. Imaginava
Que serieis mais docil ao ensino.
Associae-vos com algum poeta,
Deixae-o divagar e enriquecer-vos
Da natura com os dotes mais subidos,
Coragem de leão, pernas de cervo
Ligeiras, d'italiano o sangue ardente
E de filho do norte a pertinacia.
Fazei com que o ségredo vos descubra
De astucia infundir em alma nobre,
É de guiar, segundo urdida traça,
Os impulsos de amor da mocidade.
Quizera muito conhecer tal homem;
O senhor Mikrokosmo lhe chamára.
Que pois sou eu, se me não é possivel
Essa c'roa alcançar da humanidade,
A que toda minh'alma audaz aspira ?
Vens a ser o que és — nem mais nem menos.
Põe as mais gadelhudas cabelleiras,
Saltos de vara e meia põe nas botas,
Ficas sempre o que és— nem mais nem menos.
Vejo que tenho em vão do humano espirito
Os thesouros na mente acumulado:
Quando medito, não rebenta força
Alguma nova dentro do meu peito;
Não cresci mais a altura de um cabello,
Nem mais cerca cheguei do Infinito.
Meu caro, as cousas vedes como todos;
Deveremos nós ser mais atilados
Antes que nos escape a doce vida.
Pés e mãos, co'os diabos, e cabeça
São teus, não é verdade? Pois aquillo
De que gozas contente sel-o-ha menos ?
Se tenho seis cavallos, suas forças
Minhas não são, e não ando ligeiro
Como se houvesse vinte e quatro pernas?
Deixa-te de pensar, vamos á vida !
Digo-t'o eu, um homem que medita,
É como um animal que em ressequida
Esteva faz girar maligno genio,
Quando a dous passos ha pastagens verdes.
Como damos principio ?
Partiremos
Sem a menor demora. Que buraco
É este em que tu vives, e que vida?
Atormentado a atormentar rapazes !
A teu visinho Pansa deixa isso;
'Star aqui sempre a repizar o mesmo!
O melhor que tu sabes não no ousas
Ás creanças dizer. Um alli ouço
Andar no corredor.
Não me é possivel
Agora recebel-o.
Espera ha muito
O pobre do rapaz, ir não no deixo
Assim desconsolado. Anda, o teu manto
E barrete me dá. Fica-me certo
As maravilhas mil este disfarce.
(Veste-se)
Deixa-o agora cá por minha conta,
Um quartosinho de hora é o que preciso;
No entanto te apresta p'ra a viagem.
A razão menospreza e a sciencia,
Essas do homem forças sublimadas !
Do genio da mentira pelas artes
Seductoras e vans deixa illudir-te.
És meu sem condições, dessa maneira....
Um animo insoffrido deu-lhe a sorte
Que ávante, indomavel, o impelle,
A cujo anceio soffrego não bastam
As terrenas delicias. Pela vida
Agitada o arrasto, pela chata
E torpe insipidez. Já o estou vendo
Estrebuchar, teimar, querer afferrar-se
E aos labios sedentos só de longe
Mostrarei refrigerio. Ha de debalde
Por allivio clamar. 'Stava perdido,
Ainda que ao demonio se não desse.
Recem-chegado sou, com reverencia
Conhecer, conversar procuro um homem,
De quem todos me fallam respeitosos.
Muito me apraz a vossa cortezia,
Um homem vêdes como muitos outros.
A vossa installação já haveis disposto ?
Rogar-vos venho que sejaes meu mestre.
Tenho a melhor vontade, algum dinheiro,
Energia e ardor não me fallecem;
Minha mãe me deixou partir a custo;
Alguma cousa a fundo aprender quero.
Não podieis achar logar mais proprio.
Fallando francamente, o meu desejo
Era ir-me outra vez. Estas paredes,
Estas sallas não podem agradar-me.
Falta-me o ar, não vejo nada verde
Nem sequer uma arvore, e nos bancos
Das aulas, perco o tino e o' sentimento.
É falta de costume. A creancinha
Tambem não toma logo de bom grado
peito nutridor, porém mais tarde
Alimenta-se delle com delicias.
O leite da sciencia pouco a pouco,
Vos irá cada vez melhor par'cendo.
Gostoso em seu regaço repousára;
Mas dizei, como hei de eu conseguil-o?
Antes d'iirmos mais longe declarae-vos.
Que faculdade tendes escolhido?
Quizera ser um sabio consummado;
O que conteem em si os ceus e a terra
A fundo conhecer, a natureza
E à sciencia.
Estaes no bom caminho,
Mas não deixeis que delle vos distráhiam.
Com alma e corpo o sigo, mas deveras,
Algum prazer nos dias feriados
E liberdade, haviam de agradar-me.
Empregae bem o fugitivo tempo,
Ensina a boa ordem a ganhal-o.
O conselho que dou; meu charo amigo,
É primeiro que tudo aula de logica.
Ahi vos hão de dar á mente ensino,
Em borzeguins estreitos apertando-a,
Por que percorra com airoso passo
A estrada do pensar, e não vaguele
Por aqui, por alli, qual fogo fatuo.
Depois dias e dias vos demonstram,
Que o que d'uma assentada antes fazieis,
Por exemplo, comer, é necessario
Que contéis um, dois, tres para fazel-o.
Verdade é que a fabrica de idéas
A um tear se assemelha, cada lanço
Vae mil fios mover que se entretecem
Escondidos á vista. Acima, abaixo
Correndo a lançadeira, a cada golpe
Ata mil ligações. Chega o Philosopho,
E que assim ser deve vos explica:
Foi o primeiro assim, assim segundo,
Serão portanto assim terceiro e quarto;
Se primeiro e segundo não houvesse,
Terceiro e quarto não seriam nunca.
Isto faz as delicias dos discipulos,
Mas a ser tecelões nunca aprenderam.
Quem um ser vivo conhecer procura,
Começa logo por tirar-lhe a vida;
As partes depois tem, mas já lhes falta
O espirito que as liga e as anima.
Encheiresin nature diz a Chimica,
Escarnece de si sem percebel-o.
Não vos posso entender perfeitamente.
Lá chegareis com o tempo, em aprendendo
A tudo reduzir, classificando o.
Estou tão tonto, nem que me rodasse
Uma mó de moinho na cabeça!
Logo depois, primeiro que o mais tudo,
Dedicar-vos deveis á Metaphysica.
Haveis de vêr que percebeis a fundo
O que não cabe ao homem no miolo.
Para o que nelle entrar póde e não póda,
Palavra achareis sempre altisonante,
Mas sobretudo agora, este semestre,
Um methodo segui mui rigoroso.
Cinco aulas por dia e entrae nellas
Á hora em ponto, não sem predispôr-vos
Estudando devéras os paragraphos,
Para bem conhecer que o sabio mestre,
Nada mais diz do que já 'stá no livro.
Mas tomae cuidadoso apontamentos,
Como se vos ditasse o Paraclito.
Não haveis de dizer-m'o duas vezes,
Sei muito bem o quanto isso auxilia.
Em possuíndo preto sobre branco,
Podemos ir p'ra casa satisfeitos.
Mas escolhei a vossa faculdade.
Co'a jurisprudencia não me ageito.
Nem vol-o levo a mal. Dessa sciencia
O estado conheço. Leis, direitos
Como eterna molestia se transmittem,
De geração em geração se arrastam,
De logar p'ra logar. Vem a ser erro
O que já foi verdade, em dom funesto
Se torna o beneficio: e és desgraçado
Porque tarde vieste. Do direito
Que comnosco nasceu, ninguem cogita.
Augmentais-me a aversão. Ditoso aquelle
Que vos ouve as licções. Quasi que sinto
Desejos de estudar Theologia.
Não vos quero induzir em erro. Em quanto
A essa disciplina, é tão difficil
Do errado caminho desviar-se;
Tanta occulta peçonha existe nella
Que da triaga apenas se distingue,
Que tambem neste caso o bom systema
É ouvirdes um só, jurando sempre
Na palavra do mestre. Em summa — atende-vos
Sempre ás palavras, els os meios optimos
De penetrar no templo da certeza.
Mas idéas exprimem as palavras!
É verdade, mas não o tomeis á lettra;
Serve a palavra onde as idéas faltam.
Disputa-se mui bem só com palavras,
Com palavras systemas se construem,
Na palavra se crê com fé profunda,
Da palavra um iota se não tira.
Perdoaé o deter-vos com perguntas,
Mais uma permitti. Da Medicina
Duas palavras não quereis dizer-me?
Tres annos não são muito e o campo é vasto.
Mas tendo pra guiar-nos bom conselho,
Mais seguros andamos no caminho.
Já estou cansado deste tom pedante,
Vou fazer outra vez papel de démo.
Da Medicina o fundo, sem trabalho
Se póde compr'ender; todo o Universo
Estudaes, para alfim deixar que ande
Como a Deus approuver. Perdeis o tempo
Em doutos devaneios engolphando-vos,
Ninguem aprende mais que aprender póde;
Sabio é quem se vale do momento.
Não me par'ceis mal feito e ousadia
De certo vos não falta, se em vós mesmo
Tiverdes confiança, os outros homens
Em vós confiarão. Deveis mormente
Saber levar as lindas senhoritas;
Suas: queixas sem fim, seus mil achaques,
Com um remedio unico se curam,
E se sabeis salvar as apparencias,
Na mão as tendes todas. Honorifico
Titulo lhes demonstre, que sciencia
Possuís que a de muitos mais profunda;
Assim, logo ao entrar, venceis obstaculos
Em que outro levára uns poucos d'annos,
Aprendei a apertar-lhes o pulsinho;
E com olhar de fogo ide apalpando
A cintura gentil, a vêr se acaso
Demasiado aperta o espartilho.
Isso é outro fallar, já 'stou contente,
Já percebo melhor o como e quando.
Pallida, amigo, é toda a theoria,
Mas a arvor' da vida é verdejante.
Eu vos juro que estou como num sonho.
Ousarei outra vez incommodar-vos
Para a fundo entender as licções vossas?
O que couber em mim, fal-o-hei contente.
Não me posso ir daqui, appresentar-vos
Inda quero o meu album, implorando
Uma lembrança vossa.
De bom grado.
Eritis sicut Deus, scientes bonum et malum!
Crê no dito da serpe, que inda um dia,
A par'cença com Deus te dá desgosto.
Aonde vamos nós?
Onde quizeres.
O grande mundo e o baixo visitamos.
Que prazer, que proveito de tal curso
Não has de tu tirar.
Mas esta barba
Faz tão grave e pesado o meu semblante,
Que da empreza sahir bem não espero:
Nunca me soube haver na sociedade;
Tão pequeno me acho entre os mais homens,
Que sempre hei de ser timido, acanhado.
Tudo isso ha de vir, meu charo amigo;
Confia em ti, e já viver tu sabes.
E como sahiremos, onde esperam
Carruagens, cavallos e creados?
Estender este manto é quanto basta;
Pelo ar nos transporta. Mas não tragas
Excessiva bagagem, em jornada
De tanto risco. Gazes inflammaveis,
Que já vou preparar, hão de da terra
Promptamente elevar-nos. Indo leves
Subiremos depressa. Ora recebe
Meus parabens por tua nova vida.