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Fausto (traduzido por Agostinho de Ornelas)/VIII

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Noite
(Um quarto pequeno e aceado.)
 
MARGARIDA (entrançando o cabello.)

O que não dera eu se conseguisse
Saber quem foi aquelle senhor de hoje;
Era tão bem par'cido; e de alto sangue
De certo, que no rosto se lhe lia ;
Nem se outro fosse a tanto se attrevera.

 

(Sae)

 
Mephistopheles — Fausto
 
MEPHISTOPHELES

Entra. Devagarinho, bem de manso.

 
FAUSTO (depois de uma pausa.)

Deixa-me só, te peço.

 
MEPHISTOPHELES (examinando tudo em volta.)

Tal aceio
Não é qualquer mulher que assim o guarda.

 

(Sae)

 
FAUSTO (elevando os olhos e correndo-os em torno.)

Crepusculo suave, sê bemvindo
Tu que vagueas neste sanctuario !
Enche meu coração, pena amorosa,
Que -do orvalho da esp'rança arfando vives!
Como em torno de mim tudo respira
Repouso, ordem, são contentamento ;
Nesta pobreza, que abundancia immensa,
Que bemaventurança neste carcere

 
(Lança-se na cadeira de braços ao pé do leito.)
 

Tu me recebe agora, que os passados,
Em horas de tristeza ou de alegria,
Em teus braços abertos acolheste !
Quantas vezes em volta deste throno
Paternal, se juntou risonha chusma
De creanças gentis. Aqui outr'ora,
Pelos dons do Natal agradecida,
Minha amada talvez, co'as rubicundas
Faces da infancia, depozesse um beijo

Do avô na mão rugosa. Sinto, oh virgem,
Teu espirito d'ordem e vigilancia
Sussurrar junto a mim, que te ensinára,
Com materno cuidado, os dias todos
A estender sobre a meza o liso panno,
E até a teus pés o chão de arêa
Reluzente cobrir. Oh mão amada,
Tens divino poder, fazes da choça
Paraiso celeste.
E aqui?

 

(Ergue uma cortina do leito.)

 

Eu tremo
D'intensissimo gosto, horas inteiras
Aqui passar quizera. Natureza,
Aqui em doces sonhos tu formaste
O anjo á terra vindo.

 

Trasbordando
Calor e vida do mimoso seio,
Aqui dormiu infante e com sagrada
E pura evolução, da divindade
A imagem se perfez, ficou completa.

 

E tu! O que te trouxe aqui? Movido
Como sinto da alma o mais profundo!
Que buscas? Porque sentes pesaroso
O coração no peito? Pobre Fausto

Não te conheço já.
Cerca-me acaso
Um encantado ambiente? O meu desejo
Era facil prazer, e eis-me todo
Em amorosos sonhos engolphado...
Das impressões do ar á mercê 'stamos?

 

E se subito aqui ella appar'cesse,
Bem caro pagarias teu arrojo!
O grande homem, ah, quam pequenino
Cairia a seus pés anniquilado.

 
MEPHISTOPHELES

Depressa, vejo-a vir alli a baixo.

 
FAUSTO

Vamo-nos, vamos, nunca mais cá torno.

 
MEPHISTOPHELES

Aqui tens um estojo assaz pesado
Que fui buscar algures. Vae-o tu sempre
Mettendo no armario. Em ella o vendo,
Perde a cabeça; puz aqui cousinhas.
Para vencer a outras mais difficeis.
Creanças são creanças, brinco é brinco.

 
FAUSTO

Não sei, talvez não deva....

 
MEPHISTOPHELES

Que perguntas?
Talvez queiras guardar p'ra ti as joias?
Nesse caso aconselho á paixão vossa,
Que o tempo me poupe e mais trabalho.
Quero crer que não és um avarento?
Dou tratos ao miolo, ando a cançar-me, —

 
(Põe o estojo no armario e fecha-o.)
 

Vamos daqui depressa, vem comigo.—
Só para conseguir que a pobre moça
A vosso desejar se ageite prompto;
E vós estaes ahi como se houvesseis
De ir dar aula, e palpaveis vos surgissem
Physica e Metaphysica deante!
Anda dahi.

 

(Sáem.)

 
MARGARIDA (com um candieiro.)

Está tão abafado,
Tão quente aqui.

(Abre a janella.)

E todavia fóra

Não é tanto o calor. Não sei que tenho.
Quem me dera que a mãe 'stivesse em casa.
Sinto correr-me o corpo um calafrio...
Uma creança sou, tola e medrosa.

 
(Canta despindo-se.)
 

Houve outr'ora um Rei em Thule,
Até á morte constante;
Uma taça de ouro fina.
Lhe deixou morrendo a amante.

 

Nada mais o Rei prezava,
Nos banquetes lhe servia;
Arrasavam-se-lhe os olhos,
Sempre que della bebia.

 

Quando estava pra morrer,
Cidades, reinos contou;
A seus herdeiros os dava,
P'ra si a taça guardou.

 

Sentou-se á mesa, ao redor.
Seus cavalleiros sem par,
No salão de seus Avós,
No castello ao pé do mar.

 

Lá se ergue o bom do Rei,
Ultimo trago tomou,

E nas ondas azuladas
A taça de ouro lançou.

 

Viu-a cahir, affundar-se
E no mar desappar'cer.....
Os olhos no chão cravou,
Não tornou mais a beber.

 
(Abre o armario para guardar o fato e vê
a caixa das joias.)
 

Como veiu aqui ter tão lindo estojo ?
De ter fechado o armario 'stou bem certa.
Maravilhoso é! Que estará dentro?
É talvez um penhor sobre o qual hoje
Deu minha mãe dinheiro. D'uma fita
Aqui pende a chavinha. Abril-o quero.
Que é isto, Deus do ceu! Não vi tal nunca!
Um adereço com que mostrar-se pode
Nos mais solemnes dias uma dona!
Deixa ver o collar. Tanta riqueza
De quem será? De quem tão bellas joias?

 
(Enfeita-se com ellas e chega-se ao espelho.)
 

Se podessem ser. meus sequer os brincos!
Em os pondo, pareço logo outra.
Que te serve a belleza, pobre moça?
É muito, mas aos homens que lh'importa;

Quasi que mostram dó quando nos gábam.
Ao ouro tende e do ouro depende
Tudo no mundo, tudo! Ai de nós pobres.