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Fausto (traduzido por Agostinho de Ornelas)/Introdução

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Uma tarde do verão de 1860, estavamos alguns addidos de legação numa salla do Club, em Berlim, procurando meio de passar agradavelmente a noite. Propoz alguem que fossemos ao theatro vêr o Fausto. Acceitaram todos a idéa, só eu lembrei que mui pouco sabia de allemão. Seguraram-me que assim mesmo gostaria da peça, e fomos.

O theatro estava apinhado de gente, enchia-o até os ultimos recantos uma variadissima assembléa, esperando em profundo silencio que principiasse a representação. Ergueu-se o panno, e a voz vibrante e sympathica de Hendrichs começou a declamar o magnifico monologo, que estrêa o primeiro acto.

Prendeu-se-me logo a attenção. Entendendo apenas algumas phrases, penetrei, como por intuição, o sentido do que ouvia, e comprehendi o grito d’alma, o desespero do homem que pedira em vão á sciencia a resolução do problema do Universo. Á scena de angustia e desalento passada no estreito e solitario gabinete de estudo, succedeu a franca e ruidosa alegria do povo, celebrando ao ar livre, no meio dos campos enfeitados pela primavera, a Paschoa da Resurreição. Foram passando deante de meus olhos os quadros encantados do maravilhoso drama: o pacto com Mephistopheles, o dialogo deste com o estudante, o primeiro encontro de Fausto com Margarida, a scena repassada de poesia em que, depois de remoçado, Fausto penetra na camara virginal da donzella, as entrevistas no jardim de Martha, e finalmente a incomparavel e pungentissima scena da prisão.

Saí profundamente commovido, ancioso por conhecer em todo o seu esplendor, em toda a sua plenitude a obra de que apenas entrevira as portentosas bellezas. Formei o firme proposito de entender o Fausto e dei-me logo, com afinco, ao estudo do allemão. Mas quando pude lêr o original, ainda não fiquei satisfeito; quiz, para melhor o possuir, para mais completamente d’elle me penetrar, traduzir em portuguez aquelles trechos ao menos, que me pareceram mais bellos.

Quando deixei Berlim, nos fins de 1862, já tinha em portuguez alguns pedaços. Na primavera de 1863, achei-me detido em Lisboa pela demora de um negocio pendente no Ministerio dos extrangeiros; cansado de esperar uma 'decisão que nunca apparecia, fui passar o mez de Julho na Cortegana, com o meu amigo Visconde de Chancelleiros. O muito que conversámos sobre a Allemanha, e a necessidade que senti de oceupar o meu ocio forçado, suscitaram-me a idéa de reunir numa traducção completa os fragmentos que possuia.

Como me captivára a primeira representação do Fausto a que assisti, assim me enlevou o trabalho a que me dei de traduzil-o. Continuei-o no meio das distracções de Baden, e terminei-o, pelos fins de 1864, na solidão das montanhas da Madeira. Admirador sincero das idéas de Goethe e da fórma sublime de simplicidade com que as revestiu, desvelei-me por transportal-as intactas para o portuguez, cuja maravilhosa flexibilidade e riqueza áudo tornam possivel. Respeitei até as liberdades de expressão, o amor do termo proprio que characterisam.o meu autor. Sinto quanto fiquei aquem do alvo em que puz o fito, mas tambem não foram pequenas as difficuldades que encontrei. Nem achei traduzido na nossa lingua um só verso do Fausto, nem um bom diccionario allemão-portuguez pude sequer descobrir.

Concluido o meu trabalho, podia dar-me por satisfeito com os prazeres intellectuaes que tão abundantemente me causou. Pensei todavia que prazeres egoistas nunca são completos, e imaginei, talvez me engane, que uma traducção do Fausto poderia chamar a attenção do nosso publico para a riquissima litteratura allemã, inda mal, tão ignorada entre nós. A opinião de um amigo, em cujo bom gosto e juizo tenho a maior confiança, confirmou-me nesta idéa. Resolvi pois dar à imprensa o manuscripto; revi-o cuidadosamente em Londres, e quando, em Fevereiro ultimo, me achei de volta a Lisboa, mandei-o immediatamente para o prélo.

Por ora apenas traduzi a primeira parte do Fausto, aquella que se accomoda ás condicções da scena, mas que, embora independente, é um episodio do vastissimo poema, da grandiosa epopêa, cujo heroe é o homem, considerado em todas as phases do seu desenvolvimento subjectivo e da sua acção externa. A aposta feita com Deus, não a ganhou ainda Mephistopheles; antes parecem mallogrados os seus esforços para perverter e rebaixar a indole generosa de Fausto. A orgia brutal da taberna de Auerbach, as torpissimas extravagancias da cosinha da bruxa, o elixir que deve atear em Fausto o fogo da paixão sensual, as visões phantasticas da noite de Walpurgis, só lhe augmentam a repugnancia por quanto é ignobil e baixo. O amor em que se accende por Margarida, em vez de fogo impuro que o avilte, é chamma que o acrisola e eleva. Margarida é a redemptora do seu amante, e a idéa sublime do resgate de Fausto pelo amor, tem no final do poema uma sublime expressão.

Conclue a primeira parte com a morte de Margarida, que expia voluntariamente neste mundo as culpas do seu amor, e cuja desdita lança no coração de Fausto a semente fecunda do remorso; na segunda continuam os esforços de Mephistopheles para domar Fausto, e proseguem cada vez mais vastos e energicos os passos deste no caminho do aperfeiçoamento e desenvolvimento do seu ser. A córte, as finanças, a guerra, a politica veem offerecer-lhe espheras de actividade cada vez mais largas, sempre mais elevadas; consagra-se todo ao bem estar dos seus similhantes, e quando em fim gosa a plenitude da satisfação, não é reclinado no leito da sensualidade, mas antevendo o effeito benefico dos seus trabalhos no meio dos outros homens. Approveita Mephistopheles o momento para matal-o, mas não ganhou nos termos do contracto a alma de Fausto, que lhe escapou elevando-se sempre e que os anjos lhe veem reclamar.

Neste quadro, de que apenas esbocei os mais vagos contornos, derramou Goethe com profusão as maravilhas do seu genio: os maiores arrojos da idéa, as mais peregrinas e mimosas bellezas da fórma. Foi a sua obra favorita, a tarefa de sua vida inteira, o cofre em que ia encerrando todas as joias que lhe ministravam um incomparavel espirito, uma incansavel e fecundissima intelligencia. Idéas scientificas, systemas religiosos, theorias politicas e philosophicas, poesia e arte antigas, mythologias pagans, já escondidas em allegorias admiraveis, já patentes em Dbellissimos versos, reunem-se, movem-se, vivem naquelle labyrintho de maravilhas, naquelle Universo poetico que se chama à segunda parte do Fausto.

Parei assombrado no limiar do templo. Antes de commetter empreza tanta como a traducção de tal obra, esperarei que pronuncie a sua sentença sobre o meu ensaio, o publico a quem o entrego.


Lisboa 31 de Março de 1867.