Flores do Mal/Prefácio
Prefácio
DAS
«Flores do Mal»
Como a lepra voraz no corpo d’um mendigo,
(Que se julga feliz de a agasalhar, talvez!)
A toleima, o pecado, o vício, a mesquinhez,
Habitam dentro em nós, como em fagueiro abrigo.
Conhecemos o erro, e não nos corrigimos;
Fazemo-nos pagar bem caro as contrições,
E, julgando remir com pranto as más acções,
Pela estrada do mal, ovantes, prosseguimos.
Embala Satanaz a nossa mente ardida,
Fazendo-nos sonhar com tal suavidade
Que a energia vivaz da nossa mocidade
Em breve se quebranta, a lama reduzida...
O Diabo faz de nós uns títeres de feira!
Chegamos a gostar de cousas repelentes,
E assim vamos descendo, a rir, inconscientes,
A caminho do Inferno, a lôbrega ladeira.
Entregues ao prazer, numa sede constante,
Expremémo-lo bem, como a um limão fanado,
Qual velho D. João beijando, esfomeado,
Os mamilos senis de sórdida bacante.
Num denso formigar, num turbilhão d’helmintos,
Sentimos na cabeça uma turba infernal
Um pestilento ar, deletério e mortal,
Faz uivar, faz gemer nossos pulmões famintos.
Se o veneno, o incêndio, a punhalada fria
E o estupro bestial inda não teem memória
No registo vulgar da nossa vida inglória,
É porque em nosso peito ha muita covardia.
Entre os lobos-cervaes, os tigres e panteras,
Macacos, escorpiões, abutres e condores,
Monstros negros e vis, rasteiros, rugidores,
Que vivem dentro em nós, como em jaula de feras,
Um outro monstro ha, mais torpe, mais imundo!
Que não se ouve rugir, nem uiva, nem rumina,
Mas folgára em fazer da terra uma ruína,
E engulir num bocejo a carcassa do mundo;
É o Tédio! — O seu olhar, falho de comoção,
Tem por visões gentis scenas de sangue e horror...
Tu conheces por certo esse monstro, leitor,
— Hipócrita leitor, — meu egual, — meu irmão!