Florioso

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Entre pedras e peneiras,
Senhora, vamos a ver;
Menina que estais na fonte,
Dai-me água para beber.

"Com licença do Senhor,
E da Senhora da Guia,
Dizei-me, senhor mancebo,
Se vindes da companhia?

—A companhia que trago
Já vos digo na verdade;
Venho divertir o tempo,
Que é cousa da mocidade.

"É cousa da mocidade,
Bem já me parece ser;
Dizei-me, senhor mancebo,
Se sabeis ler e escrever?

—Eu não sei ler e escrever,
Nem mesmo tocar viola;
Agora quero aprender .
Na vossa real escola...

"Escola tenho eu de minha,
Nange pra negro aprender;
Juízo te dê Deus,
Memória para saber.

—Nestas mimosas esquinas
Faz-se ausência muito mal;
Eu sempre pensei, senhora,
Que vós, me queríeis mal.

"Quanto a mim, eu não te quero
Nalma, nem no coração;
Até só te peço, negro,
Que não me toques na mão.

—Nas mãos eu não vos toco,
Nem mesmo bulo convosco;
Quero estar a par de vós,
Pois eu nisto levo gosto.

"Se tu nisto levas gosto,
Desgostas por vida tua;
Que esta cara que aqui está
É de outro e não é tua.

—Se é de outro e não é minha
Inda espero que há de ser;
Menina, diga a seu pai
Que me mande receber.

"Tais palavras eu não digo
Que inda sou muito escusada.
Pois eu sou menina e moça,
Não sou para ser casada.

—Inda mais moças que vós
Regem casa e têm marido,
Assim há de ser, menina,
Quando casardes comigo.

"Mas eu não hei de casar,
Porque não hei de querer;
Eu não me meto a perigos,
Quando vejo anoitecer...

—Nem eu quero cousa à força,
Senão por muita vontade,
Eu quero gozar a vida
Que é cousa da mocidade.

"Donde vem o Florioso
Das melêndias penteadas
—Eu venho ser o vaqueiro
Das ovelhas mais das cabras.

"Deste mesmo gado eu cuido
Da minha fina geração.
—Daquele que veste luvas
De cinco dedos na mão.

"Já fui contar as estrelas,
—Eu já sei que estou no caso...
"Eu sei agora, mancebo,
Que tu só és o diabo...

—O diabo eu não sou,
Ai! Jesus que feio nome!
Só peço ao Senhor da Cruz
Que este diabo vos tome."