Girândola de Amores/II

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"Tinha eu apenas dez anos de idade, principiou o conde, quando meu pai, cinco anos depois de enviuvar, recolheu em casa, nas suas terras do Alto Douro, uma senhora ainda moça, gentil de maneiras, cultivada no trato e no espírito, mas totalmente desamparada de recursos pecuniários.

"O marido, pois que era casada, havia-se de tal modo incompatibilizado com ela, que a infeliz resolveu abandoná-lo e procurar, só por si, com o que sabia de música, desenho, inglês e francês, os meios de viver modestamente em qualquer província de Portugal ou do Brasil.

"Chamava-se Helena.

"Era uma criatura loura, franzina de corpo, feições muito expressivas e olhar inteligente. Parece que ainda estou a vê-la!

"Meu pai, que a princípio só lhe confiara a educação primária dos filhos mais novos, foi, à proporção que se deixava tomar de simpatias pela professora, resignando em suas mãos primeiro a direção espiritual de minhas irmãs, depois o governo da casa, e afinal o governo absoluto do seu próprio coração. Escravizou-se.

Desse cativeiro nasceu uma filha, que se converteu nos últimos encantos do pobre velho. E a contar de então, meu caro hóspede, se Helena já era senhora absoluta de todo o palácio, que não ficaria sendo com o nascimento da filha?... Sua vontade, incisiva e nervosa, conquistou e dominou desde o conde até ao último dos nossos lacaios.

"As desavenças e os desgostos entre a família não se fizeram esperar: minhas duas irmãs, que se tornavam mulheres, foram as primeiras a reagir contra a ditadura que lhes queriam impor. Uma casou logo, para fugir ao jugo da falsa madrasta; a outra exigiu que a metessem em um convento, donde só saiu para unir-se ao homem que a tomou por esposa.

"Meu pai não pôde sobreviver por muito tempo à ausência de minhas duas irmãs e à desorganização da sua casa, agravaram-se-lhe os padecimentos de que sofria, e faleceu pouco depois, legando à amante e à filha ilegítima uma boa parte dos seus bens.

"Eu que por esse tempo fazia meus estudos em Coimbra, corri à casa paterna e tratei do inventário de meu pai.

"Helena havia-se afastado já com a filha, que nessa ocasião teria quinze anos, e veio a casá-la alguns anos depois com um capitão de marinha, conhecido pela alcunha de "Leão Vermelho".

— Meu pai! exclamou Gregório.

— Sim, confirmou o conde; o senhor é filho desse casal. Sua mãe, porém, foi abandonada na cidade do Porto pelo marido, ficando-lhe apenas do matrimônio, além dos desgostos de uma viuvez forçada, um filho de dois anos. O fim dessa pobre mulher já o senhor conhece naturalmente: foi o convento e a loucura.

— Sim, disse Gregório.

— Mas o que talvez não saiba, acrescentou o conde, é que, antes disso, teve ela ocasião de salvar a vida da pessoa com quem depois me casei.

— Ah!

— Foi a enfermeira incansável e desvelada da filha de um velho amigo de meu pai, a qual sem dúvida teria sucumbido sem a dedicação e os sacrifícios de Cecília.

— E o filho, a criança de que o senhor falou?

— Essa criança, logo que a mãe perdeu a razão, foi reclamada pela família de minha noiva, e, depois do meu casamento, veio em companhia de minha mulher para o Brasil, onde foi entregue aos cuidados de certa senhora.

— A senhora que me educou, D. Florentina de Aguiar...

— Justamente, respondeu o conde.

— E o capitão, o pai dessa criança?!

— É de quem vamos tratar agora...

E o conde, tendo-se levantado, bebido alguns goles d’água e afagado a barba, continuou:

— Leão Vermelho, depois de repudiar a mulher, o que a levou ao desespero da loucura, partiu para as Antilhas espanholas, levando consigo um marinheiro fiel e brioso, que sempre o acompanhara e tinha por ele uma adoração sem limites. Conheci esse valente marinheiro; chamavam-lhe "Tubarão". Depois da viagem às Antilhas, Leão Vermelho meteu-se no Rio de Janeiro, e aí travou relações com uma Henriqueta, com quem pouco mais tarde veio a casar.

— A casar?! Mas então minha mãe havia já morrido?!...

— Ainda não; e essa é a causa da perseguição que sofreu seu pai no Rio de Janeiro e da sua fuga rápida para Buenos Aires. Era bígamo. A segunda mulher ficou aqui no Rio com uma filha por nome Clorinda.

— Clorinda!

— A mesma com quem ontem ia o senhor casar...

— Clorinda, visto isso, é minha irmã?!...

— Perfeitamente, sua irmã.

— E foi por isso que me conduziram para cá?

— Isso foi uma das razões. A outra vai o senhor conhecer agora.

E o conde, depois de uma pausa, acrescentou:

— O senhor tem sem saber uma enorme riqueza à sua disposição.

— Como assim?

— A herança de seu pai.

— De meu pai? Mas, perdão, meu pai morreu há seis anos em Montevidéu, e pobre.

— Foi o que ele fez constar, para não ser perseguido, mas a verdade é que se passou a Portugal com o nome suposto de "João Brasileiro" e apenas há dois meses faleceu.

— Meu pai ainda vivia?

— Sim, eu e minha mulher, somos aqui os únicos senhores desse segredo. Sei de toda a vida de seu pai e acompanhava os seus últimos passos, porque a condessa muito se interessa por tudo o que diz respeito à falecida Cecília, sua mãe. Diga-me, não lhe consta que Clorinda recebesse uma mesada?...

— Pois não, confirmou Gregório; sei que a velha Januária recebia uma pensão misteriosa, da qual ela própria dizia não saber a procedência; como sei igualmente que esse dinheiro era o único recurso que tinham as duas para viver.

— Esse recurso vai desaparecer com a morte de seu pai.

— Pobre Clorinda! Mas eu, se deixo de ser seu marido, principio a ser seu irmão, e...

— Não se trata disso agora. Eu me encarrego de fazer continuar a mesada. Amanhã mesmo remeterei a primeira.

— Mas...

— Não haja escrúpulos! É com o seu dinheiro que vou socorrê-las... Não lhe disse há pouco que o senhor tem uma fortuna à sua disposição?! Pois faça o favor de ler isto...

E passou-lhe um jornal português, indicando-lhe um certo ponto marcado a lápis.

— Será possível?! exclamou o rapaz, lendo as primeiras palavras.

— Leia tudo, disse o conde. E se estiver disposto a aceitar uma proposta, amanhã mesmo partirá comigo para a Europa.

Gregório leu a notícia da morte de seu pai e a confirmação de que este deixara uma grande soma de bens, que seriam recolhidos pelos poderes competentes, até aparecer um filho, existente no Brasil, segundo declarações exatas.

— E sabe o senhor a quanto montam esses bens? perguntou o conde ao rapaz. Excedem a quatrocentos contos fortes!

— Bem, disse Gregório; amanhã mesmo principio a preparar-me. Vou a...

— Nada! contrariou o outro; nada disso! O senhor parte daqui mesmo; eu darei as providências necessárias para que não venha a faltar coisa nenhuma.

— Mas preciso ao menos despedir-me do lugar em que trabalho; reunir os objetos que me possam servir para a viagem e dar a Clorinda uma explicação da minha ausência...

— É justamente o que não convém de forma alguma. Estas coisas decidem-se assim!

E o conde calcou o botão da campainha elétrica.

Veio o criado.

— Prepara as minhas malas e previne à senhora de que lhe desejo falar ainda esta noite.

O criado curvou a cabeça e saiu.

— Mas eu hei de partir assim sem mais nem menos?... observou Gregório, ao último ponto contrariado.

— É para o seu interesse, meu amigo: a perda de um paquete podia acarretar consigo a da ocasião. Lembre-se do velho provérbio indiano: "A fortuna só tem cabelos na frente da cabeça e é calva na nuca"; se a não agarrarmos de frente, ela se irá por uma vez e nunca mais a pilharemos. O senhor só sairá daqui para bordo!

— Mas os meus interesses, os meus compromissos, que me esperam lá fora?...

— Tudo isso não vale a vigésima parte do tesouro que o reclama com urgência!

— Mas uma coisa não elimina o outra; bem podíamos conciliar as duas e...

— Deixemo-nos de meias medidas, meu caro senhor; já lhe disse o que tinha a dizer; agora só me resta acrescentar que, nas condições apresentadas, estou pronto a acompanhá-lo; noutras, não! Lembre-se, porém, de que, sem o meu concurso, lhe será muito difícil chegar a qualquer resultado prático a respeito da herança de seu pai!...

— Mas, Sr. conde, objetou Gregório; se eu fizer o que V. Exa. me aconselha, fico absolutamente sem recursos: abandono meu emprego, abandono tudo!

— E que falta lhe podem fazer essas coisas? E o conde, depois de uma pausa, disse com a mais resoluta calma: Enfim, senhor, eu sigo amanhã no paquete que parte para a Europa, quer ou não quer acompanhar-me?!

— Bem! respondeu Gregório, inspirado pelo ar resoluto do conde. Estou às suas ordens!

— Neste caso, vou apresentá-lo à minha família, que irá também.

O rapaz consertou rapidamente o laço da gravata, passou a mão pelos cabelos, e, pouco depois, em companhia do conde, era anunciado nos aposentos da condessa.

Ao chegar à porta sentiu logo um doce perfume de paz honesta. Tudo ali era castamente tranqüilo; havia na atmosfera o aroma grave de flores secas, esquecidas no fundo de uma velha gaveta de família. Os móveis, o tapete, os quadros e as cortinas revelavam a mesma sobriedade de gosto, o mesmo recato de simpatias, as mesmas inclinações finas e aristocráticas.

Não se encontravam ali as fantasias baratas do luxo moderno; não havia as fragilidades douradas da falsa opulência; tudo era bom e sincero. O biscuit não substituía o mármore, o gesso pintado não tomava o lugar do bronze e o cromo litográfico não fazia as vezes da aquarela e da pintura a óleo. Cada objeto dizia sinceramente a sua espécie e a sua qualidade.

Predominava em tudo a mesma singeleza bem educada. Nada de arrebiques, nada de frisos de pinho envernizado, nada de guarnições impertinentes. As boas gravuras inglesas e as magníficas águas-fortes destacavam-se perfeitamente da nudez austera das paredes. Os móveis de madeira sem lustro tinham cada um a sua utilidade imediata. Não havia os preguiçosos divãs que conduzem à volúpia e ao dolce far niente; não havia as dúbias cadeiras que obrigam o corpo a uma posição enervante e sem-cerimônia.

Gregório transpôs a porta daquele santuário, inteiramente penetrado pela alma misteriosa que daí se evaporava, como o perfume religioso de um templo.

A condessa, assentada junto à mesa, lia um grosso volume de capa azul à luz vermelha de um candeeiro de alabastro. Vestia uma roupa inteira e afogada de casimira indiana, e tinha a cabeça resguardada por uma touca de renda de Valença. Não se lhe via luzir uma jóia. Ao lado dela, em uma cadeira mais baixa, bordava a filha, toda preocupada com o seu trabalho.

Maria Luísa, é este o nome da menina, teria dezessete anos, não travessos e ruidosos, mas angélicos e tranqüilos, como tudo o que a cercava. À luz do candeeiro destacava-se bem a sua cabecinha loura, redonda, encimada pelas tranças, que a envolviam à moda das velhas estátuas. Sentia-se o azul dos seus olhos por debaixo das pálpebras abaixadas sobre o trabalho.

Não houve o menor alvoroço com a entrada de Gregório. A condessa marcou com uma fita a página que lia, e pousou devagar o livro sobre a mesa; depois estendeu a mão para o moço e, com um sorriso muito amável, ofereceu-lhe um lugar perto de si, enquanto o conde o apresentava às duas senhoras.

— Minha mulher e minha filha, disse o velho, indicando as duas.

Gregório cumprimentou-as, possuído de um forte sentimento de respeito, e foi sentar-se ao lado da condessa.

— Até que afinal o temos conosco, disse ela, descansadamente. E, voltando-se mais para ele, acrescentou, fazendo um ar sério: Fui muito amiga de sua mãe! Era uma excelente pessoa; entre outros obséquios, devo-lhe a vida!

— O Sr. conde já teve a bondade de contar-me isso mesmo, sustentou Gregório um pouco perturbado.

— Sim, volveu a condessa, eu própria lhe havia recomendado que o fizesse.

E depois de dar a entender à filha que se retirasse:

— Não temos tempo a perder. O conde naturalmente já lhe falou sobre a herança de seu pai, não é verdade?

— Sim, minha senhora.

— E está disposto a partir?

— Amanhã mesmo.

— Bem, neste caso darei daqui a pouco as providências para a viagem; por enquanto falemos do senhor...