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Flor de Sangue/II/I

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São decorridos quatro anos e meio. Nesse curto período, instante imperceptível na vastidão infinita do tempo, quantos acontecimentos, quantas mudanças, quantas alterações nos homens!

Mas para que se possam perceber e julgar não deve olhar a coletividade, observar a multidão, porque esta não muda: apresenta sempre o mesmo aspecto de movimento e variedade; sua vida é uniforme e, se alguma alteração se pode notar, é que a massa é ainda mais numerosa e mais ativa que dantes. Os que desapareceram - desapareceram definitivamente: nenhum vestígio, nenhum leve sinal os faz lembrados.

O homem morre; a sociedade fica e vai por diante - compacta, agitada pelas paixões, tangida pelo interesse, precipitada por uma forte vontade ignota para um destino obscuro e atraente como uma formidável montanha de ímã encoberta num véu de névoas. Mas se tomamos à parte uma família, então, verificamos como influíram sobre ela, modificando-a, transformando-a, esses quatro ou cinco anos.

Uns morreram, nasceram outros; os rapazes fizeram-se homens; as meninas cresceram, casaram. Tornaram-se mães; a uns afastou para mais longe a necessidade de ganhar o pão; a outros abasteceu o acaso ou a prevaricação; a estes a enfermidade inutilizou na anquilose ou na imbecilidade; àqueles perdeu a ambição, a cólera ou a sensualidade, levando-os ao roubo, ao adultério, ao assassinato, ao suicídio.

Quanto vão movimento! Que agitação estéril! Nesta colossal partida de xadrez do homem com a morte, é esta sempre quem ganha a negra e sem dar a desforra.

Na conta monstruosa da vida, em que os algarismos são escritos com lágrimas, e por isso desaparecem, ou com a tinta rubra do sangue ou com a tinta negra do luto, o algarismo vencedor, que a todos devora, é o zero... Que importa isso, porém? Enquanto se vive, forçoso é... viver; e viver é essa agitação, esse tumultuar, esse sofrer, esse iludir-se, esse aspirar, esse morrer de todos os minutos.

Nos quatro anos e meio que passaram desde o suicídio de Paulino, profundamente mudou a existência dos personagens desta singela história - singela como a verdade e a desgraça.

A viúva Prestes morreu dois anos e tanto depois, em seguida a uma terrível operação. Apurado o seu espólio, Corina, na qualidade de sua herdeira universal, apenas recebeu as jóias, que eram valiosas, e a casa em que morava a madrinha. Tudo o mais foi absorvido pelos credores. Só os três médicos que operaram a infeliz apresentaram uma conta de 12 contos de réis, que foi paga.

O inofensivo Castrioto deperece de dia para dia, minado por uma afecção gastrintestinal, que os médicos não podem vencer e em cujo diagnóstico dois, ao menos, não conseguem combinar.

Fernando Gomes, a que o desgosto de perder o seu amigo daquele modo trágico, encanecera quase completamente, não parece mais o mesmo homem feliz que o leitor conheceu; além dos cabelos brancos e das rugas precoces, tem um ar sombrio e dolorido, que lhe é impresso à fisionomia pela tristeza do olhar e por uma prega irônica dos lábios, raramente abertos em riso franco.

Um mal nunca vem só; afirma a experiente sabedoria do povo, e com razão.

A morte de Paulino fora, por assim dizer, o sinal da chegada do infortúnio para o seu amigo. Desde esse dia a roda da sua fortuna começou a desandar rapidamente: nunca mais fez um bom negócio; as melhores combinações falhavam-lhe: teve complicações graves com alguns comitentes, nas quais a sua boa-fé e a facilidade geral de então em tratar negócios o comprometeram bastante; realizou, por conta própria, operações desastradas, e, por fim, tendo jogado a última cartada, embarcado os últimos capitais num grande report da Companhia Geral de Estradas de Ferro - a famosa Geral sem mais nada - foi, como milhares de outros, vitimados pelo crack formidando; passou de quase milionário a quase pobre, apenas lhe restando, de sólido, algumas ações do Banco dos Estados Unidos do Brasil e a sua bela chácara da Tijuca.

Começou a débáclé. O que primeiro passou foram os carros e os cavalos; depois despediu-se a criadagem e empenharam-se jóias; seguiu-se a hipoteca da chácara e uma segunda sobre os remanescentes da primeira. Depois mudou-se Fernando para um chalé modesto, na rua do Bispo, para aproveitar-se do aluguel da chácara. Esta passou, por fim, para outras mãos, vendida em praça para pagamento dos credores hipotecários. E Fernando, lentamente acanalhado pelos revezes e pelas más companhias que estes geralmente trazem, pois ele não ousava mais freqüentar em condições tão inferiores as de outrora, a antiga roda de magnatas da política e das finanças, não sabendo de que modo satisfazer às exigências de conforto e de luxo de sua mulher, não podendo mais simular, como fizera por tanto tempo, uma certa abastança, pois estava crivado de dividas e o crédito esgotara-se completamente. Fernando vivia agora principalmente do jogo. O que conseguia ganhar na praça em corretagens, arriscava-o à noite sobre o tapete verde da roleta e do dado ou à mesa do pôquer. Perdia o mais das vezes. Mas como se tornara freqüentador assíduo das casas e clubes de jogo, adquirira crédito entre os jogadores, e já não sentia grandes apertos de dinheiro.

Vamos encontrá-lo agora associado, com o seu inseparável amigo Viriato de Andrade, em um desses clubes, na rua visconde do Rio Branco.

Nesse estabelecimento, perfeitamente montado para o seu mister, e habilmente disfarçado em clube recreativo, entra o marido de Corina às três ou quatro horas da tarde para somente sair na madrugada seguinte.

As poucas horas que passa em casa, passa-as quase todas dormindo. Levanta-se geralmente às dez da manhã e sai à uma da tarde. Só tem para conversar com a esposa a duração do almoço, ou pouco mais. E é a essa migalha de tempo que está há dois anos reduzidas a convivência desse casal.

Corina, que podia ter-se salvado se não perdesse o filhinho, que dera à luz alguns meses depois da morte de Paulino - o que foi novo e duríssimo golpe para Fernando -, Corina habituara-se àquela nova existência e com ela se acomodara sem pesar nem constrangimento.

Aquilo era a liberdade quase completa. O marido, ausente toda a noite e metade do dia, tornara-se para ela quase um estranho, com quem apenas contava para a manutenção da casa e satisfação dos seus caprichos. Essa liberdade era-lhe garantida pelo fato de só ter como criados a velha e fidelíssima Maurícia, que não trairia sua filha de criação nem sobre uma fogueira, e um chacareiro velho e bronco, que dormia numa casinhola ao fundo do quintal.

Após o suicídio do primeiro amante tivera mais dois, o primeiro dos quais fora o elegante e pertinaz barão de Santa Lúcia - esse homem excepcional que tinha e praticava a rara e preciosa virtude de "saber esperar", e que mais uma vez vira confirmada a sabedoria da sua máxima e divisa: "Acontece sempre o que se quer com firmeza e se espera com paciência".

A impressão causada em Corina pela morte sinistra e consternadora do seu amante fora profunda, extraordinária, de modo a parecer que seria igualmente duradoura; e foi tão forte que se o marido amasse menos Paulino e pudesse distrair a sua dor observando a alheia, teria provavelmente estranhado fosse tão violento o efeito dessa desgraça sobre Corina. Mas, passadas duas ou três semanas, uma singular transformação se operou nas idéias e nos sentimentos desta a respeito do seu primeiro e infortunado amante. Entrou a convencer-se de que se ele a amasse realmente não se teria matado; que não foi ela a causadora daquele infortúnio mas sim a esquisitice do gênio de Paulino, que sempre tivera idéias extravagantes, fora do comum, absurdas mesmo. Se ele a amasse deveras, como lhe dissera e jurara tantas vezes, em vez de deixá-la e estourar os miolos, teria ficado junto dela, para vê-la, ouvi-la, beijá-la, tê-la sempre perto de seu coração.

Proviera lhe essa ordem de pensamentos da observação que fez, alguns dias depois do fato, que Paulino não deixara nenhuma prova de que houvesse pensado nela nas últimas horas de sua vida - nem uma lembrança. nem uma palavra!

Não tinha ele escrito na sua declaração derradeira, momentos antes de matar-se: "Meu último pensamento é para minha irmã, meu irmão e meu amigo Fernando Gomes?" Por que não para ela também? Que tinha que o dissesse? Excluiu-a, esquecera-a...

É tão complexo e tão sutil o amor-próprio feminino! A mulher por quem um homem se mata sentirá sua morte tanto mais profundamente quanto mais convencida estiver de que foi realmente por amá-la que o infeliz se matou: não porque sinta remorsos ou sinceramente lamente a perda de um coração que lhe era tão dedicado: mas porque aquele suicídio era a homenagem mais elevada, mais preciosa, a última que ele poderia prestar a sua beleza, à sua graça, aos seus encantos. E a dor que ela sente não é mais que a gratidão da sua vaidade. E essa mulher chora, consterna-se, desfalece de mágoa... convencida de que amava aquele homem mais do que o julgava ou não sabendo que o amava. Passem os dias, e com eles as lágrimas e o dó... e essa mulher não se lembrará sem um íntimo gozo finíssimo que houve um homem que se suicidou por amá-la, por não poder possuí-la, por julgar-se desprezado por ela. A uma - é verdade que atriz - já ouvi gabar-se - oh, sim: gabar-se! - de ter sido a causa de três suicídios!

Corina, despeitada com o morto por haver partido de junto dela, primeiro, e do mundo, em seguida, sem lhe deixar uma palavra escrita, uma lembrança, um adeus, uma prova de que ela ocupava o seu pensamento nos últimos momentos de sua vida, começou descrer que houvesse sido ela a causa do suicídio até convencer-se de que a verdadeira causa fora desarranjo mental de Paulino, que sempre fora tido na conta de esquisitão, de tipo singular. Essa opinião também era a do marido, que lha sugestionara em parte: o qual não podia ter outra, não encontrando para um ato tão imprevisto e desarrazoado outra explicação senão a loucura.

Acresce que Santinha também dizia pensar desse modo. embora a principio mostrasse acreditar que fora o amor do médico pela amiga a causa do suicídio. A verdade é que ela o acreditou sempre: mas desejosa de distrai-la, de vê-la novamente alegre, gozando a vida amplamente, plenamente, fez sua a opinião de Fernando.

Três meses depois do triste acontecimento, nenhum vestígio dele se encontrava na fisionomia, nos gestos ou no vestuário de Corina: restituíra-se à ruidosa vida dos concertos, espetáculos e bailes - aos quais nunca mais a acompanhou o esposo, completamente sucumbido à sua irremediável dor.

Nos salões reencontrou Corina o seu fiel e paciente adorador barão de Santa Lúcia, que teve a prudência e a discrição de não se referir aos fatos que se passaram no largo intervalo havido nas suas relações mundanas, senão de um modo tão leve e tão hábil, que bastasse a significar à moça que ela melhor houvera feito em aceitar a corte constante e tímida e o amor resignado que lhe ele oferecia de tão longa data, que em preferir-lhe Paulino.

Santinha, o seu anjo mau, impelia-a para os braços do barão com a mesma risonha e calma inconsciência com que a impelira aos braços do médico. Depois Fernando, apanhado em cheio na vida infernal dos ricos que se debatem para salvar-se na corrente do crack, cada vez se desapegava mais dela, quase não acarinhava, mal lhe falava e raro lhe sorria... E o fato consumou-se: Corina entregou-se ao barão.

Fidalgo de maneiras como de sentimentos, dourou-lhe e enfeitou-lhe tanto quanto pôde as vilezas do adultério, evitando a frequentação da casa de Corina e as relações com o marido e dando encanto e distinção ao ninho em que ocultavam os seus amores e que ele preparara em uma casinha de sua propriedade, oculta nos folhetos e ramagens de um jardim, numa rua nova de arrabalde calmo. Somente neste retiro perfumoso e elegante consentia, o barão em estar com a amante. Recusou sempre ir vê-la em casa, à noite, embora ela lhe garantisse não correria nenhum risco por o marido só recolher sobre a madrugada todos os dias. Evitava mesmo encontrá-la na sociedade.

Era um homem extremamente cauteloso e prudente, medroso mesmo, arreceando-se de tudo, tudo prevenindo, nada confiando ao acaso. O fundo de seu caráter era formado de calma e ponderação. Metódico por índole e hábito, tinha a vida pautada como uma página de música. Registrava os mínimos atos da existência e as mais insignificantes despesas. Era um espírito de septuagenário num corpo de 30 anos. Muito alto, muito magro, o olhar sereno, meio velado de melancolia, bigode escasso e negro, acentuando a palidez do rosto sem barba, de maçãs salientes, fronte escampa, coroada de cabelos pretos, lisos e longos, de que vinham alguns cair sobre ela com um ar triste de ramos de salgueiro. Falava pouco, em murmúrio, com uma voz melodiosa, e uma precisão notável de locução; cada palavra tinha um papel distinto na frase e era insubstituível. Só dizia o que queria, quando queria e como queria.

Órfão, rico, independente, desambicioso, partindo em largas viagens à Europa, à Ásia, à América, quando o tédio o empolgava, fora sempre levado pelo seu egoísmo, delicado na forma e feroz no fundo, a repugnar o casamento - esse "egoísmo a dois" sem a felicidade de nenhum - e, por isso, resistindo a verdadeiros assédios de famílias que sonhavam atraí-lo a seu seio e a senhoritas das mais lindas e das mais prendadas do nosso high-life conservara-se o barão obstinadamente solteiro.

Desde a primeira vez que viu Corina sentiu-se vivamente impressionado; da terceira desejava-a, ardentemente. Acompanhou-a desde então através de todas as festas, públicas e particulares, fazendo-lhe uma corte assídua, mas tão respeitosa que Fernando, tendo-a percebido e vigiado de perto, nada pôde fazer para acabar com ela, receoso de parecer ridículo. Desde o baile de recepção de Paulino, pressentiu e anteviu o barão o que ia acontecer entre este e a sua amada e recolheu-se à sombra, não desejando estabelecer uma competência e uma luta que lhe repugnavam ao caráter; pôs-se de lado, arredado mas vigilante. Acompanhou assim aquele idílio que tão tragicamente devia findar. Quando viu a formosa estouvada voltar à frequentação do mundo elegante sem vestígios visíveis de comoção ou tristeza e desacompanhada do marido, julgou chegado o momento de dar a batalha decisiva e recomeçou a sua interrompida corte com dobrado ardor, quase certo da vitória. Não se iludia nos seus desejos e nos seus planos.

Durou ano e meio esse amor culpado, embora parecesse dever eternizar-se. Esses amores acabam sempre por não terem por base a amizade e o respeito, e acabam dissolvendo-se em ódio e rancor. Os amores, filhos do consórcio do desejo com a ilusão, vivem, como as falenas, a vida efêmera dos pais. O que primeiro morre é o desejo; a ilusão pouco lhe sobrevive, e ante os dois cadáveres brancos e frios, amortalhados em rosas murchas e em lírios fanados, os pobres amores arrastam-se ainda algum tempo e expiram, por fim, para ressuscitar e reviver na saudade.

Mas o que precipitou o desfecho dessa ligação, já de si tão frágil, foi o gênio de Lúcio - era este o nome de batismo do barão, cuja mãe era Lúcia - gênio que ninguém poderia suspeitar sob aquela aparência imperturbável de serenidade e doçura.

Lúcio, como todos os egoístas do seu quilate, era excessivamente zeloso.

O ciúme assumia naquela alma solitária e cética o estado intolerável de uma dor fulgurante mas não intermitente; e o que o desgraçado sofria era horrível. A princípio contivera-se, reprimira, ocultara o seu mal, o demônio que lhe rola o coração; mas pouco a pouco ele foi surgindo aos olhos de Corina em toda a sua hediondez.

Ao fim de alguns meses era um inferno a vida dos dois. Lúcio ofendia-a e conspurcava-a com as suspeitas mais torpes e mais inverossímeis. Obrigava-a a dar-lhe conta de todos os seus atos; e ela nenhum podia ocultar-lhe, porque sabia que ele a seguia de longe espiando-lhos e informando-se habilmente de todos os seus passos por meios indiretos, com os amigos dele e as amigas dela; e no mais inocente encontrava motivo para fazer-lhe uma cena dolorosa ou violenta, em que se martirizava martirizando-a, cenas que estragavam todos os seus transportes de desejo, toda a sua convivência de amantes.

As vezes nem se beijavam. As duas ou três horas da entrevista eram gastas em recriminações, em disputas, acusações injuriosas de um lado, defesa desesperada do outro, soluços, suspiros, risos de ironia, gritos de revolta... às vezes ele reagia contra si mesmo, contra aquela anomalia fatal do seu espírito, e, por um esforço violento, recalcava as suspeitas, as queixas, as recriminações e humilhava-se, rojava-se suplicante aos pés de Corina, beijava-os, lambia-os quase, como um rafeiro batido. Nesses dias eram deliciosas aquelas horas de pecado e mistério. Ele recuperava a sua doçura, ela a sua alegria. Mas era contar certo com um recrudescimento de ciúme na próxima entrevista.

Uma vida intolerável para ambos. Quem primeiro cansou e começou a rebelar-se contra ela foi Corina, que não podia compreender com que direito aquele homem, que era apenas seu amante, a magoava e ofendia com seus ciúmes injustos e brutais, quando seu marido, que era seu marido e não um simples amante, depositava nela a maior confiança, não suspeitando dela em caso nenhum. Era demais! Quis romper com o amante, brusca e definitivamente, mas teve medo. Sabia-o um cavalheiro, incapaz de uma vilania, de uma traição. Mas a paixão cega enlouquece os mais sensatos, torna grosseiros e maus os mais delicados e bondosos. Resolveu, ainda por conselhos de Santinha, ir acabando com aquilo devagar, insensivelmente, espaçando as entrevistas, faltando a algumas, deixando de defender-se das acusações e das suspeitas renascentes do barão. Este, para o fim, já se ia tornando insuportável; já não podia vê-lo sem sentir-se irritadiça, nervosa, agressiva. Os seus afagos deixavam-na fria, as suas habituais ciumadas enervavam-na como picadas de alfinete continuadas, impertinentes, em vários pontos do corpo.

Depois, um novo capricho lhe nascera no espírito ocioso e doente, um novo desejo lhe perturbara o coração despudorado.

Corina conhecera, por ter-lhe sido apresentado em um sarau, um belo e guapo sujeito, português de nascimento, mas há alguns anos residente no Brasil, e que se dizia guarda-livros de uma casa comercial importante. Chamava-se Hugo da Silva Rosa. Robusto, espadaúdo, peitorais amplos, cabeça forte, cara larga, tez morena, faces gordas e coradas, bigodes cheios, de fios pretos e crespos; um soberbo exemplar de meridional. E depois que lábias, que maneiras, que tagatés e delicadezas para com as damas! Tinha fumaças literárias e não se fazia rogar para recitar ao piano, anediando a cabeleira trovadoresca, uns horrores rimados e meluriosos, que dava por de lavra própria e que produziam um efeito seguro sobre o auditório feminino. A voz redonda, cheia, veludosa, tinha modulações de infinita doçura, que o olhar quebrado, de ovelha morta, acentuava de modo irresistível.

Era a coqueluche das salas o guarda-livros poeta, o belo Hugo da Rosa - como ele assinava -, abreviando. A fama das suas aventuras amorosas tornava-o muito interessante e curioso para as senhoras de todas as idades, mas principalmente para as solteiras jovens, as viúvas sensuais e as casadas românticas; as primeiras viam nele um marido bonito, muito apresentável; as segundas, senão um substituto valente ao seu defunto esposo, um homem capaz de consolá-las da sua perda; e as terceiras um amante ideal, formoso como Romeu, cismarento como Hamlet, heróico como Orlando.

Vestia-se a rigor, mas com um gosto comum, rastáquouère. gravatas flamejantes, colarinhos inverossímeis no talho e nas dimensões, vestons pretensiosos, bengalas formidáveis, ramalhetes grandes como repolhos, na botoeira. Há mulheres que morrem de amores por essa espécie de homens, que para elas reúnem as qualidades mais preciosas - força, audácia e brilhantismo.

Hugo da Rosa era o tipo comum e desprezível do bellátre, do Adônis pelintra, todo roupas e jóias, mas vazio de cérebro e de coração. Geralmente a mulher pouco se importa com os dotes relativos a esses dois principais órgãos da vida - sobretudo ao primeiro.

Corina sentiu-se influenciada também por ele, e, dominada pelo seu prestigio poderoso, não teve forças para resistir à corte que ele apressou-se em fazer-lhe, desejoso de juntá-la à sua já bem fornida coleção de amantes, classe "burguesas finas". E o miserável tão habilmente lhe preparou a queda, que Corina não pôde evitá-la antes de romper com o barão, de modo que teve dois amantes simultâneos, enganando um com o outro e o marido com ambos.

Mas Lúcio soube sem demora dessa inconcebível baixeza da amante e devia ter sofrido horrivelmente desse golpe no que ele tinha de mais delicado que o seu próprio amor - no seu amor-próprio, a julgar pela vingança que contra ela tomou, ele tão delicado e tão tímido...

No primeiro encontro com o barão a que foi Corina depois de ser amante do guarda-livros, e a que não quis faltar para evitar suspeitas da parte de Lúcio, não foi este quem a recebeu, à porta, como costumava, mas a velha criada francesa que tomava conta do chalezinho. Perguntou por Lúcio; a criada informou que o senhor barão estava no boudoir e lhe pedia o favor de lá ir. Corina entrou, abrindo as cortinas de guipura que o separavam da sala e estacou, apenas transpôs a porta, perplexa, imóvel, reduzida a estátua.

No elegante boudoir, formado no quarto de dormir por um lindo biombo chinês, que ocultava a cama, dividindo-o em dois, estava o barão sentado numa cadeira, a cavaleiro, com os braços cruzados sobre o espaldar, sério, pálido, vestido de preto, conversando ou fingindo-o, com uma mulher deitada, em frente dele, sobre uma chaise-longue, estofada de damasco. Era Madelon. Vestia apenas uma camiseta de seda cor de ouro velho, de cuja fímbria saiam as pernas, modeladas em meias pretas, e fumava uma cigarrilha negligentemente.

A surpresa das duas mulheres, encontrando-se, foi enorme. Corina empalideceu mortalmente e cerrou as pálpebras; a francesinha ergueu-se confusa, interrogando o barão com os olhos espantados. Mas o barão, sem se perturbar nem levantar-se, disse com um tom de irônica cerimônia, apresentando-as:

— Madeleine ou Madelon, como é mais conhecida, estrela do nosso demimonde, minha amante; madame Hugo da Rosa, estrela do nosso grand-monde, minha ex-amante.

Corina sentiu vergarem-se-lhe as pernas ante a afronta inesperada e crudelíssima; uma nuvem cobriu-lhe de sombras a vista; agarrou-se ao portal. Mas a necessidade de fugir daquele recinto era tão imperiosa que conseguiu, dominando a sua comoção, sair do boudoir, buscando, vacilante, atordoada, a porta da rua, através da sala. Mas o barão estava a seu lado, acompanhando-a, e dizia-lhe com um tom de voz estranho, cavernoso, assustador:

— O doutor Paulino, o seu primeiro amante, substituiu aquela cocote pela senhora; eu faço o contrário: substituo-a por aquela cocote. Passe bem.

E abriu a porta envidraçada que comunicava a sala com o jardim. Corina saiu sem uma palavra, sem um gesto, lenta, hirta, como uma sonâmbula.

Três dias depois partia o barão de Santa Lúcia para a Europa, sem deixar um cartão de despedida a ninguém.