Fausto (traduzido por Agostinho de Ornelas)/VI
Enoja-me esta torpe bruxaria,
Promettes-me que hei de achar remedio
D'insania neste pelago? A uma velha
Conselho pedirei? Póde tirar-me
Esta cosinha immunda uns trinta annos?
Ai de mim se não sabes outro alvitre,
Já a esprança me foge. A natureza
Ou engenho sublime não acharam
Um balsamo efficaz?
Meu charo amigo,
Com muito acerto fallas: ha maneira
Natural de tornar-te á juventude;
Noutro livro porém se encontra escripta,
E capitulo é maravilhoso.
Sabel-o quero.
Bem, podes obtel-o
Sem despeza, sem medico e sem bruxa.
Parte já para o campo, poda, cava,
A ti ea teu pensar em estreito circulo
Procura restringir, e alimenta-te
De comida bem simples. Com o gado,
Como gado vivendo, não desdenhes
Por ti mesmo adubar o chão que ceifas;
Eis, acredita, o methodo seguro
Para até de oitent'annos remoçar-te.
Não estou a isso affeito, mal soubera
A enchada empunhar; a vida estreita
De modo algum convir-me poderia.
Sempre tem pois de entrar na cousa a bruxa.
Mas para que ha de ser por força a velha?
Não podes preparar tu a bebida?
Bonito passatempo ! Preferia
Edificar cem pontes no entanto.
Saber e engenho é pouco, para a obra
É muita paciencia indispensavel.
Annos se cansa um applicado espirito
E a fermentação só a faz o tempo.
Tudo o mais que é mister é cousa extranha,
Verdade é que o ensinou o démo
Mas o démo fazel-o não podéra.
Vê lá que raçasinha tão mimosa,
A creada esta é, esse o creado.
A senhora não 'stá, pelo que vejo.
Foi jantar
A senhora,
Pela chaminé fóra.
Que tempo gasta ella em divertir-se?
O que gastamos p'ra aquecer as unhas.
Estes bichos gentis que te parecem?
Os mais semsaborões que tenho visto.
Pois olha, uma conversa como esta
É o que mais prazer costuma dar-me.
Ora dizei-me cá, meus cachorrinhos,
Nessa panella ahi que estaes mexendo?
Fartas sopas cozemos p'ra mendigos.
Haveis de ter bem grande concorrencia.
Vem dados jogar,
Faz-me enriquecer,
Deixa-me ganhar.
É cruel destino,
Se ouro eu tivesse
Tambem tinha tino.
Como o mono ditoso se julgára,
Se podesse jogar na loteria.
O mundo aqui vae
Que sobe e que cae,
Que rola constante;
Qual vidro é soante;
Quam prompto o quebraes!
Aqui é brilhante,
Alli inda mais.
Sou vivente ser!
Cuidado, meu filho,
Que tens de morrer!
É de barro, e vai-se
Em cacos fazer.
O crivo p'ra que é?
Se fosses ladrão
P'ra te conhecer.
Olha pelo crivo.
Conhécel-o, e podes
Seu nome dizer?
E p'ra que é o pote?
Estupido zote!
Não sabe o que é pote,
Nem o que é caldeira!
Malcreado bicho!
Toma o hyssope, e senta-te
Aqui na cadeira.
Que vejo eu? que apparição divina,
Neste espelho encantado se reflecte !
Tuas azas mais leves me: confia,
Amor, e junto della me transporta.
Se parado não fico, se me chego
Mais de perto, só ao longe vel-a posso,
Como se veu de nevoa m'a toldasse.
De mulher a figura mais perfeita...
Pois é possivel? É a mulher tão bella?
No reclinado corpo vêr me é força
Dos ceus todos a essencia resumida?
Cousa assim poderá na terra achar-se?
De certo, quando um Deus seis dias lida
E no fim a si mesmo grita—: bravo!
Ha de saír por força cousa bôa.
Por esta vez sacia-te de vel-a;
Joia de egual valor hei de alcançar-te,
E feliz quem tiver a doce sorte
De conduzil-a ao thalamo de esposo.
Como rei no seu throno 'stou sentado;
Tenho o sceptro na mão, falta a corôa.
Fazei-nos favor,
Com sangue e suor
Grudae esta c'rôa.
Agora está prompto!
Nós vêmos, fallamos,
Ouvimos, rimamos.
Ai de mim, que enlouqueço inteiramente!
Quasi que até a mim se offusca o cerebro.
Se bem nos sahimos,
Se o conseguimos,
Idéas serão.
O meu peito começa a incendiar-se,
Fujamos d'aqui prompto.
Pelo menos,
Que são poetas sinceros confessemos.
Au, Au, Au, Au!
Maldicto animal, porca malcreada,
Perdida a panella, tu'ama escaldada,
Maldito animal!
(Vê Fausto e Mephistopheles.)
Que é isto aqui?
E vós quem sois lá?
Que quereis ahi?
Quem se metteu cá?
Os ossos vos ardam
No fogo infernal.
Traz, traz, em bocados!
Ahi tens as papas,
Os vidros quebrados.
Isto é p'ra brincar
E á musica tua
Compasso tocar.
Conheces-me, aventesma, monstro horrendo,
De teu amo e senhor não te recordas?
Não sei porque não dou já bordoada
E a-ti e esses monos não escacho.
Ao vermelho gibão não tens respeito,
Nem a penna de gallo reconheces?
Escondi esta face, ou é preciso
Que meu nome te diga?
Perdoae-me,
Senhor, a minha saudação grosseira,
O casco de cavallo não descubro.
E os vossos dous corvos onde param?
Por esta vez escapas, pois ha tempos
Largos que nos não temos encontrado.
O progresso que pule o mundo inteiro
Até o mesmo diabo chegar soube;
O phantasma do norte é do passado.
Que é delles, cornos, rabo, agudas garras?
Pelo que toca ao pé, produziria
Na gente mau effeito, e p'ra evital-o,
Como tantos rapazes elegantes,
De barrigas de perna uso postiças
De todo perco tino e entendimento,
O nobre satanaz em casa vejo!
Mulher, não quero ouvir mais esse nome.
Porque? que vos fez elle?
Ha muito tempo
Que no livro das fabulas 'stá escripto;
Sem valerem por isso mais os homens;
Do Mau se desfizeram, mas ainda
Lhes ficaram os maus. Podes chamar-me
Senhor Barão, assim fica bem tudo;
Um cavalheiro sou como os mais todos.
Do meu illustre sangue não duvídas,
Olha, aqui estam as armas de que uso.
Ha, ha, ha, bem conheço os vossos modos,
Sois um brejeiro como sempre fostes.
Toma sentido 'nisto, meu amigo,
Eis à maneira de lidar com bruxas.
Por que vindes, senhores? dizei-o agora.
Por um pichel lá do licor que sabes,
Mas do mais velho; com o andar dos annos
Sua força redobra.
De bom grado.
Uma garrafa tenho de que provo
Eu mesma ás vezes, e que já não deita
Fedor algum; servir-vos vou de prompto
Um copinho bem cheio.
Mas se este homem
Sem estar preparado ousar bebel-o,
Bem sabeis que não dura uma só hora.
É meu amigo e ha de approveitar-lhe;
Quero dar-lhe o melhor desta cosinha.
Fórma o circulo, dize os teus encantos
E um copo bem chéio lhe ministra.
Dize-me cá, para que é tudo isto?
Estas cousas ridiculas, os gestos
Delirantes e este alvar embuste
Ha muito que os conheço e os odeio.
Ora! são farças. P'ra brincar sómente.
Não sejas tão austero; como medico,
Ha de ella fazer seus gatimanhos
Para o licor poder approveitar-te.
Deves entender!
De um dez fazer,
E os dois deixar;
Os tres quadrarás
E rico serás.
Os quatro perder!
C'os cinco e os seis,
Assim diz a bruxa,
Sete e oito conta,
E 'stá à cousa prompta.
E nove são um,
E dez é nenhum.
Da bruxaria é esta a taboada.
Em delirio febril discorre a velha.
Para chegar ao fim falta-lhe muito;
Sei que todo assim reza o livro inteiro.
Desperdicei com elle infindos dias,
Pois a contradicção, quando perfeita,
Para sabios e tolos é mysterio.
É velha e nova, meu amigo, a arte;—
Com um e tres e tres e um foi moda,
Em todo o tempo, ir espalhando o erro
Em logar da verdade. Assim quieto
Se discorre e se ensina; quem quizera
Metter-se com taes parvos? Quasi sempre,
Quando vê só palavras, acredita
O homem que um sentido ellas encerram.
Alta potencia
Da gran 'sciencia,
Ao mundo escondida!
A quem não pensa
É concedida,
E sem trabalhos
Adquirida.
Que disparates 'stá dizendo ella?
Parte-se -me a cabeça dentro em pouco.
Parece-me um côro ouvir inteiro
De cem mil idiotas discorrendo.
Basta, é bastante, oh optima sybilla!
Traze aqui o licor e até a borda,
Esta taça me enche bem de prompto.
Mal não fará ao meu amigo caro:
É homem que passou por muitos gráos
E que já boas pingas tem bebido.
Vamos, depressa! Bebe tudo, tudo!
Has de vêr como o peito te conforta.
Tratas por tu o démo e a chamma temes?
Vamo-nos já, que descansar não deves.
Bom proveito vos faça o golosinho.
Se te posso servir d'alguma cousa,
Has de dizer-m'o a noite de Walpurgis.
Levae esta canção, cantando-a ás vezes,
Suas virtudes sentireis subidas.
Anda ligeiro e deixa-me guiar-te.
É de summa importancia que transpires,
Para que no teu ser interno e externo,
O remedio penetre. Depois disso
Ensino-te a prezar o nobre ocio,
E breve sentirás com almo gosto
Do alado Cupido as travessuras.
Deixa que n'um relance olhe o espelho,
A fórma de mulher era tão bella!
Nada, não quero, que verás em breve
Do bello sexo a flor, em carne e osso.
Co'o copo de licor que tens no corpo,
Numa mulher qualquer vês uma Helena.