Fiat Lux!
(POEMETO)
Et terra erat inanis et vacua.
Tinham os astros já mil annos, — tinham
Talvez cem mil — ou tinham um minuto —
(Pois quem sabe contar horas ou seculos
No relogio — que tem o firmamento
Por quadrante, — e algarismos, sóes e estrellas?)
'Stavam ha muito ali.
O velho Cahos,
O oleiro do infinito, que entre as duas
Mãos — o tempo e o espaço — os amassára,
Cansou por fim tambem de fazer mundos,
Não tendo já mais barro, nem mais raios
Com que o barro pintar.
Ora, limpando
As mãos, que estavam sujas do trabalho,
E esfregando uma palma contra a outra,
Soprou depois os restos, sem vêr onde,
Por esse abysmo além.
Oh pó de mundos!
Migalha dos banquetes do Principio!
Triste parto das sombras, atirado
Sobre o berço de luz do firmamento!
Morcêgo horrivel, meio tonto e cego,
Cahido no salão de lustres de astros!
O pó soprado, informe bola escura,
Como filho engeitado, que se esconde
Pela sombra dos muros, foi rolando
Pelos cantos do espaço, involto em trevas...
Que o não vissem os sóes.
E foi descendo,
Extranho, negro, horrivel, monstruoso.
E, quanto era maior a treva, ainda
Mais o medo crescia que o olhassem...
E mais o horror de si o endoudecia...
E mais girava, immenso já de inchado
De terror e delirio!
Os grandes astros
Como um viveiro immenso de fulgores
Atiravam, de sol em sol, as notas
Do eterno concerto...
E foi rolando,
Vertiginoso e bebado de horrores!
O feio, ebrio da mesma fealdade!
O mal, possesso do seu mal! As trevas
Cheias de medo de se vêr tão negras!
E o firmamento arfava n'um delirio
De harmonia e ventura! O espaço ardente
Suava luz — girando no infinito —
Pelos póros do céo... que são estrellas.
Oh! como a ave da noite eterna, ao vêr-se
Dentro do dia eterno... endoidecia!
Como rolava tonta a um lado e ao outro
Batendo as duas azas — Sombra e Espanto, —
Por todo esse infinito já não via
Um só buraco que a escondesse!
O Abysmo
— Escravo, mas heroe — chorava mudo...
E engulia os soluços.
Despojado,
Que lhe havia elle dar?
Os outros riam.
Oh! a belleza é cruel! A altura é fria!
E impiedosa e feroz! A ave aérea
Não tem dó do insecto! A virgem branca
Pisa o negro reptil! o louro infante
Crucifica o morcêgo! Os astros de ouro
Viram a Terra assim... e não choraram!
Um riso louco, então, feito de raios
Infinitos de luz, encheu o espaço!
O giro das espheras cambaleava
E estorcia-se, doido, em grandes frouxos
De hilaridade e brilho! E o écco eterno
Que em vez de voz, repete os esplendores,
Confuso co'as mil ondas tumultuosas
Parecia tempestade de harmonia.
Todo o céo se inclinava, incendiado
N'uma aurora boreal prodigiosa,
Vendo o truão horrivel do infinito!
Foi então que o Abysmo, o triste escravo
Dos senhores da luz — partido, oppresso
Co'a immensa dôr d'aquelle rir, — não pôde
Suster-se mais.
Ouviu-se desde baixo
Vir subindo um suspiro — e quantos éccos
Da antiga confusão ha 'hi no espaço:
E todas as tristezas que ficaram
Dos combates de outr'ora: e os soffrimentos
De quantas luctas houve, antes do tempo:
E essas mil dôres, e essas mil torturas,
Que custou cada sol: todo esse inferno
De negrumes, que o céo lançou, despindo-os,
Quando quiz ser só luz... de ais e gemidos
Quando quiz ser só canto... a parte infame
Que na injusta partilha coube ao Abysmo...
Tudo isto, no suspiro do captivo,
— Triste, mas grave; queixa, mas não súpplica...
Antes accusação, — na voz debaixo
Tudo isto ali subiu!
Os grandes astros
Enfiaram de pasmo e emudeceram!
E, se em seios de luz ha 'hi remorsos,
Sentiram-no n'essa hora...
Então abriram-se
As portas do silencio — e, como um sôpro
Que agitasse as espheras, voz sem timbre
(Se ha ouvir...) se ouviu: «Quem faz chorar o Abysmo?»
Oh! o grande bem e a grande formosura,
Que tendo a estrella e o céo, inclina a face
Para a grande abjecção! A Aurora immensa,
Que quer saber quem escurece a Treva!
A ventura sem fim, que se conturba
Porque a desgraça soffre!
O Abysmo horrivel
Sentiu que seus mil males vacillavam,
Sobre a base da eterna injúria, e se íam
Co' esse sôpro de amor. — E estranho, e pávido,
Duvidou se soffria e teve, em sonho,
Como visões do céo d'onde o lançaram...
E quasi perdoou...
'Stava adorando!
Oh, gotta de piedade, que adoçaste
Aquelle oceano de injustiça! Oh, lagrima
Teda feita de bem!... Bebeu-te o Abysmo!
E a Terra informe viu.
Como o silencio
De algum poço — que o fundo das montanhas
Guarda velado pela treva — pode
Ouvir, cheio de horror, o écco primeiro
De uma pedra descendo: como o centro
Da mina pode vêr o alvião primeiro
Que a abre de par em par, — assim a Terra
Viu a coisa sem nome que descia
Pelo infinito abaixo.
Olhou transida.
Era uma Mão — que parecia treva,
Tanto brilhava! E vinha-se alongando
Com cinco dedos — cinco continentes
De luz — fixa, sem côr, indefinivel,
Leviathan de brilho, pelo ether
Descia — e as ondas de harmonia erguiam-se
Como em tormenta de espleddor — horrivel...
Tanto era bello!
Ao longe, ao longe, ao longe,
'Té aonde a visão abre os espaços,
A orla do infinito radiava.
E cada sol, e cada estrella, vendo
Aquella Mão descer, dizia — Certo
Que me vem afagar! — E estremecia.
E a Mão passou em face das estrellas...
Mas não as viu. — Passou o grande côro
Dos sóes... e não os viu. — A via-lactea...
E não a viu. — E foi seguindo ávante.
Lá onde o escuro é tanto que suffoca
O tempo, no nevoeiro esquecimento,
Onde em vaga fronteira se confundem
O sêr e o não sêr — lá para o extremo,
É onde a Mão já ía...
E os grandes astros,
De sol em sol, de um horisonte ao outro,
Inquietos, através do ether immenso,
Lançavam vozes de ouro, perguntando
«Onde vae o Senhor?»
E a Mão descia.
Já não havia mais. Tinha chegado
Por defronte da Terra. E n'essa hora
Dois infinitos — um de horror, e o outro
Infinito esplendor, se contemplaram.
E os astros de ouro pelo céo disseram:
«Eis que Deus vae brincar tambem co'a Terra!»
E a Mão estava.
E a Terra negra olhava-a,
Como um selvagem um espelho; o susto
Co'o prazer inefavel combatiam-se
Lá dentro... e a massa informe estremecia.
Convulsa se agitava. Fascinada
Parecia recuar... e approximava-se!
E, n'um ultimo esfôrço, dando um salto
Enorme, por fugir — cahiu no centro
D'aquella Mão.
E os astros murmuravam
Aos sóes: «Certo que Deus a precipita!»
Mas a Mão não se abriu para lançal-a.
Os grandes dedos sobre a massa horrivel
Se fecharam. Pareciam, sobre o corpo
Tenebroso, que tinham apertado,
Cinco chagas de luz.
E consultaram.
Os cinco dedos entre si disseram:
«Que havemos nós fazer a isto?» E todos
Immoveis ali estavam.
E entre os dedos
D'onde — bem como um sapo entre os dois seios
De uma virgem — a Terra olhava o espaço,
Pareceram-lhe ao longe os grandes astros
Como pontinhos negros.
Um segundo
Roubado á eternidade é quanto basta,
Quer se seja morrão, quer seja estrella.
Então a grande Mão abriu-se e disse
Á Terra: Vae! — E como aguia sublime
Desde os Alpes se atira, a Terra ergueu-se,
Levando um vôo immenso entre as estrellas!
Viam-se-lhe luzir no dorso negro
Cinco traços de luz! Leito de brilho
Aonde os cinco dedos se poisaram!
E lepra de esplendor!
Rolou no espaço.
E os astros entre si se consultaram:
«Dar-lhe-hemos nós logar?»
E o Sol altivo
Fallou e disse: — Eu vejo-lhe no dorso
Uma mancha de luz — a Natureza!
E a Lyra disse: — Eu vejo-lhe outra fórma
Resplendente — é Idéa!
E Vesper disse:
— Eu vejo-lhe um signal de affago — é Alma!
E Venus disse: — Eu vejo reluzir-lhe
Uma cicatriz de luz — é Amor!
E disse,
Então, o Sete-estrello: — Eu adoro-lhe
Como o sitio de um beijo do Eterno...
— É Immortalidade!
E o côro immenso
Abriu-se e deu logar á Terra escura,
De cuja face cinco grandes f'ridas
Gottejavam a luz — a Natureza,
Que tem de Deus a força; a Idéa, filha
Da immensidade d'elle; a Alma, eterna
Como seu sêr; o Amor, que é olhar d'elle;
E a Immortalidade luminosa,
Que é o berço onde n'elle repousámos.
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E, agora, oh Terra! que és, entre mil rodas,
Uma roda do carro — vae rolando
E desprende, ao rodar por sobre o tempo,
Tuas cinco faíscas prodigiosas,
Pela estrada do Sêr — a Eternidade!
Bussaco, Outubro de 1863.